Ao tomar o primeiro gole de leite de aveia na casa da namorada sueca, Alex Söderberg, em Berlim, o carioca Felipe Melo se espantou. Os dois eram veganos há anos — ele há mais tempo que ela, inclusive —, mas o sabor delicioso era novidade só para um deles.
“Eu fiquei surpresa: como assim não tem isso no Brasil? Eu conhecia o leite de aveia desde a minha adolescência. Mas para ele todo leite vegetal era igual, todos ruins, porque só tinha leite de arroz e de soja naquela época. A oferta de leite de castanha ainda estava bem no início”, relembra Alex.
Dali em diante, o casal criou uma obsessão: levar a palavra do produto para o Brasil. Não só por ser um mercado promissor, o país natal de Felipe e onde Alex viveu dos 13 aos 15 anos, mas também por acreditarem que os brasileiros se preocupam com o impacto da alimentação na saúde.
Sem demagogia, não queriam abrir apenas uma empresa, mas atuar como ativistas. O leite vegetal seria só uma das (saborosas) ferramentas. A ideia fazia sentido. Alex presenciava, diariamente, a transformação dos hábitos alimentares dos alemães, estimulados pela qualidade dos produtos. A geocientista sempre perguntava como andava a saída do leite vegetal em um dos cafés frequentados pelo casal por lá.
“Eu vivi essa transição nas cafeterias de Berlim, e foi em pouco tempo. Um dia 40% das vendas eram com o vegetal, pouco depois o número chegava a 60%. E o barista dizia que o público não era vegano, nem de pessoas com intolerância à lactose, era de gente que comprava pelo sabor.” Para ela, era claro: se os alemães mudaram, os brasileiros também poderiam fazer o mesmo.
Qualidade do leite vegetal
Mas como os europeus produziam um leite tão gostoso quanto aquele? Os dois se aprofundaram nas pesquisas e visitaram inúmeras fábricas. O segredo estava em um processo de enzimação desenvolvido pelos suecos. Não basta apenas deixar os flocos de molho por algumas horas, como indicam as receitas caseiras.
Os suecos adicionam enzimas nessa mistura que primeiro deixam o “mingau” mais líquido e cremoso. Outra leva de enzimas entra na segunda etapa, desta vez para transformar o amido em maltose. “O leite caseiro não fica igual, porque quando você só hidrata a aveia e bate no liquidificador, a consistência não é legal. Mesmo quando adicionam tâmara para adocicar, ainda assim não fica a mesma coisa”, explica Alex.
“A gente hidrata a aveia em locais parecidos com os tanques de cerveja e entra com o processo de enzimação, que deixa o leite naturalmente doce e cremoso. Isso faz com que a bebida, produzida com as técnicas suecas, fique tão diferente. Por isso a surpresa do Felipe, no Brasil ainda não era feito dessa forma.”
Essa era a parte bruta — o suficiente para agradar o paladar vegano. Mas eles queriam mais, queriam conquistar também os adeptos do leite animal. “A gente sempre fala: o sabor é muito importante! Não podia ter um gosto ruim. E não queríamos imitar o sabor do leite de vaca a qualquer custo — para isso, teria que colocar um aroma parecido. A maioria das pessoas nem gosta do sabor do leite animal”, diz Alex.
Aí entrou o trabalho de uma engenheira de alimentos, com PhD em análise sensorial. “Ela me perguntava o que eu estava sentindo e explicava o que era. ‘Isso é o que chamamos de preenchimento de boca, agora engole e veja se dá uma sensação no céu da boca. Aos poucos, fomos chegando na fórmula ideal’”.
Produto finalizado, faltava a escolha da embalagem. E a opção mais sustentável era a Tetra Pak. Isso porque o material conserva o produto por um tempo mais longo e pode ser transformado em telhas ecológicas. Com outros três sócios por trás, todos amigos de infância de Felipe, a empresa Evolat nasceu, em novembro de 2020.
O primeiro lançamento, sob a marca Naveia, foi o leite de aveia original e uma segunda versão voltada para baristas — ainda mais cremosa. Quatro anos depois, as opções só aumentaram: achocolatado vegano, leite com manga, manteiga, creme de leite, leite condensado. Eles fecharam ainda parceria com produtores de café, sorvete e chocolate para combinar com os leites da marca. Inovações de vento em popa.
