Muitos anos atrás, eu tive uma vizinha que fazia doces para vender. Era uma senhora de uns cinquenta anos que morava com a mãe, já bem idosa. Vira e mexe, eu comprava rocambole e biscoito na casa dela. Bom. Essa minha vizinha brigava com a mãe quase que diariamente. Moravam só as duas no apartamento e, logo, a mãe dela também era minha vizinha, mas, na minha cabeça, eu me referia a elas assim: a minha vizinha. E a mãe da minha vizinha.
Eu escutava os gritos de impaciência e as frases ríspidas não só vindos do apartamento ao lado como na minha frente – no elevador, no hall do prédio, até na padaria, quando a gentes e cruzava lá. Tudo era motivo para que minha vizinha implicasse com sua mãe, levantasse o tom de voz, ficasse impaciente ou fosse simplesmente grosseira. A grosseria era tanta que, por causa daquelas cenas, passei a repensar o jeito como eu tratava a minha mãe: meus gritos e maus tratos gratuitos ficaram lá na minha adolescência, mas, sabe como é, a gente sempre pode melhorar.
Foram anos acompanhando aquela dinâmica. Comigo, a vizinha era um doce. Mas com a mãe…
Às vezes, eu pensava: bom, eu aqui, com dó da mãe da minha vizinha, mas sabe-se lá a relação que essas duas tiveram ao longo da vida, né? Vai que a mãe dela era uma peste… Mesmo assim, eu não conseguia evitar: morria de dó daquela velhinha de aparência fragilizada recebendo um tratamento tão hostil da própria filha.
Bom, após um breve período doente, a mãe da minha vizinha faleceu.
E então eu vi minha vizinha definhando. A tristeza era tanta que ela não se segurava nem publicamente – costumo interpretar esse “transbordamento social” da tristeza, essas lágrimas que não conseguem ficar presas no quarto e são expostas na rua, no restaurante, no ônibus, como um sinal de que, puxa, essa dor está mesmo sufocante, desesperadora. Ela chorava na minha frente, quando eu ia à casa dela, quando eu puxava papo no elevador, quando cruzávamos na rua. Tinha olheiras profundas, dizia que não conseguia dormir. Cheguei a sugerir que ela fizesse terapia e passei o contato do meu acupunturista para ver se melhorava o sono dela (ela não quis saber de nenhum dos dois, e daí sugeri mais uma vez e não voltei a falar sobre isso, afinal, né… Não éramos grandes amigas, ela só era a minha vizinha que me vendia rocamboles).
Minha vizinha, que nunca tinha sido exatamente uma pessoa alegre, carregou aquela fisionomia tristonha e pesada por mais de um ano. Um dia, ela me confessou que, nos seis primeiros meses, chorou todos os dias. Todos os dias… Pela morte de uma mulher que ela havia destratado todos os dias, em casa e em público. Na minha (enxerida) cabeça, ela devia somar a saudade da mãe a um arrependimento pelas grosserias. Deve ser muito doído esse arrependimento, eu pensava. Não poder pedir desculpas a alguém que já se foi deve ser uma impotência das mais amargas.
Por isso, levei um susto quando ela comentou comigo:
– Ainda tem dia que a saudade aperta. Eu gostava tanto dela. A gente sempre se deu tão bem…
A gente sempre se deu tão bem? Entendo que ela sentia saudade da mãe, que amava a mãe, mas… A gente sempre se deu tão bem?
Aparentemente, na cabeça da minha vizinha, não havia motivo para arrependimentos. Havia apenas o triste luto por uma pessoa com quem ela, ora essa, se dava superbem.
Que traiçoeira pode ser a intimidade. Ser educado e baixar a voz com o colega do curso de pós-graduação, de quem mal sabemos o nome, e soltar todos os demônios com a pessoa que amamos e que nos ama.
Nas relações íntimas, encontramos liberdade para ser sinceras, ficar mal-humoradas, usar nossas piores roupas. Estamos seguras naquele ambiente. Somos malcriadas numa terça-feira porque sabemos, afinal, que na quarta já estará tudo bem. Mas estará mesmo tudo bem?
Se, por um lado, me parece natural que a intimidade acolha nossa versão menos polida, menos civilizada, por outro, me parece triste reservar o mais agradável de nós para pessoas que nem se importam com nosso dente que está doendo ou com a reunião ruim que tivemos. Me parece mais triste ainda achar perfeitamente natural nos relacionarmos sem nenhuma gentileza com as pessoas mais próximas. Claro, não há necessidade de formalidade, o amor não é protocolar. Mas passaremos nossos dias gritando e destratando e xingando as pessoas que moram conosco, e, se um dia elas se forem, pensaremos: “A gente sempre se deu tão bem”?
A intimidade é especialista em abrigar brincadeiras, gargalhadas, silêncios confortáveis e palavras espontâneas. E em tolerar pequenas malcriações e caras fechadas, porque, vá lá, ninguém é de ferro. Mas em tolerar tudo? Em aceitar, resignada, o pior de quem reserva o lado A só para a rua e o B para dentro de casa?
No passado, é fácil ter boas relações. No futuro, também. O que me parece um belo e gratificante desafio é respirar fundo e ter uma boa relação aqui, agora, com as pessoas com quem temos intimidade – apesar da intimidade. Acho de uma beleza tão tocante tratarmos bem não só com os colegas da pós-graduação, mas nossos filhos, maridos, esposas, pais, cunhados. Não só nas datas especiais, não só depois de voltarmos de viagem, e não, definitivamente não só nas lembranças. “A gente sempre se deu tão bem”: que bom. Melhor ainda é conseguir uma convivência harmônica não na vaga e idealizada esfera do “sempre”, mas no concreto e mundano dia de hoje.
Liliane Prata é editora de CLAUDIA e escreve aqui toda quarta. Para falar com ela, clique aqui!