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Elis, amor da minha vida

A partir do momento em que a conheci, todas as minhas músicas foram feitas para ela. Nunca foi diferente. Nossa relação é uma coisa que me arrebata até hoje

Por Redação M de Mulher
Atualizado em 15 jan 2020, 23h47 - Publicado em 20 Maio 2013, 21h00
Milton Nascimento (/)
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Elis, amor da minha vida

“Quando eu estava doente sonhava toda noite com a Elis, pedia para ela cantar e ela não cantava”
Foto: Cláudio Edinger

Minha relação de amizade com Elis foi uma das coisas mais fortes que já aconteceram na minha vida. E eu me lembro até hoje de cada detalhe e também de tudo que a gente viveu juntos. Tudo começou por volta de 1963, quando Wagner Tiso e eu estávamos no Rio de Janeiro para gravar um disco a convite do compositor Pacífico Mascarenhas. Depois de uma viagem de carro que durou quase o dia inteiro entre Belo Horizonte e o Rio, fomos direto para o estúdio Musidisc.

 
Quando a gente chegou lá, uma cantora chamada Luiza estava gravando a última faixa de seu primeiro disco. Naquele dia, o famoso maestro Moacir Santos estava fazendo os arranjos e precisava de um coro, então, o Pacífico colocou a gente para gravar ali mesmo, na hora. Depois da gravação, teve uma festa na casa da Luiza.
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Eu conhecia Elis pelo nome, porque seus primeiros discos já eram conhecidos desde a época em que eu tinha um programa de rádio em Três Pontas (MG). E Elis também estava na casa da Luiza, onde havia vários músicos conhecidos da bossa nova. Então resolvi falar com ela, fiz uma brincadeira e cantei um rock que ela tinha gravado. Ela respondeu:
 
– Cala a boca! Esquece isso! – foi a primeira coisa que ela me disse na vida. Fiquei fascinado por ela. E nós ficamos andando pelas ruas de Ipanema até de manhã.
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Em 1965, fui classificado com uma música de Baden Powell para o 2o Festival Nacional da Música Popular, e Elis estava escalada para fazer o show do último dia – pois havia levado o primeiro lugar na edição anterior com Arrastão. E, no fim de um ensaio, eu a encontrei num corredor quando ela estava chegando. Eu, muito tímido, abaixei a cabeça, porque para mim ela já era a rainha. Ela passou, bateu o tamanco no chão e disparou:
 
– Escuta aqui! Mineiro não tem educação não? As pessoas educadas costuman cumprimentar as outras. Quando é de manhã, falam “bom dia”, quando é de tarde, falam “boa tarde”, quando é de noite, falam “boa noite”.
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Eu parei, pedi desculpas e disse que eu não queria incomodar, porque eu estava vendo o tanto de gente que queria falar com ela. Conversamos mais um pouco e ela me convidou para ir à sua casa.
 
– Eu quero que você toque aquela música que você cantou naquela festa na casa da Luiza – disse Elis, e começou a cantar a música, certinha.
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Naquela noite, na casa da Luiza, quando a gente se encontrou pela primeira vez, Wagner e eu tocamos uma música nossa: Aconteceu. Uma música que a gente havia feito ainda nos tempos de garoto, em Três Pontas. E, enquanto Elis cantava nossa música, eu olhava, pasmo. Como assim? Anos depois e ela ainda lembrava a letra e a melodia de uma música que tinha ouvido apenas uma vez! Ao observar minha cara de espanto, Elis soltou mais uma antes de sair:
 
– Memória, meu caro! Memória…
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Em 1966, Elis já era uma das artistas mais famosas do Brasil, tinha acabado de se mudar para um apartamento na Avenida Rio Branco, no centro de São Paulo.
 
E, alguns dias depois de ter reencontrado Elis, fui até a casa dela para mostrar minhas músicas. Gilberto Gil, também começando, estava lá a ajudando a escolher repertório para o próximo disco. Toquei todas as minhas músicas, com os dois em silêncio. Até que ela me perguntou se não havia mais nenhuma. Por fim, meio desanimado, apresentei Canção do Sal e ela decidiu gravar
 
Mais ou menos nessa época, eu ia em praticamente a todas as gravações do programa O Fino da Bossa. Eu já tinha um amor dentro de mim por aquela baixinha. Até que, teve um dia, eu estava saindo da TV Record e a encontrei:
 
– Onde vai passar o Natal? – perguntou ela. Quando eu disse que ia passar com minha família, em Três Pontas, ela retrucou:
 
– De jeito nenhum! Você vai passar com a minha família no Rio.
 
