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Qual é o futuro do gênero?

Liniker, Cup e Gi discutem os anseios e as necessidades de quem não pertence ao padrão cisgênero.

Por Colaborou: Gabriela Teixeira | Edição: Bárbara dos Anjos Lima
Atualizado em 13 mar 2020, 16h13 - Publicado em 6 mar 2020, 07h00
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  • Contam as lendas de Juchitán de Zaragoza, pequena cidade localizada ao sul do México, que São Vicente caminhava pelo mundo com três sacos. Em um guardava sementes masculinas; no segundo, as femininas; e o último continha uma mistura de ambas. Ao passar pela região onde hoje fica o município, o terceiro saco teria se rasgado, criando assim as muxes, pessoas nascidas com características biológicas masculinas mas que ao longo da vida assumem a identidade feminina. Em Juchitán, as muxes são respeitadas e reconhecidas pela comunidade, onde exercem papéis sociais tradicionalmente atribuídos às mulheres, como o cuidado do lar e das crianças.

    A existência e a aceitação de um terceiro gênero, contudo, não se limitam a esse povo mexicano. No sul da Ásia, em especial na Índia, vivem as hijras, cuja origem também está associada à religião. Acredita-se que são capazes de atrair fertilidade e outras bênçãos, mas também podem amaldiçoar quem as contrariar ou se negar a pagar por seus serviços. Por isso, a presença delas é, ao mesmo tempo, desejada e temida em casamentos e batizados, aos quais comparecem mesmo que não tenham sido convidadas. Por séculos, as hijras mantiveram certo status na sociedade hindu, mas, com a invasão do imperialismo britânico, passaram a ser perseguidas. Relegadas ao degrau mais baixo da hierarquia social, hoje formam um grupo marginalizado.

    Muxes, hijras, ou ainda os two-spirited (dois espíritos, em tradução livre), das tribos indígenas da América do Norte, provam que, diferentemente do que parece, a existência de múltiplas identidades de gênero não se trata de um fenômeno contemporâneo. “A história mostra que a gente não está inventando, prova que é algo ancestral. Estamos reverberando o que é natural”, comenta a cantora Liniker durante a sessão de fotos para esta matéria.

    Liniker
    Assistente de foto: Duda Gulman • Beleza: Carol DaMaTa e Diva Green • Tratamento de imagens: Eddie Mendes (Júlia Rodrigues/CLAUDIA)

    É verdade, contudo, que muitos termos que nunca tínhamos ouvido antes estão se tornando mais populares. Para entendê-los, porém, é preciso antes compreender o conceito de gênero. Segundo a pesquisadora Flávia Novais, que dedicou seu mestrado aos estudos de gênero e sexualidade, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o termo foi cunhado dentro do feminismo com o objetivo de comprovar que as diferenças biológicas não determinavam por si só inferioridade das mulheres na sociedade.

    Estabeleceu-se assim a diferença entre gênero e sexo biológico, sendo que o primeiro é construído pela vivência em sociedade e o segundo refere-se apenas ao órgão genital com que se nasce. A identidade de gênero, portanto, nada mais é que o modo como alguém enxerga a si mesmo. Tomemos como exemplo uma pessoa nascida com a genitália feminina que, ao longo da vida, se reconhece como mulher. Ela é cisgênero, ou seja, tem sua identidade alinhada ao seu sexo biológico. Quando ocorre o contrário e há incompatibilidade entre os dois aspectos, trata-se de alguém trans. O que não significa que essa pessoa se identificará exclusivamente com o gênero oposto. Mas falaremos disso mais à frente.

    Tudo é construção

    Muitas vezes associada aos papéis sociais que homens e mulheres desempenham, a construção da identidade de gênero não ocorre de maneira instantânea em um momento específico da vida. “Pesquisas na área da psicologia determinam que, a partir dos 2 anos, as crianças já conseguem perceber as diferenças entre meninos e meninas. Aos poucos, de acordo com o convívio com outras pessoas, vão se dando conta do seu pertencimento a determinada identidade”, explica Flávia, que também atua como coordenadora técnica na ONG Somos, em Porto Alegre, cujo foco há 17 anos são questões relacionadas a diversidade de gênero.

