Fisiculturismo: brasileiras superam dificuldades e se destacam em competições mundiais
Essas atletas acumulam vitórias ao representar o Brasil ao redor do mundo, mas ainda precisam driblar o machismo e a falta de patrocínio
Não está nos músculos a maior força da paulista Elisa Pecini, mais conhecida como Isa (@isapecini). Atleta de fisiculturismo, ela se consagrou como a mulher mais jovem a vencer na categoria Bikini do Olympia Fitness & Performance Weekend de Joe Weider, concurso profissional internacional que acontecia em Las Vegas até 2020, quando mudou para a Flórida por causa da pandemia.
Para chegar àquele palco, aos 22 anos, o caminho foi tortuoso. Se a mente de Isa não fosse mais resistente do que os músculos, ela não teria conseguido. Anos antes do recorde, aos 13, a jovem se via descontente com seu corpo.
“Não queria ser gorda, mas gostava de comer. Eu não tinha noção do que era proteína, carboidrato, essas coisas. Só lembro da minha mãe avisar: ‘Cuidado para não engordar’”, fala.
Obcecada pelo abdômen “tanquinho” que não tinha e sem informações ou acompanhamento de especialistas, caiu na cilada de tentar encurtar o caminho para seu sonho.
“Na época, uma modelo tinha morrido por causa da anorexia e as reportagens na TV explicavam tudo, como era, o que ela fazia. Em vez de eu entender aquilo como um alerta, achei uma boa ideia”, lembra ela, que agora está passando uma temporada nos Estados Unidos para participar das grandes competições mundiais, o Arnold Sports Festival – sim, do Arnold Schwarzenegger – e o Olympia 2021, que será em outubro.
O primeiro distúrbio alimentar de Isa foi a bulimia. Após cada refeição, ela corria para o banheiro e vomitava. “Comia o que tinha vontade e colocava para fora, para não engordar. Mas logo aquilo passou a machucar minha garganta, eu ficava rouca. Morria de medo da minha família descobrir, então fui comendo cada vez menos.”
Assim começou a fase anorética de Isa, que a fez passar dos 54 para os 37 quilos e a levou à internação. “Eu não me sentia doente, mas queria emagrecer mais e mais. Colocava metas, queria ver osso, conseguir fechar minha mão em torno da perna. Sabia que não estava gorda, mas, quando ia comprar roupa, pedia 42 para a vendedora, mesmo nunca, nem saudável, tendo passado do 38”, fala.
Primeiro, a internação foi em casa. Ela não podia gastar energia, ficava na cama o tempo todo. Depois, ficou um mês e um dia na ala psiquiátrica do Hospital de Clínicas da Universidade de Campinas (Unicamp). “Eu penso em tudo que perdi naquela época, as vivências, as festinhas, a escola.
Ainda assim, sei que minha trajetória me trouxe até meu sonho, então não guardo mágoa”, avalia. Com alta médica, combinou com a equipe multidisciplinar de profissionais que chegaria aos 50 quilos para poder ir à academia. Nos treinos e recebendo acompanhamento nutricional, se descobriu. Via a evolução do corpo, se sentia mais disposta e saudável. “A comida me trazia energia para treinar mais. Eu comia e não engordava”, diz.
Na academia, vendo seu desempenho e pesquisando corpos femininos esculpidos e musculosos, Isa descobriu o fisiculturismo. Depois de comparecer a um evento do esporte em São Paulo, ela tomou a decisão de competir e se profissionalizar. “Eu trabalhava como recepcionista na academia para pagar os custos de biquíni, pintura corporal, inscrições em concursos e as viagens para o Rio de Janeiro, pois meu treinador era de lá.”
No primeiro ano, foi vice-campeã no campeonato nacional. A ascensão foi veloz. Em 2016, já tinha alguns patrocinadores e foi para os Estados Unidos competir. Sem falar inglês, Isa diz que não teria conseguido sem o treinador, Ricardo Pannain. Ele a orienta e fica em contato diariamente, acompanha as flutuações do corpo, ajusta o treino para que o resultado final seja perfeito.
Em 2019, Isa chegou ao topo da sua categoria, dando orgulho à família e aos amigos. “No começo, meus pais me apoiavam porque eles só queriam me ver comer. Hoje, eles já entendem melhor. Se eu vou na casa da minha avó, ela fala: ‘Fiz uma salada sem nada para você’”, diverte-se Isa, que é rígida em alimentação e treinos a maior parte do tempo – ela come aveia, arroz, carnes magras e mostra em seu canal do YouTube como prepara todas as refeições da semana.
