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Sobre (in)visibilidade lésbica

Porque (ainda!) precisamos falar sobre silenciamento, estupro corretivo e objetificação. Precisamos mesmo!

Por Júlia Warken
Atualizado em 12 abr 2024, 16h44 - Publicado em 1 set 2016, 15h45
 (Nina Sinitskaya/Getty Images)
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No grande espectro LGBTQIA+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Queer, Intersexuais, Agêneros e além), é comum acreditar que as pautas desse grupo são sempre as mesmas e que termos específicos – como lesbofobia e bifobia, por exemplo – são desnecessários. Em tempo: o combate à discriminação contra os indivíduos que não seguem o modelo tradicional de gênero e sexualidade continua sendo a luta fundamental de toda a comunidade LGBTQIA+, o que não significa que as pautas específicas sejam menos importantes. Só que elas são constantemente negligenciadas.

Do lado de lá – o lado que sempre foi representado e lembrado ao longo da história – esse papo é mimimi. Do lado de cá, é invisibilidade. E que fique claro que a nossa meta não é segregar o mundo num embate resumido em Eles vs. Nós. Mas, no cenário vigente de discriminação e silenciamento constantes, é preciso cair na real e perceber que não #SomosTodos coisa nenhuma. E que as minorias precisam continuar batalhando pela equidade que ainda nos é negada.

A invisibilidade como agente silenciador é um problema muito sério, especialmente quando a gente se depara com dados sobre o alto índice de suicídio entre lésbicas e sobre estupro corretivo. Aliás, falar sobre estupro corretivo é algo tão raro que muita gente sequer conhece o termo. Mas não é difícil compreender o que ele significa, né? Trata-se da violência sexual como ferramenta para punir e “transformar” lésbicas, bissexuais e homens trans em mulheres “de verdade”.

iStock | South_agency iStock | South_agency

Violência sexual, por si só, é um dos crimes mais subnotificados do mundo. Então, não é de se admirar a escassez de dados e de ações específicas quanto ao estupro corretivo. Segundo levantamento da Liga Brasileira de Lésbicas (LBL), feito em 2012, estima-se que 6% dos estupros no Brasil sejam de caráter corretivo. Mas é muito complicado falar sobre números precisos, até porque, muitas vezes nem as próprias vítimas estão familiarizadas com o conceito. Sem falar que, em se tratando de cultura do estupro, nada é preto no branco.

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Como exemplo dessa complexidade, trago aqui o caso de Katiane Campos, estuprada e morta em 2016. Seu corpo foi encontrado junto ao Teatro Nacional, em Brasília. Aos 26 anos, Katiane estava morta, nua, com o corpo parcialmente carbonizado e com indícios de estupro. Quando a notícia do crime veio à tona, a polícia não deu mais detalhes a respeito do caso, mas os amigos de Katiane se mobilizaram nas redes sociais. A partir disso, soube-se que ela era lésbica, o que não deveria passar batido pelo debate a respeito de sua morte, nem pela investigação policial.

Só que o grande público e o Estado não estão muito preocupados em saber se essa foi mais uma brasileira vítima estupro corretivo e homicídio movido por ódio. E ao contrário do que se desenrolou num outro caso noticiado na mesma época, em que uma adolescente lésbica quase foi estuprada pelo próprio pai no Tocantins, Katiane não está mais viva para contar o que ouviu dos agressores enquanto eles lhe violentavam e ateavam fogo. Ou seja: dimensionar a abrangência do estupro corretivo é basicamente impossível num cenário em que: 1) crimes sexuais são varridos para baixo do tapete; 2) lésbicas são sistematicamente invisibilizadas.

Reprodução/g1.globo.com Reprodução/g1.globo.com

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E essa invisibilidade não está só na grande mídia. Ela também se faz presente dentro da própria comunidade LGBT (uso aqui a sigla que é mais comumente utilizada pelo movimento no Brasil). Na teoria, o movimento LGBT é um ambiente horizontal de tolerância, paz e amor. Uma grande reunião de pessoas que lutam juntas por respeito e igualdade. Na prática, ela reflete os padrões da sociedade: homens brancos e cisgêneros estão no topo da cadeia alimentar. Alguma novidade? Não.

Em 1997, surgia em São Paulo aquela que viria a ser a maior Parada LGBT do mundo. Só que ano após ano a participação das lésbicas era relegada a segundo plano. “Em 2002, depois de seis edições, houve uma tentativa da Associação da Parada do Orgulho LGBT (APOGLBT) de trazer um pouco mais de visibilidade às lésbicas e bissexuais, colocando na abertura motoqueiras lésbicas e cedendo um trio para lésbicas e bissexuais. Porém, não houve resultados expressivos e as lésbicas permaneceram invisibilizadas”, conta Natalia Pinheiro, que atuou durante anos na organização da Caminhada de Mulheres Lésbicas e Bissexuais de São Paulo.

A Caminhada existe desde 2003 e acontece sempre um dia antes da Parada LGBT. Como explica Natalia, a ideia é dialogar com a Parada, mas sem se submeter a ela, fortalecendo a organização das lésbicas e bis através de uma ação de visibilidade política e social. As Ls e Bs não querem deixar de fazer parte do grande movimento, mas precisaram se unir entre si para terem suas vozes ouvidas. Às mulheres nada vem fácil, nem mesmo dentro dos movimentos sociais que lutam por um mundo mais justo. Parece irônico, mas não deixa de ser elementar.

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Facebook/Caminhada.Les.Bi Facebook/Caminhada.Les.Bi

Voltando à inserção na sociedade, a vivência lésbica passa por outro fator invisibilizante: a objetificação. Mulheres são constantemente objetificadas e com as lésbicas e bissexuais não haveria de ser diferente. Acontece que nós somos objetificadas também por conta da nossa orientação sexual. Perceba: a imagem de dois homossexuais na TV é motivo de repúdio, mas ninguém se importa em ver a capa de uma revista erótica mostrando duas mulheres juntas. O cidadão pode se indignar com imagens eróticas em geral (e isso não vem ao caso aqui), mas não há um repúdio pontual contra a cultura erotizante em torno de mulheres sendo sensuais juntas. Desde que essa pseudo-representação da sexualidade lésbica esteja à serviço do prazer masculino. Desde que esteja confinada ao submundo da pornografia e do erotismo.

Aí se cria uma falsa noção de aceitação. O homem que fetichiza o casal de lésbicas em um bar – e que, não raro, lança a pergunta “posso participar?” – é o mesmo que escorraçaria uma irmã lésbica dentro de casa. Assédio, fetiche e objetificação não tem nada a ver com aceitação, muito pelo contrário. Em ambientes heterossexuais, os casais de mulheres passam por um duplo constrangimento: a não aceitação por parte dos LGBTfóbicos em geral e o assédio por parte de homens que veem mulheres como produto de consumo. E ai delas se não se sentirem lisonjeadas com o “elogio”! Afinal, homossexual demonstrando afeto em público só quer chamar atenção.

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Objetificar alguém é o ato de ler aquele ser humano como objeto. Isso é bastante óbvio, mas é algo que precisa ser lembrado para que se compreenda por que a objetificação leva à invisibilidade. A partir do momento em que lésbicas são apenas “aceitas” enquanto seres fetichizados, elas são sistematicamente menosprezadas no mundo real, enquanto pessoas que buscam respeito. É por isso que a representação meramente sexualizada age contra as mulheres que amam mulheres, e nunca à favor.

E nós queremos ser devidamente representadas, ouvidas e respeitadas. Pelo fim da invisibilidade que resulta em tanta violência impune, assédio e silenciamento. É pedir muito?

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