Aprenda a se proteger para não absorver todos os problemas ao seu redor
Especialistas explicam como esse ato nocivo está ligado à autoestima e a atravessamentos sociais
oram anos de muita angústia e sofrimento até que Patrícia* percebesse uma relação perigosa que permeava seu convívio social. “Eu acreditava que estava ajudando uma pessoa que amava para evitar o sofrimento dela, mas na verdade tomava o problema para mim e ainda impunha a solução”, lembra sobre um episódio recorrente não só na sua vida, como na de muitas pessoas consideradas “esponjas de sentimentos”.
A preocupação intensa, que encobre atitudes controladoras, pode ser um traço de personalidade, como Patrícia acredita ser no seu caso, mas também é fruto de outros fatores externos. “A empatia é estimulada desde a infância em diferentes níveis. Por exemplo, quando é reforçado para a criança que ela tem coisas que outras não têm, isso impactará nesse envolvimento dela com a sociedade no futuro”, aponta a psicóloga Rafaela Alves.
A transição da empatia para uma relação nociva de excesso de cuidado e sobrecarga também pode ser explicada pela construção da nossa sociedade. A pesquisadora ressalta que o processo de colonização do país deixou o rastro de culpa até os dias de hoje.
“Esse sentimento foi construído pela organização social, que ainda é baseada estruturalmente nos valores morais da Igreja Católica. Então, se você não atende às expectativas impostas pelo outro, será punido. Fruto do patriarcado e do racismo, essa sobrecarga de cuidado recai sobre brutalmente sob as mulheres, principalmente as negras”, pontua Rafaela.
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Para Juliana*, esse peso por muito tempo foi visto como uma obrigação, uma espécie de dever para garantir o bem-estar de toda a família – enquanto o dela era negligenciado. “Estava sempre vivendo a vida das pessoas e mais empenhada do que elas mesmas para resolver os seus problemas. Só que, na pandemia, percebi que, quando sou eu quem preciso, quase não tenho ninguém. As pessoas me procuravam na necessidade, e isso é resultado de uma relação que eu mesma criei”, fala a profissional autônoma, que vive com o filho, diagnosticado com autismo.
“Quando estava em uma condição financeira mais confortável, não sentia tanto o peso de ajudar conhecidos com dinheiro. A minha ficha só caiu na hora que passei necessidade dentro de casa depois de me oferecer para resolver problemas dos outros”, conta Juliana, que chegou a fazer um financiamento para quitar as contas de energia da irmã. “Não conseguia aceitar que, enquanto eu estava em casa, ela estava na dela sem luz.” O olhar genuíno logo foi tomado pela decepção de ver que a mesma não se esforçava para manter as contas em dia.
À exemplo da situação vivida pela Juliana, a psicóloga e professora da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Ana Suy Sesarino Kuss, afirma que os limites criados com o outro nem sempre são nítidos. “Isso aparece quando olhamos a situação de fora. Internamente, acabamos nos misturando com quem nos cerca. Todos nós somos assim em algum nível. Algumas pessoas têm mais dificuldade e acabam se misturando mais com o outro. Somos muito sugestionáveis, ou seja, a convivência nos contagia. É interessante que a identificação com a dor do outro, quando é algo positivo, chamamos de empatia. Já no caso contrário transforma-se em um problema”, pontua Ana. Patrícia percebeu esses efeitos na sua rotina.
“Quando somos esponja, impedimos o outro de se desenvolver e deixamos de viver”
Patrícia*
Da alimentação ao sono, os problemas absorvidos na família e nas amizades mudavam os rumos da sua vida. “Eu poderia ter o dia mais feliz da minha vida, alcançar uma conquista aguardada, mas se recebesse uma notícia ruim ligada a alguém que amo, ficava triste de forma desequilibrada. Nem se fosse comigo eu ficaria daquela forma. Não me permitia aproveitar os instantes, perdia o apetite e era tomada pela ansiedade”, conta Patrícia.
