Há cinco anos o dia 14 de maio representa, para a comunidade LGBTQ+ brasileira, muito mais do que uma data qualquer no calendário. É que desde então, em 2013, o casamento homoafetivo finalmente passou a valer no Brasil, permitindo, inclusive, a conversão de união estável em civil.
Enquanto casais heterossexuais desfrutavam desse direito basicamente desde que o mundo é mundo, as leis civis para pares homoafetivos só mudaram depois que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou a Resolução nº 175. Nela, ficou estabelecido que casais do mesmo sexo teriam direito ao casamento civil, e que tabeliães e juízes ficariam terminantemente proibidos de se recusar a registrar qualquer união desse tipo.
Até 2011, entretanto, casais LGBTQ+ não possuíam nenhum direito ao casamento – pela lei, a ideia de família contemplava apenas os relacionamentos entre homens e mulheres. Com o passar do tempo, e com auxílio de alguns avanços e lutas sociais, isso foi mudando lentamente. Nesse mesmo ano, graças ao reconhecimento do Supremo Tribunal Federal (STF), pessoas do mesmo sexo que queriam se casar poderiam, a princípio, viver em regime de união estável. Mesmo assim, muitos cartórios, por falta de uma regulamentação oficial, acabavam negando qualquer obrigatoriedade, e se recusando a reconhecer o regime como legítimo.
Na prática, união estável e casamento civil – sejam eles homo ou heteroafetivos – possuem algumas diferenças pontuais: embora ambos tenham como objetivo principal a constituição de uma família baseada na convivência, fatores como a divisão de bens, o status perante a sociedade e a possibilidade ou não de contar com a herança do parceiro(a) após a morte, mudam conforme o tipo de relação escolhida por cada casal.
Segundo os dados mais recentes do CNJ, desde a regulamentação, pelo menos 15 mil casamentos homoafetivos foram realizados no Brasil até o ano passado. Entre eles estão os de Mariane e Alessandra, Bia e Nathalie e Anna e Vania, que contam ao MdeMulher porque optaram por um matrimônio “tradicional” e tudo o que a mudança na lei representou para elas.
Um ato político
Mariane Gutierrez conta que conheceu a atual esposa, Alessandra, em 2012, mesmo ano em que começaram a namorar. Cerca de um ano depois do início do relacionamento, as duas passaram a morar juntas e, logo em seguida, a regulamentação dos casamentos homoafetivos foi consolidada no Brasil.
A decisão pelo casamento aconteceu de forma natural e gradual, com direito a uma grande festa e sem maiores dificuldades. Em 2016, com a ajuda de um juiz de paz que, na época, era bastante ativo em relação às leis LGBT, as duas formalizaram a união. Para elas, casar foi, também, um ato político:
“A gente decidiu que assinaria esse contrato, justamente pelo casamento ter sido legalizado, por entendermos a importância dessa lei, a importância de que a sociedade olhe para o casamento homoafetivo da mesma maneira como olha para um casamento heteronormativo. A gente acredita que o casamento, mesmo, é o que você vive no dia a dia, muito mais do que um contrato. Mas a gente ainda está em um momento tão atrasado, né? Que acho que é muito fundamental que a gente possa assinar, para que a gente entre na estatística, e realmente coloque as uniões homoafetivas no mesmo lugar de todas as outras, por vários outros direitos sociais”, explica Mari.
Desde que se casou, para Mari, as principais mudanças giram em torno das burocracias, que ficaram um pouco menos complicadas. Por exemplo: “Às vezes você vai preencher um formulário e, legal, eu posso colocar ‘casada’. Eu mudei de plano de saúde recentemente, e entrei como cônjuge da Alê. A gente está na fila da adoção, e o nosso lugar na fila não muda em nada pelo fato da gente ser casada, mas pra gente fez sentido estarmos casadas ao entrar nesse processo”, enumera.
Mari reflete e conclui que, caso mantivesse um relacionamento com um homem, talvez não considerasse o casamento no papel algo tão necessário assim. Por sua vez, ser felizmente casada com uma mulher, em suas palavras, é motivo de orgulho de sobra, pois garantiu que ela e Alessandra fossem parte integrante na luta pela igualdade de direitos – que ainda tem um longo caminho pela frente.
Luta por direitos básicos
A gerente de RH Bia Rosito conheceu Nathalie Robyn, diretora de operações, em 2007, por meio de uma colega em comum. Na época Bia, que namorava um homem, nunca havia pensado em ter um relacionamento com outra mulher – mas as duas acabaram construindo uma amizade que, com o tempo, evoluiu: “Para mim foi muito natural, não tive aquela crise do: ‘e agora, sou gay! – percebi que não importava muito a questão do gênero, tinha me apaixonado por uma pessoa que, por acaso, era mulher”, conta Bia, que está oficialmente casada com Nathalie desde 2013.
Antes mesmo que o casamento entre pessoas do mesmo sexo fosse legalizado, Nathalie já havia pedido a mão de Bia que, obviamente, aceitou. As duas, a princípio, fariam apenas um contrato de união estável, mas mudaram os planos assim que a lei foi aprovada, enquanto planejavam a festa. Foram ao cartório e se destacaram como primeiro casal lésbico da região a solicitar o casamento – apesar da surpresa para alguns funcionários, o processo foi tranquilo. Depois, celebraram junto da família e dos amigos na casa da mãe de uma amiga do casal, em cerimônia intimista.
