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“Antes, ser mulher era sequer possibilidade. Hoje, é ser livre”

Às vésperas do Dia Internacional da Mulher, a mestranda em Estudos Culturais e mulher transexual Magô Tonhon conta sua história

Por Magô Tonhon (colaboradora)
Atualizado em 21 jan 2020, 13h42 - Publicado em 7 mar 2016, 10h05
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  • Nasci gêmea. Eu e um irmão, idênticos, univitelinos por dividirmos a mesma placenta em ambiente uterino. Desde cedo tive-me de haver com as particularidades que só duas crianças gêmeas tem ideia. O apagamento da diferença certamente não fora algo consciente, mas já se inscrevia em nosso ser e vestir. Eram roupas idênticas para gêmeos idênticos. Salvo algumas exceções em que eram modelos iguais, mas de cores diferentes.

    Mamãe jamais compreendeu que não eram apenas as cores que nos diferenciariam. Mesmo os modelos diferentes não me cabiam. Era a minha identidade em eterno borrão diante dos muitos provadores de roupa por onde passei.

    Aos nove anos assisti ao filme americano “Os Batutinhas”, em que um dos personagens respondia a pergunta de outro: “Você sabe a diferença entre um homem e uma mulher? – Homens tem pênis e mulheres tem vagina!” Eis a primeira pílula de cisgeneridade em mim depositada. Até há pouco mais de 22 anos esta era a minha definição fundamental.

    Na medida em que entrei na adolescência, minha identidade destoava ainda mais da identidade de meu irmão. Ele parecia encarnar fielmente as expectativas de papéis sociais de gênero depositadas num garoto: apaixonou-se por meninas, colecionava revistas Playboy, era dono de um humor explosivo e de pouca paciência. Já eu, habitava o extremo oposto.

    Para onde se orientava meu desejo?

    Na máxima ignorância e confusão fundamental entre identidade de gênero e orientação sexual, em minha adolescência fui logo reconhecida enquanto viado, mulherzinha. De modo que quando entrei na faculdade, com 18 anos, passei da vergonha para o orgulho de ter, assim, uma orientação sexual não normativa.  Antes mesmo de olhar para minha identidade, tive-me de haver com a minha sexualidade. Para onde se orientava meu desejo?

    Mais tarde, uma vez superada o que chamei de pílula da cisgeneridade, ser mulher para mim passou a ser uma possibilidade.

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    A minha experiência não pode ser utilizada de maneira universal! Logo temos que empregar o uso do plural, para entendermos que esta expressão ~ser mulher~ não deveria ser entendida de maneira essencialista como se houvesse uma essência da qual não se pode fugir. E mais, não existe uma única possibilidade em “ser mulher”. Somos muitas, somos vastas, somos plurais. Falemos em mulheridadeS.

    Por vivermos em uma sociedade que na mais tenra infância já se demonstra assustadora e naturalizadamente generificada com impossibilidades mil relacionadas à feminilidade, ser mulher desde cedo significa NÃO ser homem. De modo que ser menino é não ser menina e vice versa. O gênero, este produto social ritualizado e dependente da repetição de tais ritos. Bonecas, carrinhos, casinhas, cozinhas, futebol, primos e primas.

    E o gênero demonstra-se desde muito cedo não somente como um marcador para dividir a sociedade, seja na infância, na religião, na escola ou seja em casa. O estereótipo de gênero separou-me do dito ~feminino~ que havia em mim. Logo, o gênero também atua como um delimitador de variadas experiências de desigualdade. Eu poderia dizer que ser mulher é experimentar assédio, olhares que tomam o feminino como de fácil acesso, é constatar que o corpo feminino é lido enquanto público: das encoxadas constrangedoras no ônibus de volta pra casa aos episódios de abuso nos espaços públicos.

    Me olhar, me ver e então reparar

    Toda vida tive o hábito de roer unhas, mas numa manhã de janeiro de 2013 acordei e, ao levar as unhas à boca, senti asco. Parei de roer unhas inexplicavelmente. Mais tarde decidi lixá-las e então colocar uma cor.

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    Hoje percebo que, longe de legitimar apenas as unhas não roídas como sadias ou corretas e mais, muito além de “reforçar qualquer estereótipo de gênero” mais especificamente de mulheridade, a unha foi o meu primeiro ato político humano absolutamente íntimo e livre. Afinal de contas, como reforçar estereótipos de um gênero que não nos é assegurado? Sim, pois só podemos abrir mão daquilo que já nos é garantido!

    Dois anos depois das unhas crescerem em minhas mãos, compreendi sua relação com minha identidade e hoje as ostento, jamais para oprimir quem não toma para si tal excesso de zelo, mas como representações legítimas de meu empoderamento enquanto mulher transexual.

    Foram elas que, para mim, intimamente serviram para que eu questionasse e pudesse iniciar a compreensão de meu real pertencimento de gênero. Por meio de sua aparição trivial pude, de maneira honesta, me olhar, me ver e então reparar.

    Minha identidade de gênero estava ali expressa a materializar-se sem que nem eu me desse conta. Diferente da orientação sexual, a identidade de gênero está na matéria, não se pode facilmente sonegar e ocultar.

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    Transfobias

    Costumo dizer que minha primeira transfobia fora de fato a completa ausência de referenciais representativos do que eu realmente era sem saber que era possível sê-lo. A ausência de uma representatividade transexual para que eu pudesse entender que identidade de gênero independia de qualquer configuração genital. A minha primeira transfobia fora a cisnormatividade compulsória, onde só era possível ser o que me era destinado ~biologicamente~. O gênero que nunca me coube, nunca me pertenceu e nem se fosse completamente reformado ainda não me caberia.

    Antes, ser mulher, para mim, era sequer uma possibilidade.

    Hoje me esforço para olhar, ver e reparar as pluralidades em torno das mulheridades. E me esforço para reparar que falar de gênero é falar também da questão de classe e sem jamais esquecer da questão racial. É também falar da sexualidade. Ser mulher e branca é diferente de ser mulher e negra. Ser mulher branca e rica é diferente de ser mulher negra e pobre. Ser mulher cisgênera é diferente de ser mulher trans. Ser mulher trans e branca é diferente de ser mulher trans/travesti e negra. Ser mulher heterossexual é diferente então de ser mulher bissexual ou lésbica. Existem marcadores que por si só pressupõem e caracterizam vidas mais precárias que outras. Vidas mais subalternas que outras.

    Hoje ser mulher para mim é poder ser livre. É ultrapassar e enfrentar as inúmeras situações desiguais que vai do salário menor a maiores chances de violência de gênero, e ainda assim poder ser o que quiser. A minha identidade eu hoje escavo e está diariamente em construção e diálogo com as demais representações de mulheridadeS.

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