Fomos todos de avião, de São Paulo para o Rio. Na noite da ceia – onde conheci também o irmão dela, Rogério – eu estava sentado numa cadeira quando a Elis veio e sentou bem na minha frente. Isso foi logo após a entrega de presentes. Durante a conversa, ela chorou bastante, me contou várias coisas da vida. Foi então que percebi que ali estava nascendo uma grande e magnífica amizade
 
Naquele tempo, a coisa estava muito difícil em São Paulo. Havia uma competição muito forte. A Elis Regina era uma das únicas pessoas que me davam atenção. E eu também não gostava de forçar a barra. Até que apareceu também o Agostinho dos Santos. Eu estava substituindo um músico num bar quando chegou uma pessoa e perguntou quem eu era. Era o Agostinho. Depois de me apresentar para várias pessoas, me levar a todos os lugares, ele contou sobre um festival que ia acontecer no Rio. Mas eu respondi:
 
– Agostinho, de jeito nenhum!
 
Disse a ele que eu não gostava daquele clima de competição em festivais, onde parecia que um queria matar o outro etc. Mas ele continuou insistindo por muito tempo, então parou. Ficou uns tempos sem aparecer e um dia, quando eu estava na pensão onde morava, ele me procurou:
 
– Bicho, arrumei um produtor e vou gravar um disco! Preciso que você grave três músicas para ele escolher. 
 
Sem desconfiar de nada, fui à casa de um amigo dele e gravei três músicas: Maria Minha Fé, Travessia e Morro Velho. Entreguei a fita ao Agostinho e ele desapareceu novamente. Passou mais um tempo e eu fui assistir ao programa da Elis, O Fino da Bossa. Gente que nunca tinha falado comigo começou a me abraçar e tal. De repente, saiu a Elis, que deu um pulo dizendo:
 
– Eu sabia! Eu sabia!
 
– Sabia o quê, Elis? – eu perguntei.Daí ela falou:
 
– Você classificou três músicas no Festival do Rio de Janeiro!
 
Mas eu não tinha inscrito nenhuma música no festival, argumentei. Então, Elis respondeu:
 
– Ah, então tem outro Milton Nascimento!
 
Fiquei completamente desesperado com essa possibilidade. E, quando eu estava saindo do teatro, escutei a risada do Agostinho, daí entendi tudo. Ele tinha inscrito as músicas sem eu saber.
 
– Agora não tem jeito! – disse Agostinho, rindo.
 
A partir desse festival, minha vida mudou completamente. Gravei meu primeiro disco no Brasil, e logo depois fui para os Estados Unidos gravar outro. Ao longo disso tudo, Elis e eu estávamos cada vez mais próximos. E, enquanto ela estava aqui com a gente, eu pude estar ao seu lado em praticamente todos os discos que gravou, assim como ela estava presente nos meus. Todas as músicas que fiz a partir do momento em que conheci Elis foram feitas para ela. Sempre que eu vou fazer alguma coisa, penso logo nela cantando, nunca foi diferente.
 
Tem uma história que eu tenho contado bastante desde que gravei meu último disco, E a Gente Sonhando. É sobre uma música que está neste disco, chamada Amor do Céu, Amor do Mar.
 
Como todas as músicas que eu faço, eu retrato minha vida, o que eu estou vivendo, o momento, as pessoas e tudo mais. E teve uma época em que eu estava com um problema de saúde e todas as
noites sonhava com a Elis Regina. Ela vinha, e tinha sempre um jantar na casa dela, mas ela não cantava. Eu ficava pedindo para ela cantar e ela não cantava. Mais tarde, quando a gente estava fazendo os Tambores de Minas, uma criança falou que tinha visto dois anjos no palco comigo. E eu senti que nesses sonhos a Elis também estava com dois anjos. Foi uma história muito louca, porque alguém (que tem o dom de reconhecer as coisas) falou para mim que eu era muito forte porque tinha dois anjos da guarda. Eu não entendi por quê, pelo que eu saiba, cada um tem um anjo da guarda. Até que, um dia, minha sobrinha Dadaia chegou e me deu um cartão com meu anjo, o Jeliel, e, quando eu olhei, eram dois anjos. Então, Amor do Céu, Amor do Mar tem tudo isso, mas também tem outra coisa. Eu adoro água, mar, e essa coisa de mergulhar me ajudou muito na minha vontade de viver. Janaína é o amor do mar, assim como Elis Regina é amor do céu.
 
A amizade entre a gente era tão grande que, em todos os shows da Elis que fui assistir depois que o João e o Pedro nasceram, era eu quem ficava com eles enquanto ela cantava. Teve um show da turnê Transversal do Tempo, em que eu estava com o João sentado à minha direita, e o Pedro à esquerda. E tinha uma música em que a Elis subia o tom a cada frase. E, assim que ela começava a subir, o  edro também ia subindo junto. Quanto mais ela subia, mais ele subia também. E o Pedro seguia acompanhando a mãe até a última nota.
 
Elis e eu vivemos muitas coisas juntos, um sempre cuidava do outro. Eu nunca fui somente um compositor, um colega de trabalho. Para ela, eu fui muito mais que isso. Nossa relação é uma coisa que me arrebata até hoje. E eu nunca me esqueço de uma coisa que o Rogério, irmão da Elis, me falou depois de um show em Paris: 
 
– Minha irmã foi o grande amor da sua vida, Milton.
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