Em 25 de janeiro do ano passado, perto do meio-dia, uma onda de lama e rejeitos de minério de ferro atingiu povoados da cidade de Brumadinho, em Minas Gerais. O rompimento da barragem situada no Córrego do Feijão – e mantida pela mineradora Vale – deixou, até a conclusão desta reportagem, 171 mortos e 139 desaparecidos.
A tragédia aconteceu três anos depois do rompimento da barragem de Fundão, a 160 quilômetros dali, na cidade mineira de Mariana, que deixou 19 mortos. A Samarco, que pertence à Vale, ainda não pagou todas as indenizações, e os lugares atingidos não foram recuperados. Isso sem falar da destruição ambiental da região. O desastre, porém, vai além do material. São os dramas familiares, a tristeza, a saudade, o inconformismo que destroem lares e comunidades.
A repetição da calamidade em Brumadinho deixará os mesmos rastros. “Que todos nós vamos morrer a gente sabe, mas o que eu não consigo aceitar é a forma como aconteceu. Vejo as fotos das pessoas que partiram e penso: ‘Elas não mereciam isso’ ”, diz Rosilene Alexandre, 41 anos, sentada na mesma sala em que se despediu do marido, Hugo, na quinta-feira, véspera do ocorrido. Ele saiu para o trabalho e nunca mais voltou. Desde então, é ali, no chão da sala, que ela tem dormido abraçada à filha, Maria Alice, 10 anos.
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Fazia 18 anos que Rosilene e Hugo estavam juntos. “Ele fazia tudo para me agradar”, conta olhando para a calça branca estendida sobre o tapete. Hugo estava usando a peça no dia em que se conheceram, em um bar de Brumadinho onde a banda Quebra Samba tocava. Um dos músicos também morreu no tsunami de lama tóxica que vitimou, além de trabalhadores da Vale e de empresas terceirizadas que prestavam serviço à mineradora, funcionários e hóspedes da Pousada Nova Estância e pedestres – pessoas que passavam por ali, se banhavam no rio, viviam sem suspeitar do que estava por acontecer.
Também romântica, Rosilene guarda com a calça o vestido vermelho que usou no dia do noivado deles e o vestido verde escolhido para seu casamento no cartório. No portão da garagem da casa em que mora, um H e um R foram desenhados com tarraxas de metal por Hugo para surpreender a mulher. A casa está mais silenciosa. Maria Alice usa o computador no quarto; a cachorra, Mel, está deitada no quintal. Rosilene, com os dedos nos lábios, ainda parece estar assimilando a notícia.
Com a filha para criar sozinha, se pergunta o que será dela e de tantas outras mulheres que perderam companheiro, pai, filho na cidade de menos de 40 mil habitantes. Das 310 vítimas, 235 eram homens, a maioria provedora dos lares. Rosilene é professora da rede municipal de Brumadinho, mas, este ano, não teve o contrato renovado. “Guardei um pouco de dinheiro. Se não fosse isso, estaria vivendo de favores de amigos e parentes.”
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A causa do rompimento da barragem está sendo investigada, mas já se sabe que não foi apenas um acidente. Documentos provam que a Vale tinha ciência do risco e, portanto, que o desastre poderia ter sido evitado. Desde 2017, os resultados apresentados em avaliações não eram satisfatórios.
Em junho de 2018, uma simulação de evacuação havia sido feita com os funcionários. Em outubro do mesmo ano, outro treinamento. Entretanto, no dia 25 a sirene que alertava para situações de emergência não soou e, em questão de minutos, a lama percorreu quilômetros. “Eles tinham que ter dado férias coletivas para avaliar o que estava errado, mas deixaram as pessoas correndo risco”, afirma Maria das Dores Barbosa de Oliveira, 52 anos.
Dona Cota, como é conhecida na comunidade de Córrego do Feijão, perdeu o filho Rodrigo Henrique de Oliveira, 30 anos. Ele tinha um filho de 10 anos e cuidava dos outros três da companheira. “Isso já diz muito sobre ele”, diz Rômulo, seu irmão. Durante a entrevista, a confusão entre verbos no presente e no passado entregava a dificuldade em lidar com a perda repentina. A rotina da família mudou drasticamente. O caçula completou 24 anos no dia seguinte à tragédia, e o filho de Rodrigo fez aniversário em 13 de fevereiro. “Agora não tem mais graça. Acabou. Vamos comemorar o quê?”, questiona dona Cota.
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Na internet, um vídeo circulava com funcionários da Vale uniformizados cantando a música Noites Traiçoeiras, do padre Marcelo Rossi. Rodrigo aparece no canto direito, feliz. Tinha sido gravado poucas horas antes da tragédia. Como muitas outras famílias da cidade, a dele se fortalece pela religião e mantendo a casa cheia. O bule de café está sempre quente para receber parentes e amigos que chegam para dar apoio.
O corpo de Rodrigo só foi encontrado no dia 8 de fevereiro, duas semanas após o rompimento da barragem. “A angústia acabou, mas a dor não”, diz a mãe. Na casa ao lado, a vizinha ainda aguardava notícias da filha desaparecida. “Eu fiquei que nem ela”, explica dona Cota. “A ponto de ficar doida. A gente fecha os olhos e vê tudo, não dá para esquecer aquelas imagens.”
