O número provavelmente vai te assustar: oito em cada cem crianças sofrem com alergia alimentar. E, ao que tudo indica, nos próximos anos ou décadas, é quase certo que esse índice fique muito maior. “Vivemos a segunda onda de alergias. A primeira foi a respiratória, mas ela alcançou um platô nos anos 2000. Agora é a vez das alergias aos alimentos”, diz a pediatra e alergista Renata Cocco, diretora presidente do Instituto Girassol (grupo de apoio aos portadores de necessidades nutricionais especiais) e médica do Hospital Albert Einstein.
Mesmo com as alergias sendo cada vez mais frequentes, ainda não se sabe ao certo por que elas estão “disparando” no mundo. O que se pode afirmar é que as alergias alimentares são influenciadas pelos genes – se somos alérgicos, há grandes chances de nossos filhos também serem -, pelo ambiente e pelos nossos hábitos de vida. Estima-se que 60% do risco de alguém se tornar alérgico seja determinado pela genética, e 40% pelo ambiente.
Várias hipóteses propõem uma explicação de por que elas estariam crescendo tanto. Um estudo publicado no Proceedings of the National Academy of Sciences comparou a dieta de crianças que viviam na Europa – rica em açúcar, gordura animal e alimentos calóricos – com a de pequenos que viviam em um vilarejo rural na África – onde eles se alimentam basicamente de vegetais. O estudo mostrou que a população de bactérias que vive no intestino (a chamada flora intestinal) é mais pobre e menos diversa nas crianças com alimentação mais industrializada e menos natural. Ou seja, a menor exposição a essa variedade de bactérias teria aberto as portas para as alergias, pois se sabe que o organismo fica mais sensível a determinados alimentos quando a flora está desequilibrada. “Também se especula que o parto cesáreo leve à alteração da flora intestinal. Suspeita-se, ainda, que a baixa frequência de aleitamento materno e o uso disseminado de antibióticos estejam contribuindo para que as crianças recebam estímulos inadequados para o sistema de defesa, que, trabalhando de forma desregulada, favorece o surgimento de alergias”, esclarece Ariana Yang, coordenadora do grupo de alergia alimentar da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (Asbai). Para Dirceu Solé, professor livre-docente de Alergia e Imunologia Clínica da Unifesp (SP), outros fatores – entre eles o tabagismo materno e a menor ingestão de alimentos naturais, com menos ômega 3 e vitaminas – também estão ligados ao aumento das alergias alimentares. “Acredita-se que hábitos que interferem com a expressão dos genes, como o tabagismo materno, podem levar ao desenvolvimento de alergias.”
Diagnóstico difícil
É fato que se veem cada vez mais crianças com o problema, mas os médicos admitem: há uma “overdose” de diagnósticos. “A alergiaalimentar está superdimensionada. Qualquer coceira ou diarreia é taxada de alergia, e muitos pais estão abolindo alimentos da dieta dos filhos quando não haveria necessidade”, alerta Renata.
Parte do problema está na disseminação de informações na internet e nas redes sociais, que tem levado muitos pais a fazerem, eles mesmos, um diagnóstico. Mas outra parte está na dificuldade de bater o martelo de que aquilo que a criança apresenta é mesmo alergia. “Aqueles testes cutâneos em que a pessoa é picada com várias substâncias que podem deflagrar alergia, na realidade só auxiliam o médico a fechar o quadro. Hoje se confia demais neles, quando, na realidade, tão importante quanto fazer o teste é interpretar o diagnóstico e acompanhar a criança”, afirma Ariana. Pior: esses exames dão uma alta porcentagem de falsos positivos.
Outra complicação diz respeito aos próprios sintomas. Dirceu conta que há basicamente dois tipos de alergia: a “exagerada”, que envolve um tipo de anticorpo (o soldado de defesa do corpo) chamado igE, cujas manifestações são bem fáceis de reconhecer – vômito, inchaço na boca e nos olhos, placas vermelhas pelo corpo – e podem até mesmo levar à morte, se ocorrer uma reação anafilática; e a outra, mais “amena”, em que esses anticorpos não participam. “Aí é que a coisa pode ficar confusa, pois os sinais aparecem até dias depois da ingestão do alimento. E os sintomas são inespecíficos, como dor de barriga, náusea, vômito, refluxo, constipação. Basicamente qualquer coisa pode levar a esse quadro”, diz ele.
Outra questão-chave: não dá para saber, de antemão, se a criança vai reagir a determinada proteína e de que maneira. “A predisposição está nos genes, mas a resposta do corpo só vem (se vier) posteriormente, quando o pequeno tiver contato com o alimento”, esclarece Renata Cocco.
