“Todo mundo é contra o aborto, mas, com a lei, salvaremos mais vidas.” Foram essas as palavras do ex-presidente uruguaio José Mujica no anúncio da descriminalização da interrupção voluntária da gravidez, em outubro de 2012. Ao também abrigá-la no sistema público de saúde, o Uruguai tinha dois objetivos: diminuir o risco de morte materna e, com campanhas, reduzir a gestação indesejada. Três anos depois, já é possível fazer um balanço: com 8,5 mil abortos legais realizados por ano e nenhum óbito, o Ministério da Saúde considera a política acertada e garante que o serviço está implantado em todo o país, onde vive 1,6 milhão de mulheres (51% de seus 3,3 milhões de habitantes). Porém, há críticas. Não só de opositores mas também de apoiadores – feministas incluídas -, que apontam falhas no sistema. Uma brecha está no pouco alcance a cidades pequenas, como Salto (a 400 quilômetros da capital, Montevidéu), onde 100% dos médicos se recusam a prestar o serviço alegando questões morais ou religiosas. Por essa razão ou por considerar burocrático e humilhante o atendimento nos hospitais, estima-se que cerca de 20 mil mulheres, a cada ano, ainda preferem pagar em torno de 300 dólares pelo aborto em clínicas clandestinas ou realizá-lo em situações precárias, correndo o risco de sequelas e morte. Calcula-se que, antes, o número chegava a 30 mil.
O país vizinho é pioneiro na descriminalização na América do Sul. Com a lei, entrou no grupo das 61 nações que adotam a medida, quase sem restrições, limitando apenas o período para abortar – até 12 semanas, em média. No mapa publicado neste ano pela ONG Center for Reproductive Rights (que tem sede em Nova York), é possível ver que nesse grupo, pintado de verde, estão as sociedades mais avançadas na economia, na política, no nível de escolaridade e respeito às escolhas individuais. Os 13 países em amarelo patrocinam o aborto para a mulher sem condições socioeconômicas de ser mãe. Em laranja, os 59 que o adotam quando a cidadã não se vê em pleno estado físico, mental ou social. Nessas 133 nações, a gravidez fruto de estupro nem gera questão: a mulher pode abortar. O mapa identifica em vermelho 66 países com legislações arcaicas. Caso do Afeganistão, onde as instituições não funcionam e as mulheres valem menos que o tecido da burca que cobre seus corpos. O Brasil se posiciona na mesma zona, que inclui também o Iraque e o Irã – que põem a sexualidade feminina sob o controle do homem e do Estado.
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Nosso Código Penal, de 1942, considera o aborto um crime e só isenta de prisão (por até três anos) as estupradas (desde que tenham aval de um juiz) e as que correm risco de morrer. Em 2012, o Supremo liberou o aborto de anencéfalos. A maioria dos projetos sobre o tema hoje no Congresso Nacional torna a situação ainda pior. Alguns querem penalizar até as que abortam depois de violadas. Nessa linha, foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, no mês passado, um projeto do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que dificulta a obtenção da pílula do dia seguinte. Distribuída de graça para vítimas de violência sexual, ela impede a gravidez e passaria a ser fornecida só mediante a prova de estupro. Hoje, basta o relato da mulher. O projeto ainda precisa ser votado no plenário. Já o do deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ), de março, dificilmente vingará por reconhecer que toda mulher tem o direito de decidir livremente pela interrupção, realizada no Sistema Único de Saúde (SUS) e na rede privada, com ampla assistência. Cria condições para ela ter o filho, se for a sua opção, informa sobre contracepção e planejamento familiar e institui o ensino de direitos reprodutivos nas escolas. Uma pesquisa do Ibope de 2014 apontou que 79% dos brasileiros rejeitam a descriminalização. Diferentemente da nossa sociedade, a uruguaia é laica; lá, 37% da população se diz sem crenças e, na aprovação da lei, 60% receberam o aborto como medida bem-vinda.
Em quatro etapas
Praticado fora dos moldes legais, o aborto segue sendo crime no Uruguai. A realização se dá até 12 semanas e seis dias de gestação, estendendo-se a 14 semanas em caso de estupro e sem prazo em risco de morte. Para interromper a gravidez, a mulher se submete a quatro etapas. No hospital, solicita o serviço. Em 24 horas, o médico marca o hemograma e o ultrassom. A segunda fase é com uma equipe de psicólogo, assistente social e ginecologista, que aponta alternativas para desistir do aborto – se ela é pobre, estuda-se a possibilidade de um emprego, por exemplo. Nesse percurso, há muitos relatos de abuso dos profissionais envolvidos. “As mulheres são constrangidas e até pressionadas a mudar de ideia”, conta Camila Csery, do grupo Mujeres en el Horno, que opera a linha 0800, que orienta sobre direitos na área. Outra denúncia: muitas vezes, o atendimento é retardado até a gravidez passar das 12 semanas e, aí, o aborto é cancelado. Com ele aprovado, a mulher deve esperar mais cinco dias para reiterar sua decisão. Durante o processo, 9% desistem. Por fim, ela recebe uma receita, compra o Misoprostol (Cytotec) em farmácia autorizada e vai tomar em casa. A caixa custa o equivalente a 20 reais. O uso do medicamento é o procedimento mais adotado no mundo. O Cytotec, que provoca contrações uterinas, às vezes é associado ao Mefiprestone (Korlym ou Mifeprex), que acelera o processo e tem preço parecido. Francisco Coppola, chefe de ginecologia do Hospital da Mulher Pereira Rossell, na capital uruguaia, diz que o método elimina o perigo de infecção hospitalar, intercorrências cirúrgicas, como perfurações, e evita custos de internação. “A taxa de êxito é alta; e o risco para uma futura maternidade, zero”, afirma. “Mas podem ocorrer mais casos de anemia pós-aborto se comparado à curetagem.”
