Depois de colocar a filha, Lara, 4 anos, na cama, a engenheira química carioca Rosana Cintra, 36, também foi se deitar. Como faz eventualmente quando o sono não vem, resolveu checar o celular. Já era madrugada, e ela notou um volume anormal de mensagens no grupo de WhatsApp das amigas da faculdade que, como ela, são mães. “Imaginei que alguma fofoca boa estivesse rolando e fui logo ver, querendo participar”, lembra.
Ao abrir a conversa, porém, se deparou com a imagem de uma boneca assustadora, de olhos esbugalhados, pele pálida e um sorriso sinistro, que surgia em um vídeo a que Lara e muitos coleguinhas da menina amam assistir, o Baby Shark. “Não eram apenas fotos, mas uma animação perfeita em que Momo, aquela personagem horripilante, ia e vinha, com imagens de giletes, ensinando como se cortar.”
Naquela noite, Rosana se tornou mais uma dos milhares de mães que, por meio de grupos nos aplicativos de conversa, tiveram acesso a uma creepypasta. É assim que são chamadas as histórias de terror de autoria quase sempre desconhecida, tratadas como lendas, que se espalham pelos meios cibernéticos. São relatos como os da famosa loira do banheiro de tempos atrás, que agora ganham outros contornos e espaços.
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Sobre a Momo, a boneca que incitava crianças pequenas a se suicidar, o que se disse à época é que o vídeo estaria hospedado no YouTube Kids, aplicativo da plataforma de vídeos destinado aos pequenos. O YouTube apressou-se em divulgar uma nota esclarecendo que a informação de que o conteúdo estaria no espaço infantil não procedia. “Só me acalmei quando Lara acordou. Mostrei a imagem a ela, que me garantiu nunca ter visto a tal boneca”, conta Rosana, que ainda assim restringiu o acesso online da garota, permitindo filmes e desenhos somente pela plataforma Netflix.
No caso da bancária mineira Marcela*, 35, a resposta da filha, de 7 anos, foi diferente. “Quase chorando, ela disse a mim e ao pai que Momo apareceu no meio de um vídeo de slime”, lembra. Diante da afirmativa da menina, tentou identificar a animação no histórico de mídias assistidas no YouTube. Não conseguiu e, por isso, acabou proibindo os filhos de mexer em qualquer dispositivo eletrônico sem supervisão.
Momo quem?
A personagem Momo já é velha conhecida do YouTube, antes mesmo da recente polêmica brasileira. Sua aparição em vídeos infantis começou em meados de 2018 na Irlanda e nos Estados Unidos e passou depois pela Argentina e pela Colômbia, sempre em contextos similares, estimulando crianças a atentar contra a própria vida.
De acordo com Clarissa Orberg, gerente de parcerias de conteúdo infantil e educacional do YouTube, as animações se espalharam muito rapidamente por aqui, talvez pelo fato de no Brasil se usar mais o WhatsApp do que nas outras localidades. Clarissa afirma categoricamente que os vídeos divulgados no WhatsApp nunca estiveram no YouTube adulto nem no Kids, aplicativo que hospeda apenas conteúdos considerados adequados para crianças menores de 13 anos. “Nenhum usuário conseguiu encontrar um link ou a página para o vídeo na nossa plataforma”, garante ela. “Imaginamos que, por ser um vídeo, era automaticamente associado ao YouTube”, explica.
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Mesmo sendo uma plataforma aberta e colaborativa, em que qualquer um pode publicar material audiovisual, o YouTube possui regras e filtros – alguns automáticos, com inteligência artificial, e outros de revisores humanos – para tentar barrar conteúdo inadequado. Quando se trata de material para o público infantil, esses filtros são redobrados. A versão para menores oferece ainda a possibilidade de medir e definir por quanto tempo a criança fica online, desligando automaticamente após o limite estipulado. Por fim, pode-se também bloquear o recurso de pesquisa.
Infância superconectada
Em abril deste ano, uma pesquisa do Ibope revelou que as crianças brasileiras são as que passam mais tempo conectadas em comparação com as de outros países. No Brasil, os pequenos internautas com idade entre 2 e 11 anos chegam a ficar 17 horas por mês na internet, média acima da registrada na França, por exemplo, onde crianças gastam cerca de dez horas e 37 minutos na rede.
