Era Dia das Mães quando Alyne Dias Luna, 30 anos e grávida de oito meses, foi forçada a deixar Fernando de Noronha para dar à luz em Recife. Temendo uma possível contaminação pelo coronavírus, como noticiado em reportagem do Fantástico, ela havia ignorado duas determinações judiciais sobre seu encaminhamento para o continente e fugido, se escondendo na ilha até ser aconselhada pelo advogado a se apresentar espontaneamente. Da delegacia, a gestante foi escoltada até o aeroporto de Noronha, onde embarcou para a capital em um avião fretado pela Secretaria de Saúde de Pernambuco. Vinte dias depois, nasceu Helena, de cesárea e mais cedo que o esperado.
Alyne dificilmente será a última mulher obrigada a sair de Fernando de Noronha para o nascimento do filho, apesar de ser a primeira que sofreu diretamente com a interferência da Justiça. Por protocolo estabelecido pela Administração local, alcançada a 28ª semana de gestação, toda grávida noronhense deve ser transportada para Recife, por questões de segurança, uma vez que o Hospital São Lucas, o único da ilha, não possui maternidade e estrutura para atender possíveis complicações durante o parto. A ausência desse tipo de investimento é justificada pelo alto custo de manutenção do serviço e do baixo número anual de nascimentos. Segundo a Secretaria, cada um dos 21 partos realizados em média por ano chegaria a custar 170 mil reais.
Para a jornalista e cineasta Joana Nin, porém, os argumentos da saúde e do financeiro são falaciosos. Em visita à Noronha como turista em 2010, ela ouviu relatos sobre a questão de ser proibido nascer na ilha e ficou intrigada. Decidiu então debruçar-se sobre o assunto e, em 2014, retornou para consolidar seu projeto de fazer um filme a respeito da situação. Três anos depois, deu início à pré-produção de um longa que acompanhou por dois anos uma parcela das noronhenses grávidas. Seu objetivo era entender a complexidade real de uma questão tão peculiar. O resultado poderá ser visto em Proibido nascer no paraíso, documentário com lançamento em aberto por causa da pandemia.
“Toda vez que a população se organiza para tentar discutir a sério a questão dos partos na ilha, a Administração entrega esse raciocínio”, ela conta. “Mas se é em nome da saúde delas, por que no meio de uma pandemia se obrigaria uma mulher grávida e saudável a sair de um lugar com zero casos da Covid-19 para um que está infestado?”, questiona Joana.
Mas nem sempre foi assim. Segundo relata Nin, até 2004, o hospital da ilha possuía uma sala de parto, um centro cirúrgico e incubadora. Haviam situações em que pela ausência de uma equipe capacitada, algumas gestantes realmente precisavam ser transportadas para Pernambuco, mas no geral a instituição funcionava bem, mesmo que com certa precariedade. Em fevereiro daquele ano, contudo, José de Arimathea, o último médico a trabalhar na ilha realizando partos, deixou Fernando de Noronha e a maternidade foi desativada. Coincidentemente, foi também nessa época que o governo editou o Decreto Distrital 18/2004, documento que estabeleceu um controle mais rigoroso do fluxo de entrada na ilha.
“Desde 1988, existia um projeto de transformar Fernando de Noronha em um lugar turístico, o que se consolidou na década de 1990. Mas então começaram a surgir problemas de pessoas que iam para a ilha e não voltavam mais. Houve o início de uma preocupação formal com o controle migratório e esse decreto criou regras para lidar com isso”, explica a cineasta. Oficialmente, a justificativa dada pela cartilha da Promotoria de Justiça do Distrito de Fernando de Noronha é de que “o controle do fluxo de pessoas no Arquipélago é fundamental para preservar o meio ambiente, promovendo o equilíbrio da natureza com a presença humana e garantindo condições dignas de vida aos moradores locais.”
As medidas parecem ter funcionado em partes. Em 2004, estimava-se que o arquipélago tinha uma população de 3.100 habitantes. Quinze anos depois, este número recuou para 3.061, segundo estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). De lá para cá, apenas quatro crianças nasceram em Noronha. Turistas, por outro lado, somente em 2019 foram mais de 106 mil. São pessoas de todos os cantos do mundo interessadas em desfrutar das trilhas, pontos de mergulho e belezas naturais que o paraíso tem a oferecer.
Mas se o turismo é o centro das atenções, o mesmo não se pode dizer da saúde. Com um atendimento de média complexidade, diante de acidentes graves, o Hospital São Lucas é capaz apenas de oferecer suporte em primeira instância. Em uma verdadeira corrida contra o tempo, pacientes em estado de risco são sempre encaminhado para Recife por meio do transporte aéreo, em viagens que duram em média 1 hora. Por isso, explica Joana, o problema não se resume apenas às maternidades. “A discussão de ter uma maternidade em Noronha é natimorta. Não vai ter, lógico. Não é viável. O que estamos falando é de socorro. De ter um centro cirúrgico capaz de socorrer uma mulher que tenha, por exemplo, baixíssimo risco e opte por ter um parto normal na ilha, mas que eventualmente apresente uma complicação. E também socorrer um acidentado, um enfartado ou um mergulhador. Como um lugar que recebe tantos turistas e que cobra uma taxa de entrada pode não ter atendimento? Não estamos falando de uma cidade pobre do interior. É uma ilha turística rica”, aponta.
Ela estranha a coincidência entre as datas de início do controle migratório e da suspensão dos partos e tem um palpite sobre uma das razões por trás das medidas: o direito a terra. Apesar de vetada a compra de terreno em Noronha, nativos e moradores permanentes que estejam há mais de dez anos na ilha podem solicitar ao governo uma permissão para uso da terra, a partir do Termo de Permissão de Uso (TPU). A conquista de um TPU, consequentemente, torna a pessoa um possível parceiro para investidores do turismo, já que para abrir um estabelecimento lá é necessário ter sócio local. “Creio que o receio seja de que pessoas que não são da ilha comecem a querer ter filhos na ilha para ter direitos. Inclusive, não só do governo, mas da população também. Os nativos querem partos na ilha para eles, não para quem é de fora. A preocupação é parecida: impedir oportunistas. O problema é que, ao invés de enfrentar esse problema pelo Legislativo, por exemplo, eles simplesmente optam por penalizar a mulher.”
A penalização não significa abandono completo. Toda gestante em Fernando de Noronha tem direito a realizar mensalmente um acompanhamento pré-natal no posto de saúde local. Caso seja necessário um exame, porém, será preciso se deslocar até Recife, em viagens custeadas pela administração, para serem atendidas no SUS. O período de três ou quatro meses anterior ao parto e, obrigatoriamente, passado na capital pernambucana também é bancado pelo Estado, que fornece hospedagem, três refeições diárias e uma passagem de ida e volta para um possível acompanhante. Mas quem pode ficar quatro meses fora do trabalho, pergunta Joana, apontando para o fato de que muitas licenças-maternidades são negociadas caso a caso e poucos são os empregadores compreensíveis com a situação. E finaliza: “A assistência é dada, de fato, e não é ruim. O problema é que ela é compulsória. Na prática, a mulher não tem escolha. É uma violência travestida de assistência”.