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A luta de professoras para proteger crianças das balas perdidas no Rio

Em salas de aula marcadas pela violência dos conflitos armados, educadoras resistem para continuar trabalhando e cuidar de alunos fragilizados

Por Letícia Paiva Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 17 fev 2020, 11h37 - Publicado em 13 nov 2019, 13h15
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  • Com idades entre 11 e 12 anos, Kauê, Kauã, Kauan e Jenifer poderiam frequentar a mesma classe, mas fazem parte do grupo de seis crianças mortas por bala perdida em comunidades do Rio de Janeiro neste ano. A quinta vítima é Ágatha, 8 anos, morta no final de setembro com um tiro de fuzil nas costas. Na companhia da mãe, ela retornava para casa, no Complexo do Alemão. Estava no 3º ano do ensino fundamental e fazia aulas de balé, mas raramente conseguia comparecer por causa de conflitos armados. A cada dia letivo de janeiro a setembro deste ano, foram feitos, em média, 12 disparos a no máximo 300 metros de uma dentre 1,3 mil escolas da Região Metropolitana do Rio, segundo a plataforma Fogo Cruzado, que monitora dados de segurança. Ketellen, de 5 anos, é a vítima mais nova desse grupo de crianças. A menina morreu por bala perdida, nesta terça-feira (12), em Realengo, no Rio de Janeiro.

    Leia mais: Menina morre por bala perdida no caminho da escola no RJ

    Ir para o colégio é um exercício diário para vencer o medo. E é preciso contar com o acaso para não ser atingido por tiros, disparados por traficantes e policiais. Não teve essa sorte Marcos Vinícius, 14 anos, morto a balas no caminho até a escola municipal em que estudava, no Complexo da Maré, em junho do ano passado. O uniforme, camiseta branca com o escudo da prefeitura, ficou ensanguentado. Um ano antes, outro tiro de fuzil havia matado Maria Eduarda, a Duda, 13, enquanto ela participava de uma aula de educação física no Complexo da Pedreira. Naquela quinta-feira, quem chamou o socorro, aos prantos, foi Claudielle Pavão, 34. Ela havia deixado de dar aulas de história para assumir a coordenadoria pedagógica da instituição meses antes. Primeiro, ouviu três disparos. “Poderiam estar testando arma, isso é comum. De todo modo fui ver como estavam os alunos. Foi o tempo exato para começar um tiroteio tão forte que a estrutura do prédio parecia tremer”, lembra sobre a tarde de pavor. Em um momento de silêncio, ouviu gritos anunciando que uma menina havia sido atingida. “Pela primeira vez, eu vi as crianças extremamente amedrontadas, correndo das salas de aula”, diz. Sabendo que uma adolescente tinha sido alvejada, em minutos familiares cercaram a escola, desesperados por notícias. Para dispersar a multidão, a polícia lançou bombas de gás lacrimogêneo para dentro dos muros.

    Revista Claudia.Foto de AF Rodrigues
    Claudielle Pavão | Crédito: AF Rodrigues (AF Rodrigues/CLAUDIA)

    Fora da escola no momento do tiroteio, Simone Araújo, 32 anos, então professora de biologia e atualmente diretora adjunta, ficou arrasada com a notícia. “Eu tinha falado com a Duda naquela manhã e, no sábado, fui ao seu velório”, lembra. As professoras esperaram que o sangue no chão da quadra fosse lavado. Na segunda-feira, voltaram a trabalhar. “Eu tinha que vir porque essa é a escola que, anos antes, eu escolhi para trabalhar. Assim que cheguei, fui a todas as salas, observando as paredes perfuradas pelas balas”, conta Claudielle. As marcas nunca foram cobertas; nos muros, artistas desenharam corações em volta de cada buraco que atravessa a fachada. O Ministério Público denunciou os militares Fábio de Barros Dias e Jorge Luiz Barbosa dos Santos pela morte da menina, mas o julgamento ainda não tem data. Uma gravação de vídeo feita no mesmo dia em frente ao colégio mostra Dias atirando em um homem caído.