A histeria coletiva provocada pelas aparições da boneca Momo e alimentada por histórias anteriores, como o desafio do desodorante ou da Baleia Azul, que também incitavam crianças a realizar brincadeiras que atentavam contra a vida, reacendeu a discussão sobre a relação dessa geração com a internet. E, mais além, mostrou o enorme desconhecimento que a maior parte dos adultos ainda tem sobre os espaços obscuros da rede, os caminhos para uma experiência segura e a legislação para lidar com conteúdos inadequados.
“A internet é hoje o que a TV foi para muitos na década de 1980, praticamente uma babá eletrônica”, aponta a psicoterapeuta Monica Pessanha, de São Paulo. Esse é um claro reflexo da vida corrida que a maior parte dos pais leva. Monica escuta frequentemente em seu consultório queixas dos adultos sobre o uso exagerado de dispositivos eletrônicos na infância.
O que acontece é que a tela hipnotizante do celular costuma ser uma grande aliada para distrair os pequenos quando os pais precisam resolver algo que os impede de dar atenção aos filhos naquele momento ou estão simplesmente exaustos, buscando um descanso. E é nessas situações que moram dois perigos, o da falta de equilíbrio na permissão do uso e o da ausência de acompanhamento do que está sendo visto.
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“Não podemos demonizar o uso da internet. Mas é necessário ensinar as crianças a não serem dependentes do mundo virtual e a navegarem com segurança”, diz ela. Idealmente os pequenos não devem ser expostos a telas antes dos 2 anos, conforme recomenda a Sociedade Brasileira de Pediatria. E, dessa idade até os 5 anos, o limite não deve ultrapassar uma hora diária nem contemplar conteúdos com práticas violentas, como jogos com armas que matam ou machucam, por exemplo.
Aprendendo para ensinar
Se a maternidade já parecia desafiadora antigamente, a tecnologia veio conferir uma dificuldade adicional à missão de educar. “Os próprios adultos ainda estão desbravando esse território”, diz a advogada Alessandra Borelli, especialista em direito digital e cofundadora da Nethics, empresa de educação focada no uso seguro da internet para crianças e adolescentes, em São Paulo. “Além de os pais não terem a educação digital de base, muitas vezes falta a eles informação clara e abrangente para atualizá-los a cada novo episódio desses”, completa ela.
Como as mães Rosana e Marcela, diante de algo negativo, como a história de Momo, a tendência entre os pais é optar por limitar muito ou proibir de vez o acesso à internet. “Assistindo às matérias sobre Momo na televisão, ouvi nomes como deep web, algo que eu nunca soube que existia ou que fosse possível acessar”, relata Rosana. “Confesso que ainda não entendo bem como funciona. Mas, na dúvida, Lara agora só assiste aos desenhos no Netflix em um perfil infantil criado para ela.”
O marido de Marcela apagou do celular o aplicativo YouTube Kids, instalado meses antes para entreter a filha no trânsito da volta da escola. “Mesmo tendo seguido as configurações de segurança, depois da Momo ele nunca se convenceu de que não havia nada ali. E preferimos que ela não acesse mais nada que seja de conteúdo aberto”, conta a bancária.
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Embora serviços como o YouTube e demais redes e plataformas de conteúdo colaborativo mostrem esforço no controle do que é publicado, não há garantia total de que alguém mal- -intencionado não vá burlar os filtros para subir algo que não deveria ter sido aprovado. Ali, tanto no espaço para maiores quanto no infantil, estão no mesmo balaio canais oficiais e conteúdo feito profissionalmente e produções caseiras, de usuários comuns. Logo, cabe integralmente aos pais a curadoria do que pode ser visto pela criança. Outro ponto delicado, a publicidade que aparece antes dos vídeos no YouTube Kids, por exemplo, só é evitada caso a família assine um pacote que barre a exibição de propaganda.
Responsabilidade compartilhada
Para Alessandra Borelli, transferir essa responsabilidade somente para os pais é complexo e pouco efetivo para a segurança de uma geração que já nasce ultraconectada e fatalmente terá contato cedo com a tecnologia. Os provedores de conteúdo também precisam assumir um compromisso de segurança. “Quando você oferece acesso a uma comunicação sem fronteiras, tem de dar conta de 100% dos riscos”, afirma. De acordo com Alessandra, não é razoável considerar que sempre haverá uma mãe ou um pai esclarecidos, em condições de estabelecer um controle adicional para que os filhos não acessem algo impróprio e perigoso. “Se a orientação não é compreensível para todos, se pais analfabetos não entenderão, então a empresa deve revê-la para torná-la inclusiva”, avalia.