Excluir ou não excluir?
A boa notícia é que a ciência vem caminhando rapidamente no entendimento das alergias e, mais do que isso, na compreensão do próprio sistema de defesa, que é o “coração” do problema. “Sabe-se agora que a dieta da mãe durante a gravidez não influencia o desenvolvimento de alergia alimentar”, afirma Wesley Burks, professor emérito do Departamento de Pediatria da Universidade da Carolina do Norte (EUA). Ou seja, as futuras mães não devem, por temor, retirar nada da sua alimentação – nem os principais causadores de alergia, como ovo, leite de vaca e amendoim. “Também sabemos que não se deve retardar a introdução de alimentos. Há fortes evidências de que fazer isso, ao invés de proteger a criança, deixa-a mais suscetível ao aparecimento de alergias”, declara Ariana. Segundo ela, existe um momento imunológico propício para a introdução dos alimentos, que é entre 6 meses e 1 ano de idade. Renata Cocco recomenda a introdução gradual dos alimentos mais propensos a disparar alergias a partir do sexto mês, sempre isoladamente e com um intervalo de três a cinco dias entre eles, para que os pais possam observar se há alguma reação. “Contrariamente ao que se pensava antes, agora a recomendação é fazer a introdução do ovo inteiro, desde que ele esteja bem cozido”, diz. Mas os especialistas são categóricos: quando se constata que o pequeno é alérgico, é preciso excluir o alimento da dieta e buscar outras opções de valor nutricional igual ou semelhante. Isso não quer dizer que seja preciso aboli-lo para sempre. O caso clássico é a alergia à proteína do leite de vaca, a mais frequente em crianças pequenas. “Até os 5 anos, metade delas desenvolve tolerância a essa proteína e passa a poder tomar leite”, afirma Ariana. Alguns levantamentos apontam que, até os 6 anos, aproximadamente 80% delas podem ficar imunes à proteína. Assim, pelo menos no caso da alergia ao leite, o recomendado é que a criança faça um acompanhamento médico, pois, à medida que ela vai crescendo, é comum que a quantidade de anticorpos vá baixando. E, no momento certo, após a avaliação do especialista, pode-se fazer um teste de tolerância. Claro, sempre acompanhado do médico e de toda a segurança.
Riscos reduzidos
Embora não haja uma maneira de prevenir a alergia, já há muitos indícios de que algumas coisas podem reduzir (ou aumentar) consideravelmente o risco de elas aparecerem. A primeira, claro, é o aleitamento materno. Além de oferecer todos os nutrientes ao bebê, o leite do peito oferta anticorpos e outros componentes do sistema de defesa. “A criança nasce com o sistema imune imaturo, mas, a partir do sexto mês, ela já o apresenta no corpo e no intestino”, afirma Solé. Sabe-se que, entre os 4 e os 6 meses, parece haver uma espécie de acomodação do sistema imune, que faz com que a criança passe a tolerar proteínas causadoras de alergia, algo que não seria possível antes disso. Assim, é fundamental amamentar até pelo menos os 6 meses. Já há provas também de que oferecer a fórmula hidrolisada (a proteína do leite “quebrada” em pedaços bem pequenos, incapazes de gerar uma reação alérgica) ajuda a prevenir alergia em crianças de alto risco que não se alimentam exclusivamente do peito. Se não for mais amamentar, e não puder dar a fórmula hidrolisada, a mãe deve ter cuidado com os leites de vaca e de soja, pois eles fazem parte do grupo de alimentos que respondem por boa parte das alergias alimentares. (veja quadro abaixo).
A segunda questão que influi no risco de alergia é o parto. E isso diz muito respeito a nós, brasileiros, pois o Brasil é líder mundial de cesáreas. O atrito entre a criança e a mucosa do canal vaginal durante o nascimento põe o bebê em contato com uma multidão de bactérias, que já vão colonizando o corpo dele. “Estudos recentes vêm mostrando que o parto cesárea priva o bebê desses microrganismos”, aponta Ariana. Sem esses micróbios, o sistema imune parece não se desenvolver nem amadurecer tão bem, aumentando em até cinco vezes as chances do aparecimento de alergias de qualquer tipo mais tarde. Segundo Renata, atualmente também se sabe que a presença de alimentos ricos em ácidos graxos de cadeia longa na dieta da mãe (como, por exemplo, o ômega 3) tem um efeito protetor contra doenças alérgicas na criança. “Recomenda-se que a mãe não apenas tenha uma dieta saudável e variada, mas que ingira peixes ricos em ômega 3 pelo menos três vezes por semana, durante a gestação e a amamentação.”
