Como o amor transforma a relação da mulher negra consigo mesma
Três mulheres contam como a etnia impacta seus relacionamentos afetivos e o que descobriram sobre si mesmas ao conviver com seus parceiros
Você já parou para pensar em como o amor é despertado? Para a medicina, o sentimento começa no cérebro, quando os neurônios liberam a dopamina, aquele hormônio que deixa as pernas bambas e enche de borboletas o estômago. Já para alguns ramos da psicologia, o afeto é uma construção social, ou seja, nós aprendemos a gostar de alguém.
Nossa família, nossos brinquedos, o que diz a mídia, a escola em que estudamos e o trabalho que temos são fatores que determinam a formação do gosto pessoal. “Tudo isso é influenciado por raça, classe e gênero. Com o amor não seria diferente. A gente aprende por quem deve se apaixonar. Por isso existe a rejeição aos outros. Os critérios não são iguais para todo mundo”, afirma Mariana Luz, psicóloga e representante do núcleo temático de psicologia e relações raciais do Conselho Regional de São Paulo.
Portanto, falar de amor não é só tratar de encontros, mas também de preterimento. E esse ponto é essencial quando o assunto são os relacionamentos afetivos das mulheres negras. Segundo o Censo 2010 do IBGE, esse grupo étnico é o que menos se casa no país – apenas 7% do total de matrimônios.
Em contrapartida, essas mulheres são as mais vulneráveis ao estupro, compondo 54% dos casos, de acordo com o Atlas da Violência 2018, prova de que a exploração sexual da época da escravidão ainda as assola. É complexa a equação para encontrar um parceiro e a felicidade a dois.
Sonhos, medos, afinidades, cultura e ancestralidade foram itens levados em consideração pela advogada Kissy Cândido, pela engenheira Débora Carvalho e pela jornalista Sophia Mattos na escolha do parceiro e na construção dos laços com ele.
A seguir, elas revelam as particularidades de sentir, viver e buscar o amor sob a ótica racial. E contam como os relacionamentos que já tiveram impactaram a relação mais importante de todas: com elas mesmas.
De dentro para fora
“Sempre frequentei lugares em que só tinha gente branca, mesmo vindo de uma família toda negra. Estava acostumada a achar bonito o padrão europeu e, assim, me relacionei com muitos homens brancos. Eu não ficava com homens negros por achar que não ia dar certo. Ouvia desde pequena que eles eram difíceis e não prestavam.
Hoje sei que o branco e o negro podem cometer os mesmos erros. Escutei de ambos coisas do tipo: ‘Nossa, você é tão bonita que nem parece negra’. Os brancos, porém, costumam falar mais essas coisas. Acho que os negros entendem, em parte, as mazelas que sofremos. Porém, só fui ter noção desses atos racistas algum tempo depois.
A verdade é que eu tinha consciência de ser negra, mas não me sentia realmente inserida na etnia. Acabava me diminuindo. Durante o curso de direito na Faculdade Zumbi dos Palmares, comecei a mudar minha relação comigo mesma, a me aceitar e gostar de mim. Isso é essencial na busca de um relacionamento saudável. Daí em diante, as coisas passaram a fluir melhor.
Antes de estar feliz com o parceiro, você precisa estar bem consigo mesma. Assim, saberá tomar as melhores decisões para sua vida. E entenderá os limites de algo que não faz bem a você e que não tem por que se forçar a continuar.
Quando conheci o Paulo, notei que queria ter com ele um relacionamento sério. Um incentivava o outro. Juntos, tínhamos vontade de ser melhores, estudar mais, conseguir trabalhos melhores, almejar mais. É uma grande atitude, já que o negro é maioria na sociedade, mas minoria nos polos da educação.
Hoje, acredito que a relação entre homens e mulheres negras é mais forte, pois compartilham da mesma cultura e enfrentam o racismo. Claro que o preconceito não é o mesmo para homens e mulheres, mas a dor é bem semelhante. Penso que, se eu sofresse racismo ao lado de um parceiro branco, ele até iria sentir tristeza, mas não com a mesma proporção.”
– Kissy Cândido, 29 anos, advogada, de São Paulo. Casada com Paulo Augusto, 33 anos.
Só se for para somar
“A primeira vez que me apaixonei foi por um menino negro, mas não fui correspondida. Em Porto Alegre, minha cidade natal, tive dois relacionamentos afrocentrados. A família do primeiro aceitou a relação, mas ele não queria estudar, e a diferença de perspectivas de vida nos distanciou.
No segundo relacionamento, os pais do menino diziam que eu era muito escura para namorar com ele, apesar de sermos os dois pessoas negras. Chegaram a apresentar outras meninas para ele e a pedir que eu pagasse parte das contas de energia das noites que dormia na casa deles. O garoto não trabalhava nem estudava e não me apoiava.
Depois, conheci um homem branco alemão e nos mudamos para São Paulo. Ficamos quatro anos juntos. Mas o relacionamento foi se tornando insustentável, pois ele me ofendia com frequência. Durante uma viagem, um senhor nos abordou para saber se eu era ‘acompanhante’ dele. Além de não me defender, ele ainda tentou me convencer a não fazer nada. Aquilo me impactou. Ainda há uma visão muito estereotipada da mulher negra, que a reduz ao corpo na nossa sociedade.