A empatia dos desconhecidos demorou um pouco mais. “Antes, me olhavam na rua com estranhamento. Hoje já vejo que há admiração, algumas pessoas até me param e perguntam se sou atleta”, fala. Porém, é nas redes sociais que acontecem suas melhores trocas com o público.
“Muitas meninas que têm distúrbios alimentares conversam comigo. Eu reforço que elas são capazes de vencer aquilo. Também recebo mensagens de mulheres que falam que se inspiraram na minha rotina para deixar o sedentarismo ou se alimentar melhor.”
Mas Isa, assim como todos que estão nas redes sociais, não escapa dos haters. Já recebeu comentários de que sua aparência era melhor quando ela era anorética do que hoje. “Tem que ter a mente forte para aguentar, mas sei da minha responsabilidade ali. Quero motivar outras mulheres”, diz.
Agora, a atleta de 24 anos se concentra nos seus treinos – ela só descansa aos domingos – e quer superar seu desempenho do ano passado. “Eu não estava num ano bom e me decepcionei com a classificação que tive. Mas foi importante para eu entender que às vezes preciso olhar para mim. Fiquei com a minha família, cuidei da cabeça. E também vi quem está do meu lado, independentemente do resultado. Esse é um esporte de resiliência. Você pode perder, mas não pode desistir do sonho”, afirma.
Fenômeno nacional
As atletas brasileiras do fisiculturismo são mundialmente renomadas. Premiadíssimas, mas pouco reconhecidas no país, elas sofrem com o que acontece na maioria dos outros esportes: os patrocinadores preferem os atletas homens. Não parece a estratégia mais inteligente, já que, enquanto as mulheres empilham troféus em diferentes categorias e prêmios, os homens brasileiros nunca ganharam um Olympia.
A influência feminina brasileira é tão grande que uma categoria criada no país foi exportada e entra agora nos circuitos mais famosos, a Wellness. “É para quem é um pouco maior do que na Bikini, tem mais glúteos, linha de cintura, mas ainda é menor do que a Physique”, explica Francielle Mattos (@franciellemattos_), atleta da categoria.
Eu tenho um objetivo e me coloco metas para não desviar dele. É a troca do prazer momentâneo por algo maior
Francielle Mattos
A paranaense de 35 anos começou a treinar após o nascimento da filha, Geovanna, aos 22 anos. “Tive depressão pós-parto e emagreci muito, pesava 47 quilos. Quando minha filha fez 6 meses, meu marido veio conversar comigo e sugeriu que eu tirasse um tempo para mim, para me cuidar. Resolvi ir para a academia”, lembra ela, que quatro anos depois deu à luz Gabriel.
“Antes de ser atleta, eu também tinha um certo preconceito. Como a maioria das mulheres, eu morria de medo de ficar muito grande e falava isso para minha treinadora. Ela respondia: ‘Fica tranquila que não é assim de repente’”, admite Fran. Foram oito anos de treino e reeducação alimentar, até que seu corpo atingiu um platô.
Chateada com os olhares que recebia na academia perto de sua casa, Francielle resolveu mudar o local do treino. Ela dirige 40 minutos para chegar à meca do fisiculturismo
Para driblar os limites, Fran achou um treinador de atletas de alto rendimento, que ofereceu consultoria por um ano. Foi o suficiente para que ela estivesse pronta para competir. “Meu marido não queria. Ele achava que era muita exposição, mas quando você assiste a um campeonato, a percepção muda. Não há sensualidade no desfile, é um esporte. Para quem está ali, é arte. Ninguém vai falar: ‘Que gostosa!’”, explica a atleta, que dirige 40 minutos todos os dias para chegar a uma academia cujo slogan é “The Brazilian Mecca of Bodybuilding” ou a meca brasileira do fisiculturismo.
Quando decidiu virar profissional, vendeu a empresa que tinha com o marido e hoje se sustenta com o esporte. Seus patrocinadores são extremamente respeitosos e conscientes, especialmente com suas imposições por causa da maternidade. “Eu tinha competições nos Estados Unidos esse ano, mas teria que fazer duas quarentenas e aumentaria o período fora, o que é inviável na rotina dos meus filhos. Eles são a minha prioridade”, fala ela, que já conheceu a China, o Paraguai e os Estados Unidos em campeonatos.
Quando compete perto de casa, as crianças de 12 e 9 anos a acompanham. “Eles acham o máximo. Meu filho já diz que quer ser bodybuilder quando crescer”, diz Fran, que tem nos dois seus maiores fãs. “Eles torcem junto, choram. Eu gosto de mostrar as vantagens do esporte. Treinando aprendi a ter disciplina e levo isso a outras áreas da vida. Eles podem fazer o mesmo. Além disso, o esporte promove o autoconhecimento, você entende suas fraquezas e fortalezas. Não é só pelo visual do corpo ou para ganhar troféus”, explica.
