Sentindo-se confortável e segura, você envia uma foto íntima para a pessoa com quem está se relacionando. Minutos depois, vê a imagem devassada na internet. Sua privacidade foi violada.
Mulher e chefe de família, você preenche formulários para receber benefícios do governo. Suas informações chegam a terceiros, que julgam o seu comportamento ou comercializam seus dados. Sua privacidade foi violada.
Você é uma figura pública e o fato de ser mulher parece legitimar ter sua vida pessoal exposta e manipulada nas redes sociais. Sua privacidade foi violada.
Principalmente com o avanço das tecnologias digitais e da internet, o direito à privacidade não é realidade para muitas mulheres.
O direito à privacidade, ao longo dos séculos, foi sendo elaborado como “neutro” em termos de gênero e outros marcadores da diferença. Todos teriam direito à liberdade de existir, de pensar e, no âmbito particular, de decidir sobre suas ações. Porém, para parte das mulheres, a privacidade foi uma obrigação imposta culturalmente e pela força – esperava-se recato, resguardo, discrição, domesticidade.
A privacidade foi justificativa (inclusive jurídica) para a violência doméstica, afinal, no espaço privado não entraria a lei. A filósofa e ativista Angela Davis, autora de Mulheres, Cultura e Política, lembra, contudo, que as mulheres negras não tinham opção a não ser trabalhar fora de casa. E também nesses ambientes, tinham suas escolhas cerceadas.
A pesquisadora Bruna Angotti revelou que, no Brasil, as primeiras prisões foram ocupadas por mulheres – em geral, jovens trabalhadoras, acusadas de “perturbar” o espaço público, em grande número condenadas por crimes e contravenções penais como alcoolismo, desordem, mendicância e escândalo.
Não é à toa que grande parte dos ataques que as mulheres sofrem são violações da privacidade: doxxing (revelação de dados pessoais), disseminação não consentida de imagens íntimas (conhecida por revenge porn), investigações sobre a vida sexual e a moralidade, além de várias formas de assédio.
Quando os dados vitimizam
As mulheres são 89% do total de beneficiários do Programa Bolsa Família – a maioria delas, negra –, que atende hoje mais de 14 milhões de famílias brasileiras. Para participar do programa, oferecem grande quantidade de dados sobre sua vida, família e residência. O objetivo, muito bem colocado, é o de identificar as múltiplas dimensões da pobreza e direcionar políticas públicas. A responsável pode informar, por exemplo, que não tem saneamento básico em casa e o governo consegue planejar a implementação na região.
Porém, nos últimos anos, a divulgação de dados pessoais das beneficiárias do programa resultou em fraudes por WhatsApp ou SMS, e ainda ao direcionamento ilegal de propaganda eleitoral. Há outras vulnerabilidades, como na publicação da lista das beneficiárias, feita pelo governo mensalmente, que inclui nome e documento, e se torna um dos instrumentos da vigilância social que essas mulheres sofrem. No ano passado, analisamos dados da Ouvidoria do Programa Bolsa Família, que recebe as denúncias contra as beneficiárias. Vimos como as pessoas que denunciam, além de usar muitas informações pessoais, cercam essas mulheres de julgamentos sobre como ser mãe, onde gastar seu dinheiro, e o que fazer da sua vida privada. Tanto a disponibilidade dos dados quanto o mecanismo de denúncia servem ao reforço desse controle.
Isso não é propriamente uma novidade. Em Pensamento Feminista Negro, a socióloga Patricia Hill Collins apresenta o conceito de “imagens de controle” para analisar a construção de estereótipos que servem para manter desigualdades. Um deles, o das welfare queens, remete à ideia preconceituosa de mulheres preguiçosas, que mentem e têm filhos apenas para ter acesso a mais benefícios. Faz você se lembrar de algo?
A privacidade como autonomia
O que a gente tem de novo é que muitas faces da vida contemporânea – de políticas sociais aos aplicativos que usamos – envolvem o uso de uma quantidade massiva de dados, e esse processo não foi acompanhado de uma visão de privacidade que leve em conta as múltiplas e diversas mulheres, nas suas necessidades e dificuldades. Mas ainda dá tempo de ver esse momento como uma oportunidade.
A privacidade deve servir para que ganhemos escolha, dignidade e espaço público. É um anteparo, uma proteção. Toda automatização, toda coleta, todo cruzamento, toda divulgação de dados deve reconhecer a desigualdade de gênero do início ao fim, do desenho à implementação, para que não produzam ou reproduzam discriminação. Os dados tratados e os algoritmos, desenvolvidos pelo poder público ou por empresas, são resultado do trabalho de humanos, e podem carregar seus preconceitos de muitas maneiras. Isso leva a profecias autorrealizáveis.
Os extremos da invisibilidade e da superexposição em bases de dados, a falta de ciência e controle sobre dados pessoais, o monitoramento da vida sexual e reprodutiva, são resultado de políticas e atos envolvendo dados e tecnologias que ignoram, incorporam e amplificam situações de dominação. Outras práticas são possíveis e necessárias se buscamos justiça de dados e justiça de gênero, e se queremos garantir privacidade a todas e todos de verdade.
Mariana Valente (à esquerda) é diretora do centro de pesquisa InternetLab e professora do Insper. Investiga as relações entre gênero, direito e tecnologia.
Nathalie Fragoso é advogada criminalista e pesquisadora, com atuação em temas como tecnologia e direitos humanos.
Em parceria com a Privacy International, fizeram uma pesquisa sobre a privacidade das mulheres beneficiárias do Programa Bolsa Família.