ogo no início de uma consulta de rotina com uma ginecologista do convênio, a designer e diretora de arte de CLAUDIA Lorena Baroni Bósio, 30 anos, ouviu da médica: “Mulher, mas você já tem 30 anos. Quando é que você pretende engravidar?”. Constrangida e pressionada, Lorena estranhou o teor da pergunta. “Achei que ela tinha que ter questionado se eu quero ter filhos antes”, relatou às amigas assim que saiu do consultório.
Assim como sua mãe e avó, Lorena tem uma deficiência que dificulta seu caminhar. Desde muito cedo, decidiu que, caso quisesse engravidar, faria sob a condição que pudesse planejar uma fertilização in vitro e realizar um tratamento genético, evitando que seu filho ou filha desenvolva a mesma condição.
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O encontro da médica com a paciente seguiu com a profissional dando ênfase mais vezes à idade de Lorena. “Eu tinha queixas. Vinha sofrendo com dores de cabeça, falta de libido. Queria ter uma conversa sobre a possibilidade de trocar meu anticoncepcional. Ela ignorou tudo isso. Ainda me mandou pesquisar no Google sobre outro método contraceptivo. Fui em busca de orientação e saí frustrada”, lembra Lorena.
No fim, quando a médica insistiu que o corpo estava com os dias contados para reproduzir, Lorena soube que não voltaria mais ali. “Ela ainda perguntou o que meu marido achava disso, como se eu devesse a ele algum tipo de obrigação em procriar.”
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Semanas depois, Lorena estava diante de outra ginecologista, com receio de ser julgada novamente, mas resiliente na busca por algum médico que olhasse para a saúde dela. “Felizmente, a segunda médica me acolheu, ouviu minhas queixas e cuidou de mim antes de olhar para algo que nem estou discutindo ainda”, conta.
A situação vivida pela designer, infelizmente, não é incomum. É difícil que uma mulher acima de 30 anos não comece a ouvir sobre sua idade fértil e os riscos de adiar uma gravidez. O estranhamento é maior, contudo, quando essa cobrança vem do médico, alguém com quem a relação de confiança e respeito é fundamental. A verdade é que, muitas vezes, os ginecologistas levam crenças pessoais para a sala de consultório e priorizam tanto as habilidade técnicas que se esquecem do lado humano, da importância do acolhimento.
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A sensação de abandono é doída até hoje para Silvana Monteiro, 40 anos. A especialista em planejamento financeiro nunca teve um ginecologista fixo, que a acompanhou desde o começo da vida adulta. Pedia recomendações de amigas e procurava alguém que atendesse o convênio que tinha. Aos 32, deixou de tomar anticoncepcional porque queria engravidar. “O que recomendam é que o casal fique um ano tentando. Se nada acontecer nesse período, aí tem que investigar. O tempo foi passando e nada. Parecia que todas as pessoas engravidavam menos eu.”
Seguiu a dica de uma amiga e consultou a médica que tinha feito a fertilização dela. “Ela pediu os exames e constatou que eu tinha endometriose, algo que nenhum check up tinha apontado. Eu tinha uma trompa obstruída e ela sugeriu uma cirurgia”, lembra Silvana, que ficou admirada da médica propor uma solução antes de partir para a fertilização. “Achei atencioso. Fiz o procedimento, assim como todos os atendimentos sem auxílio do convênio, pagando como cliente particular. Quando acabou a cirurgia, antes de eu sair da sala, ela foi embora e não falou com meu marido, que ficou ansioso e preocupado, claro”, lembra Silvana.
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Por telefone, a médica comunicou, depois, que o procedimento tinha sido um sucesso, que ela tinha conseguido reduzir bastante a obstrução. Três meses depois, contudo, quando Silvana refez o exame, o laudo disse que não havia variação significativa.
“Fiquei frustrada, claro. Achei que era uma possibilidade, passei por uma cirurgia. Mas resolvemos fazer a fertilização direto para não perder mais tempo. Ela recomendou a clínica onde ela atuava. A estimulação rendeu quatro óvulos bons. A médica quis fazer a implantação no meio de dezembro, mas eu achei melhor esperar passar as festas, porque sabia que o atendimento no fim do ano era mais difícil. Hoje, olhando para trás, parece até que eu sabia o que ia acontecer, era intuição”, fala Silvana, que cedeu à pressão e implantou os embriões no dia 12 de dezembro.