Em casa, com o marido e duas crianças, Fran também precisou desenvolver resistência, afinal, o cardápio de todo mundo é bem diferente do dela. Seu marido é um exímio cozinheiro, que prepara refeições incríveis, gosta de comer bem e de tomar vinho. E ela segue a dieta, malha de segunda a sábado, faz uma hora de bicicleta e mais 1h20 de treino de perna.
“Eu tenho um objetivo e me coloco metas para não desviar dele. Eu sei que mereço comer algo fora do plano, mas mereço ainda mais ganhar, então me mantenho focada. É a troca do prazer momentâneo pelo prazer maior. Claro que isso não é sempre, só próximo de competições. De tempos em tempos, dependendo da fase do treino em que estamos, consigo sair para jantar”, afirma.
Uma trajetória exemplar
Como qualquer esporte, o fisiculturismo não é só resiliência, disciplina, treino e dieta. O biotipo e a genética podem fazer toda a diferença na vida de um atleta. “Meu corpo mudou muito rapidamente”, lembra Juliana Malacarne (@julesfit10), 46 anos, uma lenda do esporte no Brasil.
Aos 46 anos, Juliana está grávida de seu primeiro filho. “A medicina avançada de hoje me permitiu realizar meu sonho”, conta ela, que competiu 19 anos e venceu os mais renomados campeonatos do mundo
Detentora de quatro troféus Miss Olympia, ela é a recordista em números de prêmios na sua categoria, a Physique. Hoje, depois de 19 anos competindo, está aposentada dos palcos e grávida de 8 meses do seu primeiro filho. Nascida em Americana, interior de São Paulo, ela sempre teve afeição por corpos musculosos e muito bem definidos.
É uma satisfação ter representado tão bem o brasil. eu cumpri meus objetivos, já tinha chegado ao topo do esporte
Juliana Malacarne
Na infância e juventude, seu namorado imaginário era o personagem de Arnold Schwarzenegger em Conan, O Bárbaro. Antes de decidir investir na carreira de atleta, ela gostava de fazer as aulas de jump e bike na academia. Foram os outros frequentadores que deram a dica que seu corpo respondia bem e que ela tinha potencial para competir.
“Passei a treinar musculação e em quatro meses ganhei minha primeira competição amadora, o campeonato paulista”, fala Juliana. Quatro anos depois, ela interrompeu uma sucessão de pódios para cursar educação física. No meio da faculdade, para garantir uma bolsa, voltou a competir.
Desse ponto em diante, não tinha ninguém que pudesse deter Juliana. Ela se mudou para os Estados Unidos em 2007, onde vive até hoje. Os anos de dedicação fervorosa continuaram enquanto faziam sentido. Pouco depois dos 40 anos, ela percebeu que teria que sair das provas para se realizar na vida pessoal.
“Eu não tinha casado, não tinha tido filhos e esses eram meus maiores sonhos. É uma satisfação ter representado tão bem o Brasil. Eu cumpri meus objetivos, já tinha chegado ao topo do esporte”, justifica ela, que acha que teria chances de continuar ganhando caso não tivesse parado.
Para o futuro, porém, não planeja um retorno. Depois do parto, ela deve manter os alunos que atende como personal. “Nenhum deles é atleta de alto rendimento, só gente que busca mais qualidade de vida”, acrescenta.
E, quem sabe, ainda lançará uma competição com seu nome: “Uma prova que ofereça bons prêmios, porque é um esporte que não dá dinheiro, custa caro e nem sempre é fácil arrumar patrocinador”. Isso deve acontecer nos Estados Unidos, pois, segundo ela, o esporte é mais respeitado por lá.
“Aqui, em qualquer competição ou jogo você encontra os pais de crianças, adolescentes e adultos assistindo, torcendo. Minha família nunca me viu competir. Minha mãe nem curtia minhas fotos posando, porque dizia que eu estava muito forte e que ela não achava bonito. Os norte-americanos respeitam mais o esporte”, justifica.
Ainda assim, isso não evitou que ela passasse por alguns episódios de preconceito por causa do seu físico. Certa vez, quando começou a namorar seu marido, perguntaram a ele se ele era gay, pelo fato de gostar de uma mulher musculosa.
“Eu já ouvi muita crítica, já me olharam torto várias vezes. Achavam que eu era burra, porque existe o estigma de que quem é muito forte não é inteligente. Quanta bobagem! Hoje, o estilo de vida é mais difundido, o pessoal acha legal. Eu nunca me importei, tenho orgulho da minha carreira longa e de mim”, conclui.