    Revista Claudia.Foto de AF Rodrigues
    Simone Araújo | Crédito: AF Rodrigues (AF Rodrigues/CLAUDIA)
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    Como reflexo imediato da morte de Duda, alunos deixaram a escola pelo terror que os pais sentiam de que seus filhos fossem as próximas vítimas da violência na capital carioca, que registra a taxa de 29,7 mortes violentas por 100 mil habitantes, segundo números do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “O tempo todo pensamos que pode acontecer de novo. qualquer barulho já cria tensão. Quando ouvimos um helicóptero ou um caveirão (carro blindado policial) aparece na porta do colégio, acaba com as aulas e destrói nosso psicológico”, desabafa Simone.

    Revista Claudia.Foto de AF Rodrigues
    Crédito: AF Rodrigues (AF Rodrigues/CLAUDIA)

    Cerca de um ano depois da morte de Duda, outra situação fez com que Simone e a colega Claudielle colocassem em xeque a continuidade na carreira. Faltava força para pensar no futuro. Na saída delas da escola, após os alunos serem liberados mais cedo, um helicóptero se aproximou atirando contra a favela. “A sensação era de que estava atrás da gente. Aceleramos, mas com pavor de que pensassem que estávamos fugindo deles”, lembra Simone. A Pedreira vivencia a disputa pelo comando do tráfico entre as facções criminosas Terceiro Comando Puro (TCP), que domina a vizinha Acari, e Comando Vermelho (CV), do Chapadão, no lado oposto. Na semana em que houve esse tiroteio, um agente da polícia foi morto por traficantes, e os militares executavam uma operação para retaliar o assassinato.

    Realidade cruel

    Disputas por poder como essa afetam de forma brutal o cotidiano escolar nas quase 800 favelas do Rio. Na Maré, que agrupa 140 mil moradores em 16 comunidades, as escolas estão em meio à divisão entre as áreas dominadas pelo CV, pelo TCP e por milícias. Nascida e criada no complexo, a professora de língua portuguesa Viviane Couto, 39 anos, trabalha na gestão de duas delas, localizadas na Favela de Nova Holanda. Antes de ingressar na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde cursou letras, frequentou escolas fora da favela. A expectativa era ter um ensino melhor, menos afetado pela violência. “Hoje, como educadora, entendo que, mesmo com todas as dificuldades que passamos, porque a instituição está num local com muitos conflitos, precisamos continuar lutando para que ela e outros colégios existam e sejam respeitados”, afirma Viviane, que tem sob sua tutela quase mil alunos dos ensinos fundamental e médio.

     

    Revista Claudia.Professora Viviane Couto.Foto de AF Rodrigues
    Professora Viviane Couto Crédito: AF Rodrigues (AF Rodrigues)
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    De segunda a sexta-feira, a rotina de Viviane inclui, horas antes de o primeiro turno escolar se iniciar, vasculhar as redes sociais em busca de informações sobre potenciais tensões nas favelas. Dependendo da gravidade, ela decide se abre ou não a escola. Ela não é exceção. Uma em cada três escolas municipais da cidade foi fechada por pelo menos um dia em 2017, quando a prefeitura mantinha esses dados. “Um dia sem aula é completamente improdutivo, com o acréscimo da angústia de acompanhar as notícias pensando se estão todos bem”, diz Viviane. Por causa dos riscos, uma hipótese frequentemente debatida é a transferência das escolas que ficam em áreas de risco, como na Maré. No início deste ano, o novo secretário de Educação do estado, Pedro Fernandes, afirmou à imprensa que essa seria uma possibilidade. Entretanto, o plano não está sendo colocado em prática.

    Os dias com suspensão de aulas são, geralmente, os que têm eclosão de operações policiais para desarticular o crime organizado – quando acontecem a maior parte dos confrontos entre traficantes e a polícia. Nesse cenário, as favelas saem completamente da rotina, com barricadas fincadas nas ruas para impedir a passagem dos carros de polícia, comércios fechados e correria para chegar em casa. Um quarto das mortes violentas de crianças no Rio está relacionado a esses confrontos. Essas incursões são rotineiras para quem vive nessas áreas. Mas, segundo os moradores, parecem estar acontecendo com mais frequência as ações com o uso de helicópteros, estratégia do governo de Wilson Witzel (PSC). Destaca-se, entretanto, que, mesmo visto de cima, a arquitetura e a disposição dos prédios nas comunidades favorecem a identificação das áreas escolares. “Falta gestão para que a política de segurança pública, hoje pautada pelo confronto, não seja sinônimo apenas de força policial”, afirma Melina Risso, diretora de programas do Instituto Igarapé.

