Quando começou a compor, Dona Ivone Lara, ícone da música brasileira, colocava o nome dos primos em suas músicas. Isso porque, nos anos 1980, ainda era mal visto uma mulher fazendo samba. Apesar do avanço do direito das mulheres em diversas áreas, a participação feminina na indústria da música ainda avança a passos lentos. No ano passado, elas representaram apenas 10% do total de artistas contemplados com direitos autorais, de acordo com o relatório O que o Brasil Ouve – Edição Mulheres na Música, divulgado pelo Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad). Do total de valores distribuídos no ano passado a 267 mil compositores, artistas, demais titulares e associações, de R$ 901 milhões, as mulheres receberam cerca de 7%, resultado equivalente ao de 2020. Para fortalecer o debate sobre essa realidade e destacar o trabalho de mulheres em toda a cadeia dessa indústria, o Rock in Rio criou o She Rocks, podcast que vai ao ar todas as terças-feiras com entrevistas com cantoras, compositoras, produtoras músicas e outras profissionais técnicas que fazem girar o mercado musical e de entretenimento.
“Inicialmente, pensamos em usar o slogan de um podcast feito por e para mulheres. Mas a verdade é que pode até ser feito por mulheres, mas é para todo mundo. Porque se não criarmos pontes através de conversas, de forma desarmada, não avançaremos nessas questões de gênero”, diz a CLAUDIA Roberta Medina, que está há 20 anos a frente do Rock in Rio. Ela lembra que a equipe de produção do evento, que este ano acontece nos dias 2, 3, 4, 8, 9, 10 e 11 de setembro, sempre teve homens e mulheres, mas a participação delas se consolidou a partir de 2011 e 2013. A partir de então, o festival passou a dar mais destaque à presença feminina no line-up, inclusive com pelo menos um dia dedicado exclusivamente a artistas do gênero feminino. Na edição 2022, o dia delas é o 11 de setembro, quando sobem ao palco do Parque Olímpico do Rio de Janeiro nomes como Dua Lipa, Megan Thee Stallion, Rita Ora, Ivete Sangalo, Ludmilla, Macy Gray, Liniker e Luedji Luna.
Apresentadora do primeiro episódio do She Rocks (que contou com a participação de Luísa Sonza), Roberta diz que não acredita em fazer uma programação com exatamente metade de artistas homens e metade de mulheres. “Acho que tem que ser o que o público gosta. Mas, quando fazemos um dia inteiro só com artistas femininas, provocamos um debate, chamamos a atenção para esse cenário. Serva para abrir a cabeça das empresas que compõem a indústria. A natureza da cultura musical é diversa. Mas a organização dos eventos também o é? É isso que temos que questionar”.
Ela ressalta que o “o mundo da produção de eventos sempre foi muito feminino”, mas ainda são poucas as mulheres em trabalhos técnicos, como o de engenharia de som, por exemplo. “Algumas coisas sempre foram consideradas trabalho de homem. A diferença é que hoje não importa qual seja a função, as mulheres estão lá.” Esse foi um dos assuntos sobre os quais a apresentadora Gaía Passarelli (Renata Simões é outra anfitriã do podcast) conversou no terceiro episódio do She Rocks com Guta Braga, consultora e especialista em direitos autorais, e Erika Lôbo, produtora e professora de produção musical.
“Eu estou na indústria da música desde os anos 1990 e posso dizer que até mesmo essa preocupação com o equilíbrio de homens e mulheres na programação dos festivais é recente. Tenho acompanhado não só a revolução tecnológica desse mercado, mas também a revolução humana. Espero não morrer sem ver uma mulher presidente de gravadora, algo que nunca existiu no Brasil, só na gringa“, comenta Guta nesse episódio.
Erika ressalta que atividades como direção técnica e produção de palco em shows e festivais ainda são lugares “extremamente masculinos”, mas celebra as mudanças que, pouco a pouco, vêm acontecendo nas novas gerações. “Tenho alunas de 15 anos que já são produtoras incríveis, que já estão fazendo música. Eu, que fui autodidata, incentivo a procurar bancos de samples gratuitos e aplicativos para começar a fazer seu próprio som”, conta.
A produtora musical também apresenta números que mostram que a brecha de gênero na indústria musical não é uma exclusividade brasileira. De acordo com uma pesquisa realizada em janeiro de 2019 pelo USC Annenberg Inclusion Initiative e divulgada pela iniciativa internacional She is the Music, dos 651 produtores creditados no levantamento, apenas 2,6% eram mulheres. Entre os 2.767 compositores, elas representavam 12,5% e ocupavam somente 2,6% dos postos de engenharia e mixagem de som.
Na contramão dessa realidade, estão inciativas como o Projeto Sêla, uma aliança entre cantoras e mulheres envolvidas no mercado musical brasileiro, e Pwr Records, selo que nasceu em 2016 para potencializar a presença delas nessa indústria. “Temos que criar e fortalecer mais iniciativas para mais mulheres comporem música, produzirem música”, convoca Erika.