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“A falta é constante”: o depoimento de uma mãe após o suicídio da filha

A chef e escritora Heloísa Bacellar quer falar publicamente sobre a morte da filha caçula, Ana, para quebrar tabus sobre saúde mental e suicídio

Por Isabella D'Ercole Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
19 out 2021, 10h00
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  • Ao noticiar a morte da filha caçula, Ana, para amigos e seguidores, a chef e escritora Heloísa Bacellar disse que a jovem de 25 anos decidiu partir. Desde a declaração poética, ela vem tentando mostrar publicamente a importância de falarmos sobre saúde mental e de compreendermos que o suicídio não deve ser encarado como uma derrota sobre a vida

     

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    mais difícil dessa dor é que você vê a pessoa querida em tudo. Eu entro na sala e penso: ‘Ela estaria sentada ali, que era onde ela gostava de ficar’. Hoje, fiz peixe para o jantar e ela não gostava muito, estaria reclamando do cheiro. Mas também já teve dia em que eu fiz um prato que ela gostava e deu saudade. Passar pelo quarto dela é uma dor imensa.

    A falta é constante, eu sinto o dia todo a ausência dela. Tenho tentado me distrair. Escrevo, penso nos bons momentos. Quero que eles predominem sobre os difíceis. Meu marido caminha, mexe nas árvores da nossa casa, passeia com o cachorro. Devagar, vamos retomando. Falar me ajudou muito. Conversei com os profissionais que acompanhavam a Ana e também recebi muitas mensagens de desconhecidos, gente que eu nunca vi na vida e quis compartilhar histórias próximas comigo. Foi assim que entendi a importância de falarmos sobre o assunto, que ainda é um tabu imenso.

    Páginas da Vida - Heloísa Bacellar - 721
    (Imagem: Freepik/Claudio Beltrame)

    A Ana, nossa caçula, era frágil e delicada desde menina. Ela tinha amigos, mas era extremamente tímida. Notei que existia uma diferença nela. Quando eu tinha 38 anos e ela tinha 9, fiquei doente, enfrentei problemas graves de saúde. Percebi que ela tinha muito medo de me perder, era uma situação pesada para ela. Resolvemos procurar ajuda profissional. Entendi que sozinha, com o amor que dávamos em casa ou que ela recebia na escola, não daríamos conta.

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    Uma pessoa com transtornos complexos precisa ser acompanhada por profissionais com habilidades específicas, qualificações. Não tem nada de feio ou de errado em pedir ajuda. Os diagnósticos nessa área médica são muito difíceis. Só alguém especializado poderá ver o que está se passando dentro da pessoa, já que não há sintomas físicos nem exame de laboratório, e direcionar todos nas melhores práticas.

    Isso mostra como é importante olharmos para as pessoas que amamos, observarmos de verdade. Claro que todos temos momentos alegres e de tristeza, mas pai, mãe, irmão, amigos e até professores podem identificar na primeira infância, na adolescência ou na vida adulta alguma questão mais profunda. Esse cuidado vai gerar uma dúvida sobre o que consideramos um estado normal, uma angústia, e então é hora de consultar o profissional.

    “Se eu não tivesse procurado ajuda e criado um vínculo com a minha filha, a vida dela poderia ter sido mais breve. quero que as lembranças dos bons momentos predominem”

    Acredito que se minha filha viveu muitos anos com boa qualidade de vida foi por causa do cuidado que recebeu e da equipe extremamente competente que a acompanhou. Claro que há muitas questões, como a financeira, envolvidas na estrutura possível de ser proporcionada. Mas é importante que seja preservada nessa pessoa a conexão com a vontade de viver melhor.

    Quando se inicia um tratamento de saúde mental, é preciso haver um pacto entre paciente, médico e família ou rede de apoio próxima. Só dá para encarar uma situação de transtorno mental junto. O paciente precisa conseguir colocar para fora o que sente, e isso exige uma relação de confiança e de acolhimento.

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    Também é fundamental seguir à risca as recomendações médicas, por isso que as pessoas envolvidas no cuidado devem criar um diálogo e chegar a um consenso de como isso vai ser feito. Se cada um achar que vai fazer como acha melhor, não dá certo. Como mãe, digo que não basta amar a pessoa, é preciso aprender a falar com ela, a abrir uma linha direta. E é necessário identificar sinais sutis para saber se a pessoa está melhorando ou não, se está em estágio de perigo.

    Ainda mais importante do que isso é permitir que a pessoa tenha autonomia. Quando você está falando com uma criança, algumas coisas são mais simples. A mãe ou o pai são figuras de poder que podem tomar as decisões e resolver. Adolescentes são mais complicados, assim como adultos. É por isso que é preciso aprender a conversar. Não dá para fechar a pessoa numa bolha na tentativa de impedir que ela corra riscos. Ela vai ser infeliz.

