Aos 23 anos, a goiana Barbara Penna tenta reconstruir a vida após a morte de seus dois filhos no crime que a deixou com 40% do corpo queimado. Ela virou ativista contra a violência doméstica, se casou e deu à luz Luisa. O pai das crianças, assassino confesso, ainda não foi julgado.
“Vivo um dia de cada vez e como se fosse o último, pois sei que de uma hora para outra tudo pode acabar. Eu tinha todos os motivos para nunca mais querer um relacionamento amoroso. Mas acredito que meus anjinhos, Isadora e Henrique, colocaram Robson no meu caminho. Além de elevar minha autoestima e ajudar na minha recuperação, ele me deu o que sempre sonhei: uma família.
Descobri que estava grávida da Luisa aos cinco meses de gestação. A tensão foi imensa. Já tinha sido submetida a mais de 200 cirurgias e havia várias outras por fazer. Nossa condição financeira também não ajudava. Comer torrada, naquele tempo, era um luxo. Tive emoções fortíssimas e contraditórias. Andava nervosa porque tinha ido ao Fórum na audiência do assassino confesso dos meus filhos. Relembrar detalhes de tudo o que aconteceu me machucou demais, tanto que, dias antes de saber que esperava um bebê, tentei me matar tomando remédios. Mas, felizmente, sobrevivi e estou aqui. Luisa nasceu em novembro de 2015, dois anos depois da morte dos irmãos. Ainda não havia falado publicamente sobre sua chegada e nem que me casei devido à orientação jurídica.
Quem matou meus anjinhos foi o pai deles, meu ex-namorado, João Moojen Neto. Eu tinha 19 anos e ele 22. João me batia e nunca encontrei apoio de ninguém para denunciá-lo. Pelo contrário, as pessoas só me desencorajavam, inclusive parentes meus. Já estávamos separados quando tudo aconteceu. Ele morava com a avó paterna, pois tinha sido expulso de casa pela mãe, e eu continuei vivendo com a família dele. Ele usava drogas, mas não era dependente químico. Tanto que a perícia constatou que tinha consciência do que fez.
Antes do crime, João me disse que queria ver nossos filhos e acreditei. Como sempre pensei que não poderia privá-los da convivência com o pai e achava que ele tinha de amadurecer e assumir suas responsabilidades, levei-os para encontrá-lo. Isadora e Henrique estavam assistindo desenho e adormeceram no quarto. João saiu sem dizer aonde ia. Voltou diferente, meio estranho. Falei: ‘Não acredito que voltou a se drogar. Para com isso, você não é viciado. Não reato porque você não muda’. Começamos a discutir, mas eu disse que não queria brigar e resolvi dormir ali mesmo, no sofá-cama. Acordei um tempo depois com o João me espancando, gritando que ia me matar. Foi desesperador. Só havia a tela do computador acesa. Ele tem quase 2 metros de altura, me arrastava pelos cabelos e batia minha cabeça no chão. Eu não conseguia fugir. Desmaiei.
Quando recobrei a consciência, senti um cheiro forte de álcool e percebi que estava sendo queimada viva. Eu me levantei e tentei escapar. Não adiantou. João me empurrou cinco ou seis vezes para o fogo. Quando corri até a área de serviço para gritar por socorro, ele foi atrás e me atirou pela janela do terceiro andar. Lá embaixo, caída no chão e em chamas, sentia vidros explodindo em cima de mim. Eu me debatia implorando que salvassem meus filhos. Isadora tinha 2 anos e Henrique apenas 3 meses. Enquanto vizinhos se aglomeravam para me ajudar, João chegou sem nenhum ferimento. Tentou me culpar berrando que eu havia feito aquilo. Mas gritei que tinha sido ele e as pessoas não o deixaram fugir.
Tive 40% do corpo queimado. Uma das minhas orelhas derreteu, perdi 60% da visão do olho direito e metade do couro cabeludo. Como não nasce mais cabelo, uso prótese. Quebrei os calcanhares, tornozelos e joelhos. Três centímetros do fêmur entraram na bacia, três vértebras da coluna foram esmagadas e houve fundamento de crânio. Tive infecção generalizada e abscesso no fígado; por pouco não precisei de transplante. Fiz diversos enxertos. Só descobri que meus filhos não tinham resistido depois de quase quatro meses de internação, incluindo 45 dias de coma. O senhor Ênio, que tinha 72 anos e morava no prédio, tentou resgatá-los e também morreu.
Essa tragédia me transformou radicalmente e me tornou uma ativista. Luto por justiça, pois João ainda não foi julgado, e também para que outras mulheres não sofram como eu. Muitas me procuram nas redes sociais ou pessoalmente pedindo orientação. Tenho mais de 170 mil seguidores no Facebook e no Instagram. Com o suporte do meu companheiro, acabei de criar o Instituto Barbara Penna, em Porto Alegre, onde moro, focado no combate à violência de gênero e no empoderamento feminino. Vamos oferecer às vítimas o apoio que nunca tive para sair de um relacionamento abusivo, reunindo diversos tipos de atendimento – como psicológico, jurídico e profissionalizante. Já temos parcerias com setores do poder público e da iniciativa privada.
O caminho da destruição eu já conheço. Agora, quero construir, por mais que minha trajetória seja difícil e cheia de altos e baixos – porque ainda tenho de fazer várias cirurgias, fui recentemente ameaçada por um parente do meu ex e sofro demais ao pensar no futuro que foi tirado dos meus filhos. Meus dois anjinhos e a Luisa são meu oxigênio. Assim como o Robson, eles me dão força. Sinto que estar viva hoje é um milagre e tento me focar em coisas boas. Luisa me motiva porque está alegre a qualquer hora do dia ou da noite. Juntas, dançamos, desenhamos, assistimos a desenhos. É um grude que parece de outra vida. Quero que a minha filha e as outras meninas cresçam sabendo que têm de tomar as próprias decisões, que merecem respeito e que não devem permitir que outras pessoas as impeçam de realizar seus sonhos.”