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    O caminho do seu eu

    Liniker
    (Júlia Rodrigues/CLAUDIA)

    Cheia de percalços, a jornada da identidade é tumultuosa desde os primeiros momentos. Imagine, então, enfrentá-la diante dos olhares escrutinadores de milhares de pessoas. “Foi traumático”, sintetiza Liniker. A cantora de Araraquara, interior de São Paulo, tem 24 anos. Aos 19, viu coincidir sua transição com o despontar da banda Liniker e os Caramelows no cenário musical brasileiro. Contudo, mais do que o talento indiscutível, era a aparência dela que atraía a atenção. “O meu processo de desenvolvimento artístico era ceifado porque as pessoas queriam me colocar no sensacionalismo e fazer pautas para chocar. Eu não quero chocar, só quero ser eu”, desabafa.

    Aos poucos, os comentários invasivos mudaram de abordagem, passando a policiar sua feminilidade como mulher trans. Em um show no Circo Voador, no Rio de Janeiro, em que se apresentou de calça jeans, Liniker ouviu que era preferível que usasse saia. “As representações de nossa existência são muito plurais, somos muito mais que uma informação mastigada.”

    Quem sabe bem disso é Cup, 23 anos. Biologicamente menino, teve a masculinidade imposta desde a infância, mas não se reconhecia nas características atribuídas a seu sexo. “Acabou que sempre questionei gênero sem saber que estava fazendo isso. Eu não sentia vontade de me encaixar porque não via sentido naquilo”, afirma. Em suas pesquisas sobre o assunto, descobriu a não binaridade e percebeu que não precisava prender-se a um gênero para construir sua identidade.

    Não binários são pessoas que ultrapassam a dicotomia homem-mulher, não se identificando totalmente com os estereótipos de masculinidade ou feminilidade. Inserida na transexualidade, a não binaridade funciona como termo guarda-chuva e abriga uma variedade de identificações que dependem das percepções individuais de quem assim se reconhece. Cup, por exemplo, define-se como agênero. Ou seja, não se identifica com gênero algum.

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    Cup
    Cup é agênero. Nesse caso, rótulos como “masculino” ou “feminino” são indiferentes para sua identidade (Lucas Melo/CLAUDIA)

    “Para mim, ser agênero é mais do que apenas um rótulo; é uma forma de não ter minha existência definida ou limitada pelas pessoas e pela sociedade. É tomar posse de quem eu sou”, declara. Enquanto pessoa agênero, pode fazer suas escolhas sem depender dos padrões de masculino e feminino, pautando-se no que gosta e no que lhe fará bem. Essas classificações são relacionadas a sentimentos e identidade e não têm a ver, a princípio, com a questão biológica, em que aparecem, por exemplo, os intersexos – pessoas que possuem alterações hormonais, cromossômicas ou de outro tipo que tornam difícil precisar seu sexo.

    De São Paulo, Gi Morales, 26 anos, passou por processo semelhante. Para atender a expectativas, performava o gênero que lhe fora imposto sem saber que existiam outras possibilidades. “Com o tempo, sustentar esse papel se tornou exaustivo. Eu estava em uma constante busca por aprovação e nunca me sentia bem comigo mesme”, revela, enfatizando o uso do termo em sua forma neutra.

    Quinze anos de terapia com diferentes profissionais ajudaram a lidar com parte desses sentimentos, mas muitas de suas questões permaneciam sem respostas. Seus horizontes finalmente se expandiram quando passou a se consultar com uma psicóloga especialista no público LGBT+. Agora já não sente mais culpa nem dificuldade em explicar quem é: uma pessoa de gênero fluido. Do inglês genderfluid, o termo representa quem flui entre gêneros, estando livre para decidir se expressar da forma que se sente mais confortável no momento. “Afinal, cada ser humano é único e mutável, possuindo diversas facetas”, reflete Gi.

    Negligência estrutural

    A liberdade tanto prezada por Cup e Gi encontra barreiras no preconceito. “Vivemos em uma sociedade que é extremamente agressiva contra o que foge ao padrão. As pessoas oprimem, agridem e discriminam com base na leitura que fazem sobre os outros. Então me vejo muito limitada sobre como me expressar em determinados ambientes. Eu me sinto um alvo”, confessa Cup, que fica mais confortável em locais como a faculdade, onde não precisa policiar suas ações. “Mas, se eu for para o centro da cidade e precisar pegar um transporte público ou mesmo um de aplicativo, sinto que tenho que me podar. É triste dizer isso, mas não quero ser uma estatística”, afirma, referindo-se aos assassinatos de pessoas trans no Brasil.