Depois de 15 dias, quando foi fazer o exame indicado pela médica, Silvana percebeu que não tinha pedido. Recorreu à ginecologista e recebeu uma mensagem dizendo que ela deveria ir em qualquer pronto-socorro e dizer que achava que estava grávida. Silvana achou estranho, mas fez o sugerido.
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No dia 25, começou o sangramento. Novamente, a paciente perguntou o que deveria fazer. “Vá ao pronto-socorro de novo e diga que está com sangramento”, ouviu. Sem nenhum tipo de apoio, Silvana sangrou até o dia 28, quando já sabia que não tinha conseguido engravidar mais uma vez. “No dia 28, ela me mandou uma mensagem que tinha viajado para um lugar sem sinal e que era para eu ir no consultório no dia 2 de janeiro para fazermos ultrassom”, conta.
“Foi o pior Réveillon da minha vida, uma depressão sem fim, eu e meu marido estávamos muito tristes.” O exame comprovou o que Silvana intuía. “Ela ainda falou assim: ‘Pelo jeito, não sobrou nada. Para quando quer marcar a próxima?’. No processo de fertilização, 80% depende do psicológico. O meu estava em frangalhos. Resolvi que daria um tempo daquilo”, diz.
“A relação com a médica Mexeu com meus sentimentos. Eu me questionava se aquilo era errado tecnicamente. Alguém entenderia a subjetividade da situação?”
Silvana Monteiro, especialista em planejamento financeiro
Na saída da consulta, porém, Silvana ligou para a clínica onde seus embriões estavam congelados e pediu para ser atendida. A recepção foi completamente diferente dessa vez. Silvana encontrou uma equipe atenciosa, disponível e, um ano depois, tentou novamente a implantação. “Era chocante o comparativo. Saí do consultório com um calhamaço de pedidos de exame para não ter que ir ao PS. A clínica me ligou três dias depois para perguntar como eu estava. O processo emocional foi outro e eu engravidei de gêmeos”, explica.
Enzo e Davi hoje têm 6 anos, e a ginecologista e obstetra que acompanhou o parto sabia da história dura de Silvana. Ela se mostrou acessível, prática e disposta a fornecer informações. “Foi ela quem me explicou que parto de gêmeos não precisava ser cesárea”, lembra Silvana. “Hoje, acredito que a relação com a primeira médica tenha sido como um relacionamento abusivo. Mexeu direto com os sentimentos. Ao mesmo tempo, eu me questionava se aquilo era errado. Onde eu poderia denunciar se as práticas e técnicas não tinham falha? Alguém entenderia a subjetividade da situação?”, fala.
O difícil equilíbrio
A biologia, uma ciência, é inegável. A fertilidade da mulher é uma curva que se acentua e depois começa a decair. Contudo, sua experiência de vida nem sempre está atrelada ao processo fisiológico. Nem a menstruação nem a gravidez nem a menopausa acontecem ao mesmo tempo para todas nós. Assim como nosso corpo experimenta um processo individualizado, o tratamento médico também deveria ser.
Segundo Sofia Menegon, idealizadora do podcast Louva a Deusa, consultora em relacionamento e sexualidade e colunista de CLAUDIA, a medicina e a ciência não estão descolados da nossa sociedade, apenas reproduzem conceitos que são consciente e inconscientemente difundidos entre nós.
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“Ser mulher é uma construção social que ainda está diretamente ligada à reprodução. O corpo está à serviço de um sistema”, explica ela. “Com o passar do tempo, a representação vai mudando, assim como a relação da mulher com o médico. Já foi uma realidade a mulher ficar vestida durante a consulta, não ser examinada e apenas apontar numa boneca onde era a dor. Existiu uma época em que cuidar da casa e dos filhos não era uma função inferiorizada, porque o aumento da família representava mais gente trabalhando na lavoura, por exemplo. Só que, quando a mulher começa a sair de casa, são criados estigmas e signos para manter controle sobre os corpos. Daí os preconceitos com a menstruação ou a invenção de que maternar deve ser natural”, acrescenta.
“Eu teria passado boa parte da minha vida melhor se tivesse outro tratamento desde o início”
Elisabeth Chiarella, pedagoga
O rompimento com conceitos exigem que o profissional vá para além dos livros. Escutar é a habilidade técnica mais importante na opinião da maioria das mulheres. O atendimento acolhedor poderia ter mudado o rumo da vida e da saúde de Elisabete Chiarella, 56 anos.