    Revista Claudia.Foto de AF Rodrigues
    Crédito: AF Rodrigues (AF Rodrigues/CLAUDIA)

    Para tentar reduzir o impacto nas comunidades, uma ação civil pública articulada entre entidades das favelas, como a ONG Redes da Maré, e a Defensoria Pública do Rio normatiza as intervenções policiais e determina que sejam evitados os horários de entrada e saída de alunos. O problema é que ela nem sempre é cumprida. “Por causa de ações baseadas na força, há descrédito dos moradores sobre a legitimidade da polícia e do próprio Estado”, afirma Pedro Strozenberg, ouvidor-geral da Defensoria, que lidera o projeto Circuito de Favelas por Direitos, ouvindo moradores sobre violações da corporação. Em agosto, a Redes da Maré recolheu 1,5 mil cartas escritas por crianças de escolas públicas da comunidade e enviou ao Tribunal de Justiça do estado. Eram relatos de violência, medo e pedidos para que os confrontos cessassem. “Os policiais entram de helicóptero dando tiro de cima pra baixo. Parece que não têm educação com os moradores”, escreveu uma criança.

    Revista Claudia.Foto de AF Rodrigues
    Crédito: AF Rodrigues (AF Rodrigues/CLAUDIA)
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    Nos oito primeiros meses do ano, houve o recorde de 1.249 homicídios cometidos por policiais no estado. À reportagem, a Secretaria de Estado da Polícia Militar afirmou que as operações são feitas dentro da lei, visando à segurança de moradores e policiais. Já para a Secretaria Municipal de Educação, as ações pontuais não atrapalham a rotina de estudos. “Um helicóptero sobrevoou uma escola há alguns dias. Houve confronto externo. Naquele momento, os alunos e professores se abrigaram em um trecho da escola em que ficam mais protegidos. Mas o helicóptero não fica ali sobrevoando o dia inteiro, nem horas seguidas”, diz a nota.

    Lista de presença

    Era Dia do Professor, 15 de outubro, quando T. conversou com a reportagem em um local distante do seu trabalho. Ela pediu para não ter seu nome revelado, evitando eventuais represálias. Aos 29 anos, está há dez em salas de aula, sempre em escolas públicas. Definiu que essa seria sua carreira em 2010, quando era estagiária de ensino em uma classe com adolescentes em distorção entre idade e série. Assistiu a uma briga entre estudantes ser apartada pela professora. “Eu falei que não sabia como ela aguentava, que já teria desistido. Ela respondeu: ‘Eu não posso desistir, muitos deles só têm a mim’”, lembra, emocionada.

    Moradora da Baixada Fluminense, ela dirige uma escola de educação infantil na Maré. “Só pelo que ouvimos falar das favelas, já dá medo de ir até elas e ficar por lá. Obviamente, não quero viver nessa situação de confronto, mas não pretendo sair. Nós, professores, somos os únicos representantes do Estado nesses locais por mais de 300 dias ao ano”, afirma, confiante do seu papel como agente transformadora, capaz de romper as profecias de que os estudantes favelados se formarão bandidos. “Ao mesmo tempo, dizer para esses alunos que eles têm as mesmas oportunidades dos colégios do asfalto, alheios aos conflitos, é naturalizar a violência que vivenciam. Não dá para fingir que nada acontece”, argumenta. Semanas antes, seus alunos, de até 5 anos, tiveram que ser distraídos com músicas e brincadeiras para não temerem a movimentação de aeronaves policiais e os tiros despejados por eles próximo da escola. “Isso nos dá um misto de muita revolta e perplexidade”, desabafa.