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    Liniker
    (Júlia Rodrigues/CLAUDIA)

    Não há um levantamento governamental que reúna esses dados. Na verdade, nos censos publicados pelo IBGE até hoje nem sequer existe uma quantificação da totalidade dessa parcela da população. Fica a cargo de ONGs e coletivos LGBT+ contabilizar as mortes com base no que é exposto na mídia e em registros policiais muitas vezes imprecisos. Mesmo assim, somos o país que mais mata transexuais no mundo. Somente em 2019, foram 124 assassinatos, segundo monitoramento realizado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais. O número real, porém, pode ser bem maior, uma vez que muitos casos não chegam a ser notificados.

    Falta amparo do Estado também para a garantia de direitos básicos, como acesso à saúde. Grazielle Tagliamento, psicóloga do Centro de Excelência em Gêneros e Sexualidades (Ceges), em Curitiba, explica que as dificuldades vão desde aspectos estruturais dos serviços até o atendimento prestado. Pessoas que não fizeram a retificação do nome civil e do gênero em seus documentos muitas vezes enfrentam resistência dos profissionais para o uso do nome social no preenchimento de formulários e até no atendimento.

    “No caso específico de homens trans que fizeram a retificação, há empecilhos para consultas e exames ginecológicos, já que os sistemas de agendamento e encaminhamento dos municípios não lhes permitem acessar esse serviço, bem como profissionais que se recusam a atendê-los”, diz ela. Isso sem contar que muitos carecem de conhecimentos técnicos sobre a saúde das pessoas trans – o que diminui a efetividade do atendimento – ou tratam a transexualidade como transtorno mental, perpetuando estigmas e a discriminação. “Sem o acesso integral e de qualidade aos serviços de saúde, as pessoas trans são mais vulneráveis ao adoecimento”, afirma Grazielle.

    Ela aponta ainda o fato de que, além de poucas, as políticas públicas voltadas para essa população não são permanentes, pois, como se trata de portarias ministeriais, podem ser revogadas a qualquer momento. E, apesar de a Política Nacional de Saúde Integral LGBT, instituída em dezembro de 2011, prever uma qualificação profissional, na prática tais formações não ocorrem. “Assim, há profissionais sem competência técnica para esse atendimento e que se pautam em crenças pessoais, distanciando as pessoas trans das práticas de cuidado em saúde.”

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    Liniker
    (Júlia Rodrigues/CLAUDIA)

    A discriminação impacta a sobrevivência de todos os ângulos possíveis. Uma pesquisa realizada em 2016 pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT) indica que 73% dos estudantes LGBT+ já sofreram algum tipo de agressão verbal no ambiente escolar e 36% foram agredidos fisicamente. Os episódios constantes de violência acabam por motivar a evasão escolar. Sem formação adequada, essa parcela da população fica limitada a trabalhos de menor remuneração. Isto é, caso consiga superar o desafio da contratação. Cup diz que a não adequação ao padrão cisgênero é fator de peso para a recusa de empresas. “E, mesmo quando somos contratados, não existe suporte para a permanência. Conheço casos de pessoas que sofreram transfobia dentro do emprego e se demitiram por não aguentar ficar em um local onde eram desrespeitadas.”

    No mundo da arte não é muito diferente. Liniker conta que diversas vezes pessoas tentaram diminuí-la ou deixá-la desconfortável. Uma vez, durante um show, percebeu que alguns técnicos riam dela. A cantora não pensou duas vezes antes de parar a apresentação e questionar o que estava acontecendo. Com o fim da banda Liniker e os Caramelows, anunciado em fevereiro, Liniker se prepara para seu voo solo e para conciliar a música com atuação, sua primeira paixão. Como toda novidade, o frio na barriga é inevitável, mas ela garante estar aberta para o que há de vir. “Agora quero tirar um tempo para experimentar.” Sobre os possíveis papéis que a esperam, ela afirma não querer se limitar à figura de mulher trans. Mas acredita que a discussão não lhe cabe inteiramente. “Esse é um tipo de responsabilidade que não tem que estar nas nossas costas, mas nas de quem dá os empregos. Basta abrir a mente e ver que podemos estar em qualquer lugar.”

    Um passo de cada vez

    O apoio de familiares é um fator mais que essencial para o enfrentamento desses obstáculos. Nesse aspecto, Cup admite ter privilégios. Ainda que alguns conflitos tenham surgido por falta de informação, com o tempo e muita conversa dentro de sua casa chegaram ao que define como um bom lugar. Infelizmente, não é essa a realidade para a maioria da comunidade, em que a rejeição acontece com frequência até mesmo por parte de parentes mais próximos. Em alguns casos, o isolamento alcança ainda as amizades e os relacionamentos amorosos. Cup diz ter criado filtros, só se permitindo formar laços com quem lhe tem respeito como pessoa. “É difícil se entregar emocionalmente quando já se teve experiências ruins”, conta.