Bia esclarece que, ao ter a união reconhecida perante a lei, vários direitos básicos são garantidos ao casal homoafetivo: “Nós queríamos formalizar a construção da nossa família, queríamos poder ter os mesmos respaldos de um casal heterossexual. A importância disso é você caminhar para uma sociedade mais igualitária: a minha mulher tem que ter acesso aos meus bens, caso algo venha a acontecer comigo. Ninguém quer pensar nesse tipo de coisa mas, quando você faz parte de uma minoria, precisa pensar na forma de se inserir na sociedade”, explica.
Mas foi após decidirem que teriam filhos que o fator casamento teve um peso muito maior nas vidas de Bia e Nathalie: “Engravidamos de gêmeos em dezembro de 2014 e, logo após o nascimento dos meninos, Antonio e Daniel, que nasceram prematuros (32 semanas), o Antonio adquiriu uma doença chamada Enterocolite Necrosante. Por causa dessa condição ele perdeu praticamente todo o intestino, e não conseguia sair do hospital. Nós conseguimos registrar os meninos em nossos dois nomes, mas não sem enfrentar um pouco de dificuldade. No final, só conseguimos registrar porque éramos casadas. A Nathalie tinha o melhor seguro saúde, e eu tive de parar de trabalhar. Nós conseguimos incluir os meninos no seguro dela, pois eles legalmente eram filhos dela. O Antonio viveu 10 meses, com o melhor tratamento que poderia ter recebido dado as suas condições – isso foi possível porque tínhamos o respaldo da lei, que garantiu os direitos dele como nosso filho”, relata Bia.
Para ela, a principal mudança que veio com a legalização tem a ver com o fato da sociedade ter demonstrado um grande progresso até o momento, já que a medida fez com que algumas pessoas passassem a sentir mais segurança em relação à própria sexualidade:
“Quanto mais as nossas famílias estiverem expostas, junto com famílias heterossexuais, que sentem dor, dão risada, choram e comemoram juntas, mais natural é a aceitação pela sociedade. Hoje temos o Daniel, e queremos que ele tenha orgulho da sua família, da sua história. Ele tem duas mamães, e isso é visto com naturalidade pelas crianças. O amor é natural, e ele deve sempre ser celebrado, independente de qualquer outro fator”, dá o recado.
Parceria para a vida
As empresárias Anna Nogueira e Vania Ferrari, que hoje em dia são sócias em uma empresa de treinamento, não poderiam se conhecer em outro lugar que não fosse o trabalho. As duas tiveram seus caminhos cruzados há mais de dez anos, quando passaram a trocar ideias, planos e risadas durante o expediente. Apesar do namoro não ter demorado muito para engatar, enquanto Vania, quatorze anos mais velha que Anna, já havia se assumido lésbica tanto no ambiente profissional quanto na família, aquela era a primeira experiência de Anna com outra mulher – o que gerou algumas dúvidas e certo medo por parte da família, resistente por algum período. Mas o relacionamento durou tanto que resultou em casamento, com direito a cerimônia civil e religiosa, no ano de 2014.
“Dez anos depois quase nem lembramos desta parte da história, pois os familiares da Anna são os primeiros a nos apresentar como ‘esposa e esposa’, e nossos finais de semana sempre incluem bons momentos entre todos nós. Hoje as duas famílias viajam juntas, festejam juntas e sempre nos alegram por nos aceitar incondicionalmente”, atualiza Vania.
Vania conta que, apesar da cerimônia religiosa ter sido emocionante e personalizada, arrancando lágrimas dos convidados – já que, para elas, ter a benção de Deus nesse momento era algo essencial – o casamento civil foi um tanto quanto traumático:
“A juíza de paz não conseguia adaptar seu antigo texto, exclusivo para casais heterossexuais, para um casamento homoafetivo. O tempo todo ela se referia à gente como ‘noivos’, coisa que tentamos corrigir insistentemente, sem êxito. Foi constrangedor e triste, pois ela claramente não estava preparada para essa mudança na lei. Fomos umas das primeiras noivas do cartório”, lamenta.
Ela reconhece a importância do casamento, principalmente o homoafetivo, como um marco em qualquer relacionamento, uma oficialização da crença em valores como família e o amor: “Lembro que, quando era menina, ao entender minha condição, julguei que nunca iria ter um amor público ou casar-me. Assumi, quando jovem, que isso nunca iria acontecer comigo. Piorava meu sofrimento ir aos casamentos de amigos e amigas, ouvir do padre que só uniões entre homens e mulheres eram corretas e que não existia outra forma de amor. Mas com a lei isso mudou, na minha cabeça e de muita gente. A consequência natural da divulgação do nosso casamento foi a procura de muitos jovens e adultos, querendo entender melhor nossa orientação e nosso caminho”, diz.
Vania enxerga a mudança na lei como um ganho para toda a comunidade LGBTQ+, de modo que, assim, seus indivíduos possam, aos poucos, sair da invisibilidade, assumindo um papel de cidadãos comuns:
“Ainda há um longo caminho para usufruirmos desse direito legal, na íntegra. Somos muito felizes, mas sabemos que é nossa responsabilidade ajudar outras famílias a serem felizes também. Hoje nossa vida é um livro aberto, justamente pois queremos ajudar a todos da comunidade LGBTQ+ a se aceitarem (em primeiro lugar, pois há muita resistência de exposição e aceitação de quem vive esta realidade) e a buscarem seus direitos civis. Precisamos ocupar os espaços públicos e viver livremente sem medo da violência física e verbal. Precisamos nos conscientizar que a homofobia é crime e que precisa ser punida, portanto, precisamos de coragem para denunciar qualquer ato de preconceito”, finaliza.