    Revista Claudia.Foto de AF Rodrigues
    Crédito: AF Rodrigues (AF Rodrigues/CLAUDIA)

    Temendo que tiros atravessassem o telhado, o Projeto Uerê, instalado desde 1998 na Maré, que atualmente atende cerca de 270 alunos, fixou uma placa sobre a cobertura para avisar que ali há uma escola. Fundado por Yvonne Bezerra de Mello, o colégio tem um método de ensino distinto do tradicional, menos hierarquizado em relação aos conhecimentos do professor. “Eles adoram música e dança. Então aproveitamos isso para tirá-los do foco do que acontece lá fora”, conta a professora Eliane Lima, 51, no projeto há 12 anos. Ela dá aulas para uma série de alunos de diferentes idades, que respondem com agilidade e brilho nos olhos às dinâmicas da professora.

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    Revista Claudia.Foto de AF Rodrigues
    Professora Eliane Lima | Crédito: AF Rodrigues (AF Rodrigues/CLAUDIA)

    O desempenho dos estudantes em sala é diretamente impactado pelo cotidiano violento – além da interrupção de aulas, notam-se aumento das brigas entre eles, consequência do estresse e da falta de acompanhamento psicológico; e prejuízo nas avaliações de ensino. No mesmo ano da morte de Duda, a escola de Claudielle e Simone não teve nota no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) porque não atingiu o quórum mínimo de alunos para que o resultado do exame fosse considerado. O estado fluminense foi, inclusive, o único do país a não atingir a meta da avaliação em nenhum segmento dos ensinos fundamental e médio. A evasão escolar é outro problema. Na tentativa de escapar da escalada de violência, as mudanças entre comunidades são frequentes, um dos diversos motivos para o abandono da escola. “Isso ocorre também por causa da presença do tráfico, que muitas vezes expulsa famílias”, explica Júlia Ventura, coordenadora do programa Aluno Presente, que promove a reinserção de estudantes na educação.

    Revista Claudia.Foto de AF Rodrigues
    Crédito: AF Rodrigues (AF Rodrigues/CLAUDIA)

    Trabalhando em escolas encravadas entre os Morros da Mineira e da Coroa, próximos de Santa Teresa, outra professora que preferiu não ser identificada, M., 54 anos, acha que o tema da violência é pouco discutido com os estudantes. “Mesmo longe das áreas de risco, há alunos que, para chegar à escola, precisam enfrentar todo tipo de situação. Não é possível achar que uma criança não será afetada ao ter que desviar de um cadáver no chão para estudar”, diz a educadora, formada em artes cênicas.

    Mesmo para os jovens e adultos, retomar os estudos pode ser uma prova de resistência. Alunos de 18 até mais de 70 anos lotam as salas de aula da professora de língua portuguesa Helaine Alves, 40 anos, que desde 2013 trabalha em unidade de educação para jovens e adultos. “São alunos que, mais do que nenhum outro, escolhem estudar e vão todos os dias para recuperar o acesso que não tiveram à educação”, conta. Nascida na Rocinha, ela aprendeu a dar aulas na Maré começando pelas salas do cursinho comunitário, que apoia alunos que querem entrar em escolas de referência na cidade ou prestar vestibular – figuras notórias da comunidade se formaram ali. Helaine dividia o cotidiano de trabalho com Marielle Franco, vereadora assassinada em 2018 em crime ainda não solucionado. “Eu sofri muito o impacto dessa morte, foi muito difícil continuar trabalhando aqui”, revela.

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    Revista Claudia.Foto de AF Rodrigues
    Professora Helaine Alves | Crédito: AF Rodrigues (AF Rodrigues/CLAUDIA)

    Também passou por lá Flávia Cândido, 37 anos, estudante de letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), que retribui dando aulas à noite em cursinhos populares nas favelas de Jacarezinho e Vila Cruzeiro. “É revolucionário esses estudantes irem às aulas, ainda que tenha havido uma operação policial no mesmo dia, porque querem transformar a vida deles e de sua comunidade. Pra mim, são espaços de cura”, afirma. A decisão das professoras de continuar cumprindo seu ofício é uma escolha diária entre o risco de morte que elas correm e a educação.

    Revista Claudia.Foto de AF Rodrigues
    Professora Flávia Cândido | Crédito: AF Rodrigues (AF Rodrigues/CLAUDIA)

     

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