A pedagoga de São Paulo passou anos sem entrar num consultório após um trauma. Quando voltou, sofria com uma endometriose tão severa que precisou se submeter a um tratamento intenso, com altas doses de hormônio. “Começou a crescer barba no meu rosto e eu judiava da minha pele depilando com cera, fora as mudanças no meu corpo e as alterações de humor. Imagina o que isso fez com meu psicológico, com a minha autoestima”, conta ela, que foi pela primeira vez num ginecologista aos 19 anos. Foi quando descobriu os ovários policísticos e recebeu a recomendação de tomar pílula anticoncepcional.
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Por três meses, sentiu fortes dores na cabeça, uma pressão, como se os vasos da região estivessem inchados. Tinha certeza que o sintoma faria o médico mudar a prescrição, mas ele não deu ouvidos. Falou que devia ser outra coisa que causava aquilo e mandou seguir tomando a pílula. “Parei sozinha e sofria com as menstruações longas, o inchaço, a TPM prolongada”, lembra. “Eu teria passado boa parte da minha vida melhor se tivesse outro tratamento desde o início.” Apesar de não poder compartilhar a experiência com ninguém na época, por causa do tabu sobre o tema, Elisabete sabia que aquele tratamento não podia estar certo.
Desde 2000, quando encontrou um médico que entendeu tudo que ela tinha passado e ofereceu uma alternativa de tratamento, ela não sofre mais com os ovários policísticos. Durante o climatério, teve um sangramento e foi prontamente atendida. Tem até o celular do médico agora e consegue um acompanhamento próximo. Demorou para isso acontecer, porém. Aos 40, por exemplo, ainda buscando soluções para sua instabilidade hormonal, ouviu de um médico que era um absurdo uma mulher não ter filhos. “Na hora, você até repensa sua decisão, mas eu não tinha interesse. Achava egoísmo ter um filho apenas por ser visto como uma obrigação social”, fala.
Segundo Agnaldo Lopes, presidente da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia, a intenção dos médicos é estar sempre melhorando. Por isso, a Febrasgo oferece treinamentos e cursos constantemente.
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“Temos investido na formação do ginecologista que extrapola a questão técnica e valoriza a criação de uma relação de confiança, respeito e acolhimento”, afirma Agnaldo. A posição de referência do médico é motivo de muitas mulheres se sentirem vulneráveis durante a consulta, especialmente se ele ou ela não estiverem dispostos a debater particularidades.
“Atendo mulheres que já sabem de sua infertilidade e muitas delas me falam: ‘Por que ninguém me falou antes desses riscos?’”, relata a médica ginecologista e obstetra Natalia Ramos, uma das fundadoras da Oya Care. “A verdade é que os médicos se encontram no olho do furacão dessa mudança social e estão aprendendo enquanto trabalham. Não há, na faculdade, uma aula que ensine a lidar com essa questão, que treine acolhimento. Além disso, com os horários apertados de consultas, o foco costuma ser em contracepção e prevenção de câncer de mama, de colo de útero e de infecções sexualmente transmissíveis”, explica.
Com a fertilidade ficando para trás desde cedo, ganha terreno a falta de conhecimento sobre o próprio corpo e a generalização. “Nem toda mulher precisa congelar óvulos aos 30. Existem exames que podem medir a reserva ovariana e que permitem que a paciente se programe, que ela tenha autonomia para tomar decisões de acordo com fatos”, acrescenta Natalia, que já ouviu de uma paciente que achava ter falhado na vida por não ter se casado ou tido filhos. “Isso me doeu muito. A gente precisa desconstruir a ideia de que a vida só tem um caminho. Eu mesma já ouvi que sou velha para ter filhos e sei como é terrível”, diz ela, aos 31 anos.
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Natália defende um olhar preventivo, um acompanhamento que impeça surpresas e decepções. “Vejo, durante as consultas, que muitas mulheres não têm as informações sobre a própria saúde, perdendo o poder de escolha.”
Para chegarmos nesse ponto, do domínio completo da escolha pela maternidade ou por não ter filhos, talvez tenhamos um caminho longo. Contudo, poder contar com seu ginecologista nessa trajetória é essencial. “Nosso corpo é importante, não podemos desistir dele. Apesar do trabalho que dá, consulte vários ginecologistas até achar um que tenha a ver com você e seu estilo de vida. Você vai sentir que ganhou mais um companheiro na construção da vida que você deseja”, sugere Sofia.