Alergia não é intolerância
A intolerância à lactose ganhou as páginas da internet e das revistas, e isso bastou para que ela virasse sinônimo de alergia ao leite. Mas não é. A intolerância acontece quando o corpo não produz (ou produz muito pouca) lactase, a enzima responsável pela digestão da lactose (o açúcar do leite). “A intolerância não aparece em bebês, como a alergia, mas depois dos 2 anos de idade”, esclarece Ariana. Além disso, ela não tende a melhorar com o passar dos anos, e os sintomas são mais amenos do que os da alergia: gases, diarreia, cólicas.
Rotulagem de alimentos é o grande desafio
“Muitas empresas não se dão conta de quão importantes são os alimentos chamados de traço, ou seja, resquícios mínimos de proteínas que podem entrar na fórmula do produto e que podem levar um alérgico a ter uma grave reação”, desabafa a advogada Maria Cecília Cury Chaddad, uma das coordenadoras da campanha Põe no Rótulo.
Criada em fevereiro por um grupo de famílias de alérgicos, a campanha ganhou a adesão de 75 mil pessoas no Facebook e resultou em uma consulta pública pela Anvisa. “O Brasil está atrasado em relação aos Estados Unidos e à Europa. É preciso uniformizar os rótulos de alimentos não só para tornar mais evidentes os ingredientes, como para que haja apenas uma nomenclatura para cada um deles.” Maria Cecília diz que a pressão popular vem sendo grande e que, em breve, uma nova regulamentação sobre o rótulo dos alimentos deve ser publicada pela Anvisa.
Tratamento pode mudar a história da doença
Nos últimos cinco anos, inúmeros institutos de saúde e hospitais passaram a adotar a técnica da imunoterapia para debelar alergias alimentares, especialmente à proteína do leite de vaca, ao amendoim e ao ovo. O “segredo” é diminuir a sensibilidade do sistema imune que está superativado, dando minúsculas doses orais do alimento causador de alergia, bem diluídas, e que gradualmente vão ficando cada vez mais concentradas. “A imunoterapia se aplica para crianças que não desenvolvem tolerância ao longo do tempo e que têm reação extrema ao alimento. Tudo, claro, deve ser feito no ambiente hospitalar ou numa clínica, para que o pequeno esteja protegido. Em cerca de três meses (depois de aproximadamente 15 sessões), ele passa a suportar o alimento, e já não há mais perigo”, explica Ariana.
Grupos de pesquisa dos EUA, como o da doutora Kari Nadeau, da Universidade de Stanford, agora trabalham na imunoterapia oral simultânea para alergias a vários tipos de alimentos. Embora ainda experimental, os resultados têm sido promissores, e espera-se que, em breve, a FDA – agência que regula alimentos e medicamentos nos EUA – libere o procedimento.
Crianças de alto risco
Crianças com alta probabilidade de desenvolver alergia são aquelas que têm um parente de primeiro grau (pais ou irmãos) com rinite alérgica, asma, dermatite atópica ou alergia alimentar.
8 alimentos respondem por 90% das alergias alimentares
Leite de vaca, soja, amendoim, ovo, castanhas, trigo, peixes e frutos domar são os responsáveis por 90% das alergias, segundo uma revisão de estudos publicada em 2008 na Current Opinion in Pediatrics.
Alergia é uma resposta exacerbada do sistema imune à proteína de certos alimentos.
“A criança nasce com uma predisposição genética, mas só será possível saber se ela é alérgica quando tiver contato com o alimento”, expressa Renata Cocco, diretora presidente do Instituto Girassol.
A alergia à proteína do leite de vaca é a mais frequente entre crianças pequenas. “O leite de vaca é o primeiro alimento com o qual a criança tem contato – e, no Brasil, cada vez mais cedo, porque o período médio de aleitamento materno é muito baixo”, diz Ariana Yang.
O ranking dos vilões das alergias varia de acordo com o país e a faixa etária. No Brasil, ocupam a segunda e terceira posições a soja e o ovo. “Já em crianças mais velhas, entre 6 e 7 anos, são o camarão e os frutos do mar.”
Alergia a alimentos pode causar reações no aparelho gastrointestinal (vômito, diarreia, refluxo, dor abdominal), na pele (coceira ou eczema) e no aparelho respiratório (dificuldade para respirar, tosse).