No mundo e no Brasil
A legalização não aconteceria sem a carga de Mujica sobre o parlamento. “Os políticos são mais conservadores que a sociedade, que vê no aborto um avanço”, analisa Soledad González, da ONG Cotidiano Mujer. O projeto tinha sido aprovado em 2008 e vetado pelo então presidente, Tabaré Vasquez, eleito novamente em 2014. Na eminência de sua volta, a proposta foi tocada às pressas. As feministas se queixam: não foram ouvidas, acham errado fazer a mulher passar por tantas etapas, consideram o limite de 12 semanas baixo e defendem que a cidadã deveria poder optar pela cirurgia. Acreditam que a lei é elitista, para as instruídas das cidades grandes. As pobres seriam constrangidas por médicos antiaborto.
O processo no Uruguai é semelhante ao dos outros países verdes no mapa. Na Alemanha e nos Estados Unidos, também há exigência de exames, aconselhamento e período de reflexão, e a mulher banca os remédios. A cirurgia é adotada em gravidez adiantada e alguns países estabelecem que a mulher pague por ela. Nos Estados Unidos, onde a lei é de 1973, cada Estado legisla sobre o tema, e já há governantes querendo revogar e proibir a prática. No total, 38 estados exigem que seja feito por médico cadastrado; 21 em clínicas privadas autorizadas. Pagam-se, em média, 800 dólares para o atendimento com remédio e 1,2 mil dólares pela cirurgia. O Canadá patrocina tudo e o médico não pode se recusar: se é contra o aborto, não deve nem entrar para o serviço público. De 2007, a lei portuguesa é uma das mais completas. Em geral, a mulher termina o processo com o DIU colocado ou adaptada a outro contraceptivo.
No Brasil, a falta de flexibilização no Código Penal é uma das responsáveis pela realização de quase 1 milhão de abortos clandestinos, por ano, segundo ONGs de saúde e feministas. Em 2013, o Ministério da Saúde registrou 200 mil internações no SUS decorrentes de complicações, ao custo de 60 milhões de reais. Também por isso, a descriminalização é defendida pelos conselhos federais de Medicina e de Psicologia.
O debate não é fácil. “Há ainda muito o que fazer”, diz Lilian Abracinskas, da ONG Mujer Y Salud en Uruguay. “A lei não é o fim do caminho, mas o começo de um processo delicado que envolve a reação do sistema de saúde.” Para ela, pior seria a ausência da lei. “Onde não existe, as mulheres pagam um preço alto, perdem em qualidade de vida e suas famílias sofrem.”
Papa perdoa mulheres que abortaram
Em medida inédita, Francisco ameniza “o sofrimento causado pela escolha difícil”
Em setembro, o papa Francisco deu aos padres o poder de absolver as mulheres que interromperam a gravidez – ato ainda visto como pecado. Antes do anúncio, apenas bispos podiam oferecer o perdão. A medida valerá durante o Ano Santo da Igreja Católica, de dezembro de 2015 a novembro de 2016. Em carta, o pontífice revelou: “Sei que é um drama existencial e moral. Encontrei muitas mulheres com uma cicatriz no coração por essa escolha sofrida e dolorosa”. Para a ONG Católicas pelo Direito de Decidir, o ato é positivo. “Quem aborta não o faz porque perdeu a sensibilidade diante da vida. Para a grande maioria, a vida é valiosa. Elas não estão dispostas a trazer alguém ao mundo em condições de violência, pobreza e infelicidade”, diz um comunicado do grupo.
“Eu abortei legalmente”
A história da uruguaia Maria que, aos 36 anos, optou pela interrupção da gestação
“Trabalho com educação sexual e falo diariamente sobre proteção, mas errei. Transei sem camisinha. Sabia que corria riscos; então tomei a pílula do dia seguinte. Não funcionou. Contei com a ajuda de uma amiga médica para iniciar o processo do aborto. Quando ela tentou marcar a ecografia (ultrassom), informaram que só tinha data para 20 dias depois – um absurdo! Ela fez um escândalo para conseguir um horário em cinco dias. No exame, a primeira coisa que o médico me disse foi: ‘Oi, mamãe. Levanta a blusa para vermos a barriguinha’. Essa abordagem continuou até que fui dura: ‘É uma interrupção de gravidez. Respeite minha decisão’. Depois, psicólogos e médicos apresentaram os programas sociais existentes. Reafirmei que iria fazer o aborto. Com a receita, comprei o remédio para provocar contrações. O médico não faz nada, a mulher toma sozinha em casa. Senti cólicas fortes e dores incessantes. Nos dois dias seguintes, sangrei sem parar e tive febre alta. No hospital, um exame comprovou que havia restos do embrião. Após uma semana, tomei mais quatro comprimidos. O processo durou 20 dias e passei por tudo sem companhia. O Estado dá a opção, mas apoia pouco. Apesar da decisão acertada, foi muito doloroso.”