    Como assexual, Cup não sente atração da mesma forma que as outras pessoas, mas pode se envolver em um relacionamento romântico. Para que isso aconteça, porém, afirma que é necessário uma forte confiança mútua. Vale apontar que, assim como gênero e sexo biológico não são sinônimos, tampouco equivalem à orientação sexual, que meramente indica por quem somos atraídos. No caso de Cup, essa afeição apenas não envolve desejo sexual, mas não o impede de se relacionar de outras maneiras. “A possibilidade de ruptura do binarismo de gênero faz com que as denominações acerca da sexualidade também sofram transformações”, esclarece a pesquisadora Flávia. Logo, mulheres trans podem ser lésbicas, homens trans podem ser gays e assim por diante.

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    Compreender tantas nuances não é algo que acontece do dia para a noite, mesmo para alguém diretamente envolvido. Em seu processo de autoentendimento, além da assistência terapêutica, Gi recorreu a diversas fontes de informação. “Conhecer a história de outras pessoas não binárias me trouxe uma paz interior muito grande. Finalmente pude entender que não tinha absolutamente nada de errado comigo.” A jornada motivou ainda a criação de um perfil no Instagram (@generofluidobr), onde produz conteúdos didáticos, dando visibilidade à causa. Notando também uma lacuna de material sobre diversidade em língua portuguesa, Cup resolveu manter no YouTube um canal que leva seu nome. “Meu desejo é ser para alguém a pessoa que queria ter conhecido tempos atrás. Alguém que fizesse com que eu me sentisse válido.”

    Gi Morales
    Gi se identifica como genderfluid, alguém que expressa sua identidade de gênero de múltiplas formas (Hanna Vadasz/CLAUDIA)

    É missão impossível prever para onde as atuais discussões sobre gênero vão nos levar daqui a alguns anos. Enquanto alguns apostam em uma possível abolição de todos os termos, há quem acredite que a tendência é haver um número cada vez maior de identidades reconhecidas. Austrália, Nepal e Índia (lembra das hijras?) são alguns dos países que seguem nessa direção, adotando oficialmente o “terceiro gênero” como possibilidade de identificação.

    Para Flávia, em vez de determinar caixinhas identitárias fixas, deveríamos compreender de maneira mais aberta e consciente a fluidez das relações e determinações de gênero. “As pessoas estão em constante transformação durante a trajetória delas. O caminho talvez seja respeitar e abraçar a diversidade que caracteriza o viver coletivo”, propõe. Liniker vai além: “O que eu quero é uma vida longeva com propósito, tendo experiências. Que as próximas gerações saibam que existem possibilidades de existirmos não só nos lugares marginalizados”.

    Dicas amigues

    Tudo bem ter dúvidas e querer saná-las. Mas é preciso manter o respeito antes de sair perguntando qualquer coisa que lhe venha à cabeça. Reunimos aqui algumas dicas fornecidas por Gi Morales e Cup sobre a melhor maneira de abordar questões de gênero e sexualidade sem importunar ou criar situações constrangedoras.

    • Atenção aos pronomes. Não é insensível fazer esse questionamento, muito menos necessário justificá-lo. Apenas diga “Quais são seus pronomes?” e use o que for pedido.

    • Não presuma. Existe uma ideia equivocada de que toda pessoa trans quer mudar seu corpo de alguma forma. Assumir que alguém fez cirurgia ou que precisa passar por procedimentos cirúrgicos para ser válido é um grande erro.

    • Não existe “nome de verdade”. Ao se apresentar, certamente a pessoa usou um nome. Logo, não há por que perguntar seu nome “verdadeiro”. Nem mesmo por curiosidade.

    • Não fale sobre a genitália. Esse assunto não lhe diz respeito. Por que você começaria a conversar sobre os genitais de uma pessoa que mal conhece?

    • Nem tudo é elogio. “Uau, se não me dissesse, eu nunca descobriria que você é trans.” Comentários assim dão a impressão de que o objetivo de toda pessoa trans é se disfarçar e enganar os outros. Não os faça.

    • Pesquise. “Ainda que gostemos de falar sobre o assunto, não somos enciclopédias ambulantes”, diz Cup. Internet, redes sociais e revistas são apenas alguns dos meios onde você pode encontrar informações.

     

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