‘Eu só não enxergo’, diz cega que se formou em jornalismo
"Atrás dessa bengala tem uma menina legal", brinca Nathalia Santos, que ressalta a importância de ter oportunidades
A última segunda-feira (12) foi um dia muito importante para Nathalia Santos, 25 anos. Deficiente visual desde que nasceu, ela se formou em jornalismo na ESPM do Rio de Janeiro. “Eu não estava acreditando que o meu sonho estava se tornando realidade depois de tantos obstáculos, tantas pedras no caminho, tantos degraus subidos um a um, sem atalho, sem desculpas, sem fugir de cada dor, cada lágrima, cada indignação, cada luta que tive que passar ao longo desses anos até chegar ontem”, postou em seu Instagram.
Uma dessas lutas foi em relação à adaptação da própria faculdade, que, quando ela começou o curso, não tinha material adequado, piso tátil, braile no elevador. “Não teve um semestre em que não fui reclamar com a coordenação sobre alguma coisa. Mas fui apresentando a eles as tecnologias [como scanner de digitalização e leitura] e foram se ajustando. A cada período era um recomeço, novos professores, alguns não entendiam muito bem. Tive muita colaboração dos meus colegas”, disse Nathalia a CLAUDIA.
Quando o horário de trabalho do pai, bombeiro, não permitia que ele a levasse de carro até a faculdade, Nathalia pegava dois ônibus para chegar até lá. “Não tem transporte público adaptado, tem calçada ruim, banca no meio do caminho. Quando era preciso, ficava parada esperando com a bengala até alguém vir perguntar. Não tenho vergonha de pedir ajuda.”
Nathalia, que cursou os últimos dois anos à noite, diz acreditar muito na colaboração das pessoas. “Nasci e cresci em favela. Só foi possível porque obtive bolsa integral. Sempre tive muita força de vontade, mas não adiantaria nada se eu não tivesse tido a chance.”
Ela é portadora de retinose pigmentar sem pigmento, doença que causa a degeneração da retina, e ficou completamente cega aos 15 anos, quando preservava cerca de 20% da visão e enxergava vultos distorcidos e contornos. Participante do programa “Esquenta”, apresentado por Regina Casé na Globo, Nathalia tem um canal no Youtube, o “Como assim, cega?”. Também é trainee em uma multinacional, onde trabalha na área de negócios _ela fez curso técnico em administração (a cantora Anitta foi sua colega de escola). “Já deixaram de me contratar por ser cega.”
Nathalia, que tem dois irmãos, diz que os deficientes evoluíram mais do que a sociedade. “Nós já entendemos quem somos, que temos o suporte da tecnologia para atender nossas dificuldades. Já a sociedade, não. Tudo culpam o governo. Mas o estabelecimento não é do governo”, comenta, citando que paga a sua própria conta no restaurante, mas precisa que alguém leia o cardápio, já que não tem versão em braile. “É complicado. Quando a gente fala, é vítima. Quando não fala, é medroso.”
A agora jornalista formada já começou a enviar currículos para tentar uma vaga na área em que se graduou. “VAI TER MULHER, NEGRA, FAVELADA, CEGA e JORNALISTA SIM!”, escreveu em sua rede social. “Eu que venho de um lugar onde não basta ter mérito, é preciso ter oportunidade.”
O que gostaria de dizer aos possíveis contratantes? “Gosto de citar aquela música dos Paralamas [“Óculos“]. Atrás dessa bengala tem uma menina legal. Eu me preparei, eu confio na minha capacidade, mas não adianta se alguém não confiar também. Então eu diria: ‘Acreditem na minha capacidade, me vejam além da minha deficiência. Eu só não enxergo.”
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