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Na Estação Conhecimento de Brumadinho, local criado pela Vale para ações sociais voltadas à comunidade e que hoje funciona como base de atendimento aos familiares das vítimas, Simone de Jesus, 38 anos, afirma: “Brumadinho agora só tem viúva”. Ao lado da filha, Eduarda, e da cunhada, Fátima, ela espera uma van que as levará a Belo Horizonte para resolver burocracias do seguro de vida de seu companheiro, Wanderson Mota. O mecânico da Vale tinha 32 anos.
Nas últimas semanas, familiares das vítimas têm passado por consultas com voluntários, advogados, defensores públicos a fim de reunir documentos para enterrar seus parentes com dignidade – e também para recorrer ao direito à indenização. Os enterros não podem durar mais do que 15 minutos.
“O do meu marido durou dez minutos porque depois começa o mau cheiro. E tem muita gente esperando para enterrar; então precisa ser rápido”, justifica Eliane Almeida, 47 anos, também viúva após a tragédia de Brumadinho. Renildo Aparecido do Nascimento, 46, controlador de tráfego da Vale, deixou três filhas: Maria Julia e Milena, do primeiro casamento, e Pamela, que teve com Eliane.
“Ele era meu melhor amigo”, conta a caçula, de 12 anos, sorrindo. Ela e a mãe mantêm o jeito doce e leve mesmo diante da perda. A pequena lamenta, contudo, não ter mais fotos do pai guardadas no celular: “Eu não sabia que isso ia acontecer”, diz. Mas lembra que ele não gostava de sorrir em fotos; só o fazia para agradar às filhas. “Fiquei até impressionada com esta”, diz, mostrando um registro raro dos dois abraçados. Pamela quer ser bombeira. Pretende ajudar os outros. “Eu os vejo salvando vidas, e isso me dá orgulho. Eles acharam o corpo do meu pai naquela lama”, conta, inocente, os olhos brilhando de admiração.
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O desastre que despejou 12 milhões de metros cúbicos de rejeitos sobre a cidade interrompeu muitos sonhos. Ouve-se com frequência: “Não deu tempo”. Luciana de Brito Chagas, 30 anos, queria ser mãe. Casada por 14 anos com Wesley Antonio das Chagas, 36, planejava engravidar este ano, viajar para Israel em 2020 e continuar a expansão da loja de roupas femininas que tinha com o marido. “Fazíamos tudo juntos. Vai ser difícil ficar sozinha.”
Além da gestão da loja, Wesley dirigia uma escavadeira na Vale, construindo estradas e taludes que podem ser vistos da varanda da casa que mantinha com Luciana. De tempos em tempos, iam para São Paulo comprar mercadoria. “Estávamos planejando comprar um carro para evitar trazer tanta coisa no ônibus, mas não deu…”
Luciana seguirá tocando a loja, apesar de a irmã e a sogra terem pedido que parasse. Ela acha que é bom falar com pessoas, distrair a cabeça. Simone também desabafa: “Não posso ficar parada. A Vale ainda não ajudou financeiramente”. Ela e Wanderson estavam construindo uma pet shop na cidade, projeto que aos poucos vai retomar. “Tomara que tomem alguma providência. A empresa não pode passar impune.”
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Na manhã do dia 25, Conceição Lopes Fernandes Silva, 53 anos, assava biscoitos de polvilho sob encomenda quando sua nora ligou para contar que a barragem havia rompido. Permaneceu calma. “Esperei até a hora de ele chegar, à tarde, mas até hoje não tenho notícias.” Levi Gonçalves da Silva, 59, trabalhava na limpeza de vagões da mineradora e segue desaparecido. Os dois estavam juntos havia 40 anos, desde que Conceição tinha 13. A aliança gastou tanto que quebrou, mas outro anel substitui seu lugar no dedo.
“Íamos comprar uma nova, mas não deu. Minha menina perguntou se eu ia continuar usando o anel. É a minha lembrança dele, vai ficar comigo para sempre”, diz. Rodeada pelos cinco filhos e oito netos, procura se reerguer e seguir. Mas, daqui a um tempo, quando a rotina for restaurada, continuará em sua casa só com a filha mais nova, Carine, 16 anos. Além do trabalho na Vale, Levi plantava milho, feijão, alface e outras verduras em uma horta comunitária na rua da frente de onde morava.
Conceição, no entanto, não sabe se vai poder colher dali: “Não sei se está contaminado”. Por enquanto, a água usada na comunidade do Córrego do Feijão está vindo de galões doados em vez de torneiras e canos. “Tenho fé em Deus que vou dar um jeito na minha vida. Preciso trabalhar”, conclui.
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Em Brumadinho, cada família tem sua versão da tragédia para contar. São peculiaridades, coincidências da trajetória individual das vítimas. Mas, em um município tão pequeno, onde a maioria dos rostos é familiar, o coletivo também sofre. Escolher ficar é uma decisão corajosa. “Perdi uns 40 conhecidos”, diz Rosilene.
“Está parecendo uma cidade-fantasma. Você sai à rua e não vê mais o ônibus da Vale, o pessoal uniformizado esperando no ponto. Os que se foram não voltam. Quem sobreviveu terá que lidar com as sequelas psicológicas”, continua, com a voz embargada pela lembrança dos amigos. “Sei que preciso seguir pela minha princesa, mas é difícil.” Ela pensa em sair do país com a filha, mas, por enquanto, ainda permanece com o olhar perdido de quem não entende o que será do futuro.
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