Desde então, conheci algumas pessoas, mas não me comprometi mais. Procuro me relacionar com homens negros porque me sinto melhor com eles. Quero alguém que entenda meu lugar no mundo e acho que só um homem da mesma etnia vai ter essa sensibilidade.
Se estou ao lado de um negro, ninguém estranha. Parece que há até um respeito maior da sociedade, talvez por aceitar melhor a ideia de ser um casal de verdade – e não uma suposta troca de interesses.
Os homens, brancos ou negros, que ficam com mulheres negras escolhem as de pele mais clara, as mais novas e com grau de instrução inferior ao deles. Machismo, né? Eles têm dificuldade de lidar com mulheres de formação sólida.
Já cheguei a evitar falar que sou engenheira, fluente em alemão e que faço doutorado. Mesmo nunca tendo ouvido ‘eu te amo’, sempre busquei a felicidade e não me deixo abater por problemas. Porque a alegria não está em um relacionamento, mas dentro de mim. Quem quiser chegar, se for para somar, a gente avalia.”
– Débora Carvalho, 38 anos, engenheira, de Porto Alegre.
Um + um = um casal
“Na infância, sempre pensei que teria um relacionamento com um homem negro. Estudei em escola particular e era a única negra. Até a adolescência, ninguém queria ficar comigo. Nem dupla na festa junina eu tinha. Dançava com um menino que também era rejeitado por ser boliviano.
Portanto, imaginava que, se houvesse um menino negro no colégio, eu poderia ter esperança de ele ficar comigo. Até aconteceu de alguns garotos brancos demonstrarem interesse, mas não assumiam publicamente por vergonha. Então, me apaixonar por um branco era certeza de frustração.
Certa vez minha mãe me disse: “Você é tão bonita que deveria ficar com uma pessoa branca”. Não a culpo ou julgo. Ela ouviu isso durante a sua criação. E, na verdade, tanto homem negro quanto homem branco dificilmente assumem uma mulher negra.
Matthew foi o primeiro cara que me assumiu como namorada – seis dias depois do primeiro encontro. Nunca vi minha mãe tão feliz na vida. Ele é ótimo, mas não dá para ignorar o fato de que é branco. Se fosse negro, não seria tão bem tratado em qualquer lugar, sabe?
Estamos juntos há quatro anos. Como Matthew é australiano, ainda não conheço os pais e os amigos dele pessoalmente. Só nos falamos virtualmente, mas eles nunca demonstraram nenhum preconceito. Não sei como será pessoalmente. Já deixei claro para ele que sinto medo desse encontro.
As piores brigas que eu e Matthew tivemos foram por questões raciais. Ele tem um discurso ingênuo de que todos somos iguais. Quando nos conhecemos, eu morava numa casa minúscula, bem diferente da dele. Tento falar da realidade que é ser negra no Brasil e, às vezes, não quero a opinião dele, só alguém para me escutar. Não é porque ele está com uma mulher negra que não será racista.
Ao final, colocando na balança, o amor é maior. Matthew nunca deixou de falar dos sentimentos dele por mim. E até hoje me aceitou com todas as minhas facetas, assim como eu abracei as características múltiplas dele. Para mim, isso é parceria, mesmo que as realidades não sejam as mesmas.”
– Sophia Mattos, 23 anos, jornalista, de São Paulo. Casada com Matthew James, 28 anos.
Bagagem pesada
Segundo a psicóloga Mariana Luz, a busca em satisfazer os desejos dos familiares ou tentar suprir uma lacuna emocional são atitudes comuns, assim como criar expectativas e dúvidas sobre o futuro. Entretanto, é preciso prestar atenção, já que essas emoções tendem a ser maximizadas pelo racismo e pelo machismo. O diálogo com a pessoa envolvida ou com alguém de vivência parecida é essencial para dissipar traumas – além, é claro, do apoio terapêutico profissional.
Com as bênçãos da mãe, Elisangela, e do padre Francisco, Kissy e Paulo celebraram a união em duas cerimônias: uma no candomblé, religião seguida pelo casal, e outra na igreja católica, para contentar a avó da noiva. “Ela fazia questão, apesar de ser algo que não nos representava”, conta Kissy.
Para Débora, o peso familiar se deu pela ausência paterna, que impacta suas expectativas de construções afetivas mesmo na fase adulta. “Desde cedo entendi que pessoas com famílias estruturadas tendem a ter mais sucesso. E eu vim de uma construção humilde. Isso, aliado à questão com meu pai, traz consequências à minha vida. Acho que busco essa figura em outros homens”, diz ela.
Já Sophia cultiva, juntamente com o desejo pela maternidade, uma dúvida. “Como será a criação de uma criança com pais de etnias diferentes? Se tivermos um filho, ele vai ser preto. Matthew só vai aprender o que é racismo quando o filho dele for vítima de alguma situação de opressão por causa da pele. Daí tudo o que expliquei durante o relacionamento vai fazer sentido para ele”, reflete ela.
Mariana ressalta que só o amor não é suficiente para a relação dar certo, porque não vivemos só disso. “A pessoa vai definindo quais são os outros fatores necessários”, explica a psicóloga.
Beleza Ale Fagundes • Assistente de beleza Henrique Miranda