A cobrança por políticas mais rígidas de segurança tem avançado em alguns países. No Reino Unido, a partir de julho, entrarão em vigor novas diretrizes para proteger crianças na rede. Além de obrigar alguns serviços online – de aplicativos de games a brinquedos que possibilitem conexão – a excluir recompensas ou técnicas de esforço, como os famosos likes, para ganhar maior relevância nas plataformas, passou a exigir comprovação extra de maioridade para acesso a conteúdos pornográficos. Quem não se adequar aos novos parâmetros poderá enfrentar um bloqueio de acesso às suas plataformas por meio do governo.
No Brasil, as empresas de conteúdo possuem canais para recebimento de denúncias. E cabe ao Ministério Público garantir a defesa dos direitos da criança e do adolescente e, nesse âmbito, propor ações cíveis contra plataformas que exibam algo inadequado para esse público.
Caminhos para uma experiência positiva
Pais de adolescentes também estão vivendo conflitos com o mundo online. Apesar de o discernimento dos jovens diante das ameaças ser maior, aumentam também os riscos. Crimes recentes, como o massacre de Suzano, na Grande São Paulo, quando dois jovens assassinaram colegas e funcionários da escola, popularizaram termos como deep web e dark web, camadas da internet às quais poucas pessoas têm acesso.
O conteúdo criado nesses ambientes é ilegal, incluindo a exaltação de movimentos extremistas e violentos, a exemplo do nazismo. Os temas impróprios são discutidos em fóruns, os chans, difíceis de ser rastreados, complicando a tentativa de denúncia ou de remoção do material. O perigo maior, contudo, não é os adolescentes acessarem essa parte da internet – afinal, não é tarefa fácil –, mas o conteúdo chegar à superfície, aos lugares de fácil acesso. Muito além de conhecer os caminhos e meandros da internet, é nas relações off-line entre pais e filhos que residem as premissas para se estabelecer uma rotina saudável no ambiente online.
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A psicoterapeuta Monica alerta que muitas vezes o uso excessivo de equipamentos eletrônicos por parte da criança reflete a falta de interação com os adultos. “É fundamental conhecer bem a rede para controlar o tipo de mídia que será consumido e introduzir eletrônicos aos poucos na rotina da criança, mas também imprimir desde cedo a frequência com que elas navegarão”, orienta.
Como Monica, Alessandra Borelli acredita que atualmente esse contato é inevitável já na idade escolar. Porém, não considera o cenário negativo. “Vejo como uma oportunidade que talvez não existisse para nós, da primeira geração que conheceu a internet”, reflete. “Nossas crianças e adolescentes têm a chance de aprender – e nos ensinar – como usar a tecnologia mais a nosso favor. E evitar que armadilhas virtuais nos peguem no mundo real.” Ela acrescenta que educação digital deve ser ainda uma preocupação das escolas, sobretudo em lugares menos favorecidos, onde pouca informação chega, mas muitos perigos virtuais alcançam.
A internet além do que você vê
Creepypasta: Histórias de horror e lendas urbanas criadas para serem propagadas na internet e perturbar quem assiste a elas. São divulgadas em fóruns e sites menos conhecidos e complementadas com áudios, fotos e/ou vídeos distorcidos ou chocantes.
Momo: Originalmente batizada de Mother Bird, Momo é uma escultura de silicone criada pelo japonês Keisuke Aiso em 2016. Ela foi inspirada em personagens sobrenaturais do folclore japonês e chinês, com base na história de uma mulher que morreu durante a gravidez e cujo fantasma assustava e machucava crianças. A estátua foi destruída pelo escultor depois das primeiras polêmicas.
Deep web: Parte escondida da internet, em que nada é indexado, ou seja, não é possível achar um endereço “.com”, como estamos acostumadas a fazer. Criada para armazenar documentos confidenciais da força militar americana, acabou se tornando um esconderijo virtual para criminosos.
Dark web: Também conhecida como dark net, é a camada mais profunda da rede, onde acontecem negociações de redes de tráfico de drogas, comércio de armas, produtos roubados e documentos falsificados, pornografia e pedofilia e ofertas de turismo sexual. Normalmente, essas trocas são feitas por mediadores que levam comissão a cada transação.
Chans: Abreviação para channel, ou canal, são fóruns de discussão que, na deep web, são usados para compartilhar conteúdo ilegal, como discursos de ódio, neonazismo, pornografia infantil, vídeos e imagens de abusos, assassinatos e tortura.
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