    A pessoa também tem o direito de falar sobre ela mesma, sobre o que ela quer. Ela tem discernimento do que deseja e vai expressar isso. Você tem que deixar que ela usufrua da liberdade e apenas acompanhar as reações. Ela está isolada demais ou muito irritada? Como você vai reagir a isso de forma efetiva? Dá trabalho desenvolver essas percepções. Mas é essencial.

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    É dessa forma que você entende os limites e combina com a pessoa: ‘Se eu perceber que você chegou nesse ponto, vou entrar em contato com o profissional, mas isso não vai representar uma invasão ao seu espaço, porque é uma ajuda necessária, tá bom?’.

    É complicado e muito penoso, porque essas doenças muitas vezes são mais cruéis do que aquelas que nós vemos, mas encarar o processo e desenvolver uma técnica própria para ir lidando com elas é parte da conquista do equilíbrio. É um aprendizado enorme pensar e olhar para a dor do outro.

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    Sei que fiz o possível e o impossível pela Ana, para que ela fosse saudável e tivesse o máximo de qualidade de vida, e por isso não sinto culpa. É lógico que você vai pensar uma hora ou outra: ‘E se eu tivesse feito isso ou aquilo, se tivesse visto isso antes, quando era mais nova’. Mas não dá para viver nessa lógica do que teria acontecido.

    “Como mãe, digo que não basta amar a pessoa, é preciso aprender a falar com ela, a abrir uma linha direta. E também é necessário identificar os sinais sutis para saber se a pessoa está melhorando ou em estágio de perigo”

    Além disso, sempre busquei me cuidar, respirar fundo. Se você não estiver bem, não consegue ajudar ninguém e a situação é, muitas vezes, pesada. Procurando tratar de si mesma e buscando o autoconhecimento, como em terapia, é provável que você também entenda melhor as maneiras de se relacionar com a pessoa, formas de criar pontes respeitosas e não invasivas.

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    Eu e a Ana tínhamos uma relação linda, éramos muito próximas, unidas. A vida dela, que teve momentos incríveis, só aconteceu por tudo isso, por essa ligação, pelo apoio e pelo tratamento contínuo dos profissionais. Os momentos alegres dela falavam muito mais alto do que os de sofrimento.

    Muitas mães podem pensar: ‘Mas por que ela está falando isso se a filha dela chegou a um ponto em que resolveu que a vida não valia mais a pena e partiu?’. Se eu não tivesse procurado ajuda e desenvolvido o vínculo que tinha com a minha filha, a vida dela poderia ter sido mais breve e infeliz.

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    Páginas da Vida - Heloísa Bacellar - 721
    (Imagem: Freepik/CLAUDIA)

    Tem gente que vai ler isso e achar que fomos derrotados pelo suicídio, mas eu discordo. Tudo o que eu vivemos teve muito carinho. Cada bom momento vivido pela minha filha e com ela foi uma vitória – são eles que vou levar para o resto da minha vida. É um trabalho de formiguinha mostrar para a pessoa que ela sabe fazer alguma coisa, que a vida tem um significado especial – as pessoas doentes tendem a pensar o contrário, que não sabem fazer nada, que não conseguem nada.

    Infelizmente, os desfechos de alguns casos não são os que gostaríamos. Mas outras vezes, com tratamento, a pessoa passa a entender que a vida vale a pena, que ela precisa lutar por aquilo. Para isso tudo acontecer, precisamos quebrar o tabu que existe sobre saúde mental. As pessoas precisam sentir que podem falar, que podem contar o que estão vivendo. Precisam entender que não é feio ter uma doença.

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    Hoje, preciso agradecer meus irmãos, sobrinhos, pais, a irmã do meu marido, minha outra filha, meu marido. Nossa família é muito unida e esse apoio foi importante durante a vida da Ana – tanto para ela quanto para mim – e agora, na perda dela.

    Eu escolhi falar desse assunto quando puder e com quem se interessar, porque sei da importância e da diferença que isso pode fazer na vida de alguém. O que aconteceu faz parte da vida e eu não vou ter vergonha, como me sugeriu uma pessoa nas redes sociais, de falar sobre suicídio, doenças mentais e o tabu sobre os temas. Se a pessoa pode ter um machucado externo, por que ela não pode ter um interno? E se ela tem um, por que não pode tratar e viver uma vida mais completa?”

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    Se você ou alguém próximo precisa de ajuda, ligue para o 188, número do Centro de Valorização da Vida. O CVV promove apoio emocional e prevenção do suicídio com sigilo total. Os atendimentos são gratuitos, por telefone, e-mail e chat, 24 horas por dia, nos sete dias da semana.

    *Depoimento dado a Isabella D’Ercole

     

     

     

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