O limite foi ultrapassado e percebido por ela durante um conflito com a irmã mais velha, que resolveu reatar um relacionamento que não queria. “Sentia que precisava alertá-la para o erro que estava cometendo ao não considerar sua própria decisão para agradar o parceiro. Assim, eu acabei me tornando mais um problema por ter extrapolado na hora de aconselhar”, lembra.
A segurança emocional social de cada indivíduo certamente influenciará no entendimento desse limite apontado por Patrícia. Segundo Rafaela, as relações abusivas multiplicam essa carga de absorção. “Até no próprio trabalho pode haver uma exploração legitimada ou subjetiva, que gera preocupação intensa. Quando vivemos em ambientes, relações e instituições saudáveis, a retomada do equilíbrio flui melhor”, diz a profissional.
Outro ponto que deixa o caminho mais tortuoso é a expectativa de como o outro lado irá reagir, principalmente em relações em que o respeito não foi rompido. Juliana sofria exatamente disso com o medo da rejeição e de magoar alguém. Esse contexto é observado também em casos que envolvem questões de saúde, por exemplo.
Mas a doutora Ana lembra de um ponto essencial: “É importante destacar o que é uma pessoa e o que é um transtorno ou diagnóstico. Essa diferenciação é importante para não confundirmos uma coisa com a outra. Por isso, precisamos verificar qual é o limite do outro, com quais pessoas nós nos identificamos ou não. Tentar reverter isso nos leva ao sofrimento”, afirma a professora.
Tanto Patrícia como Juliana já experienciam essa fase de atenção ao próprio comportamento. “Ainda sinto culpa e arrependimento quando falo um ‘não’, mas preciso assumir a responsabilidade das minhas ações em vez de oferecer ajuda antes mesmo de me pedirem. Esse tipo de consciência é uma forma de lealdade comigo mesma”, diz a autônoma. Os frutos de uma vida em que seus desejos são respeitados agradam a nova versão da Patrícia, que é lapidada diariamente.
“É um processo, afinal, não mudamos do dia para a noite. Tenho altos e baixos, mas acredito que é crucial ter alguém do seu lado nesse processo. Nós sabemos o que não se deve fazer, mas o que falta é o incentivo para transformar essa noção em prática”, fala a advogada, que hoje se permite expressar sua opinião sem o medo da rejeição.
Visões diferentes
Entender que cada pessoa traz uma percepção diferente da vida é crucial para evitar um envolvimento desnecessário, segundo a terapeuta comportamental Simone Rosa. “A resolução de problema do outro faz parte do entendimento dele no mundo”, diz a analista. Ao interferir de forma invasiva, a pessoa não estimula os próprios meios de desenvolvimento.
Cuidado com o controle
Cada indivíduo constrói uma relação com o controle. Uns são dependentes dele no direcionamento externo, enquanto outros tendem a ditar suas ideias e vontades. “Nós não controlamos pessoas. É possível dar uma opinião, mas lembre-se de que a decisão pode ser contrária a ela. Adultos, em plenas condições, são capazes de resolver os seus conflitos”, afirma Simone.
Respeite seus limites
A comunicação é um dos principais acessos para o convívio respeitoso, ainda que tenha diferenças. A psicóloga Rafaela lembra que os impactos da pandemia ainda não são totalmente conhecidos, mas é fato que não vivemos como antes. ”Reconheça sua disponibilidade afetiva para esses encontros, pense no tempo que ficar em contato. Ainda enfrentamos processos tão dolorosos e de luto.”
Dose de amor
No isolamento, a troca de afeto encurtou distância e curou feridas de muitas pessoas. Porém, é preciso cuidado para que a compensação de amor represado não se torne uma armadilha. “É preciso amar num grau de igualdade, sendo que o nosso amor próprio deve ser a referência de amor. Se você percebe que há um desequilíbrio, peça ajuda profissional”, recomenda Simone.
*Os nomes foram alterados a pedido das entrevistadas