O desejo de mudar o mundo
Alex nunca quis atrair consumidores com base apenas no papo de sustentabilidade. Até porque ela mesma passou mais de 20 anos consumindo carne e laticínios, mesmo consciente da degradação do solo causada pela agropecuária e dos impactos dessas atividades nas mudanças climáticas. “Eu sempre consumi pouca carne. E achava que, se fosse uma produção voltada para o bem-estar dos animais, uma produção familiar, estava tudo bem”, relembra.
Até que, um dia, produtores de uma pequena fazenda orgânica sustentável a convidaram para ajudar na tosa de ovelhas. Era uma medida necessária para evitar que os animais, que viviam livres no pasto, ficassem presos em arbustos e se machucassem.
“É uma tradição, em Maiorca [na Espanha, onde fez faculdade], a gente vai com a família, sobe as montanhas e ajuda a cortar a lã das ovelhas. E a gente costuma imaginar esses cenários, de um agricultor familiar orgânico, da forma mais romântica possível, tudo feito de forma artesanal.”
O romantismo caiu por terra quando os agricultores reduziram o tempo de trabalho de uma forma cruel: sem anestesia, cortavam com as mãos o rabo das ovelhas para agilizar a tosa. “Perguntei por que eles estavam fazendo aquilo. Disseram que era para raspar com mais facilidade a lã e que não precisava de anestesia porque eles não sentiam, eram burros”, conta. Desceu das montanhas decidida a nunca mais comer qualquer produto de origem animal.
Essa experiência impulsionou a ideia de transformação do mundo por meio da alimentação. Segundo estudo da Universidade de Oxford, na Inglaterra, a produção de leite de vaca emite quase três vezes mais gases de efeito estufa do que os vegetais. As fábricas de leite vegetal ainda gastam 95% menos água e 60% menos energia na produção.
Em Berlim, Alex começou a trabalhar em uma aceleradora de startups de alimentos sustentáveis. Cabia a ela selecionar 150 projetos que enfrentavam algum problema na cadeia de produção — fosse para conectar um produtor a algum mercado ou melhorar o design dos produtos. Ali conquistou experiência suficiente para levantar sua própria empresa ao lado do parceiro, com quem se casou, formado em economia.
Para o casal, no entanto, popularizar o leite de aveia aqui não era suficiente, era preciso expandir o conceito de sustentabilidade por toda a cadeia da empresa. Na contratação da equipe, que hoje conta com 40 integrantes, eles priorizam pessoas negras e transexuais. Na ponta final, no descarte do material, também correm para mitigar o lixo gerado por seus produtos.
A empresa compra as telhas feitas da reciclagem de embalagens Tetra Pak e doam a quem precisa — a última doação foi para famílias do Rio Grande do Sul que tiveram de reconstruir suas casas após as tragédias das enchentes, em maio deste ano. “É nossa responsabilidade, eu coloco as embalagens no meio ambiente, então preciso me responsabilizar por elas. Não estou fazendo uma coisa legal, estou fazendo o que eu devo fazer.”
Outro sonho ainda está só começando: a recuperação de uma área de 220 hectares degradada pelo pasto no sul de Minas Gerais. “A gente fez o pior e melhor negócio do mundo. Compramos um terreno mais caro, porque já estava ‘limpo’ [sem mata] e vamos torná-lo mais barato – ou ‘sujo’ [reflorestado], como eles falam”, brinca Alex.
A ideia é mostrar aos produtores de leite, que costumam abandonar suas terras quando elas se tornam insustentáveis até para a pastagem, que é possível recuperá-la. Mais do que isso, é possível voltar a produzir alimento com sistemas agroflorestais. “Fazemos divisa com oito produtores de leite. E um deles nos acompanha desde o primeiro dia.
“Eu coloco as embalagens no meio ambiente, então preciso me responsabilizar por elas. Não estou fazendo uma coisa legal, estou fazendo o que eu devo fazer”
Alex Söderberg, co-fundadora da Naveia
Ele avisou: “Vou vender meu gado, quero plantar água, plantar floresta”, comemora. Com um sonho e um propósito, a Naveia se tornou bem mais do que produtora de leite vegetal — virou um símbolo da luta pela recuperação do meio ambiente.
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