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Velhice é doença? Entenda a polêmica

Discussão surgiu após a OMS incluir o envelhecimento como um tipo de doença. Quais as implicações de tratar uma fase da vida como uma enfermidade?

Por Sílvia Lisboa e Valentina Bressan
Atualizado em 2 abr 2023, 11h03 - Publicado em 12 ago 2022, 08h52
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  • A morte do príncipe Philip aos 99 anos, em abril de 2021, não chamou atenção apenas pelo evento em si, mas pela causa oficial: a certidão de óbito assina lava que o marido da Rainha Elizabeth II havia falecido de “velhice”. O chefe da equipe médica da realeza britânica, Huw Thomas, não se enganou no laudo. Ele usou uma mudança aprovada em 2019 pela Organização Mundial da Saúde para a última versão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde, a CID, que diz que a velhice é doença. A última versão só entraria em vigor este ano, mas antes de começar a valer causou forte reação de médicos e grupos de idosos, principalmente no Brasil.

    Para quem não está familiarizado, a CID é um grande manual que elenca os tipos de doença e seus sintomas para servir de diagnóstico, base de consulta e padronização de enfermidades — ela é usada em 115 países. A importância da padronização para os sistemas de saúde no mundo é imensa. “Se a Covid-19 não estivesse na CID e fosse tratada de forma diferente em cada país, não saberíamos que era uma pandemia”, explica Yeda Duarte, enfermeira e professora da Escola de Enfermagem e da Faculdade de Saúde Pública da USP.

    Mas o espanto maior se deu pela especificidade. “Ninguém morre de velhice. Alguém morre de infância ou adolescência?”, diz o gerontólogo Alexandre Kalache, presidente do Centro Internacional de Longevidade do Brasil e ex-diretor do Departamento de Envelhecimento e Curso de Vida da OMS. Pode parecer uma discussão pitoresca, mas não é. O debate envolveu até um lobby poderoso de gigantes da tecnologia, como Amazon e Google, e do pesquisador de Harvard, David Sinclair. Com um discurso persuasivo, ele advoga que, sem o reconhecimento da velhice como patologia por parte dos órgãos regulatórios, as pesquisas sobre terapias antienvelhecimento nunca seriam uma prioridade.

    Essa etapa da vida precisa ser valorizada, pois só temos dois caminhos: viver e envelhecer ou morrer antes de envelhecer

    Yeda Duarte, enfermeira e professora da Escola de Enfermagem e da Faculdade de Saúde Pública da USP

    Ele recorre à máxima comprovada pela ciência para ser a favor: o envelhecimento é um dos principais fatores de adoecimento. Está envolvido com a escalada de problemas cardiovasculares e o câncer, por exemplo, que lideram o ranking de mortes. Logo, retardar esse processo seria a melhor estratégia na prevenção delas.

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    Ele não está totalmente errado. Segundo os especialistas ouvidos por CLAUDIA, o envelhecimento tem, sim, relação direta com algumas doenças. Contudo, eles não acreditam nas boas intenções de Sinclair. “Foi uma tentativa de oficializar um grande mercado de terapias antienvelhecimento com o qual ele se beneficia”, diz Yeda. Também não acreditam que transformar idade avançada em doença, tal qual o diabetes, seja a solução para fazer a ciência avançar. Pelo contrário: seria estigmatizar ainda mais um processo biológico. Doença não é boa para ninguém, mas chegar à velhice, de forma autônoma e saudável, é uma conquista inegável da ciência associada a políticas públicas e de inclusão das últimas décadas. Hoje, ter 60 anos significa uma expectativa de viver, em média, mais 22. Em 1950, mal se chegava aos 50 anos.

    E isso não aconteceu considerando que todos nós ficamos “doentes” quando ultrapassamos os 60 anos. “Essa etapa da vida precisa ser valorizada, pois só temos dois caminhos: viver e envelhecer ou morrer antes de envelhecer”, diz a professora da USP. Surpreendeu ainda mais que a atualização da CID veio bem entre 2021 e 2030, na década batizada pela própria OMS como a do envelhecimento saudável, com campanhas contra o etarismo.

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    “Ninguém morre de velhice. Alguém morre de infância ou adolescência?”. (Fotos/Getty Images)
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    E o futuro?

    Antes da CID-11 entrar em vigor, pesquisadores da área e movimentos de idosos do Brasil se reuniram para pressionar a OMS a rever a inclusão da novidade — até o Papa Francisco se manifestou contra. A revolta deu certo. Na CID-11, o código “velhice” virou “declínio da capacidade intrínseca associado ao envelhecimento”. A mudança sutil não agradou muito, mas foi comemorada. “É complicado explicar no cotidiano, mas celebramos este conceito porque se a velhice fosse incluída na CID, daqui a algumas décadas ninguém ia entender nada sobre envelhecimento”, aponta Alexandre Kalache. “Cada vez mais pessoas iriam morrer de velhice e perderíamos a chance de entender o que levou à morte e de atuar na prevenção ou lidar com elas de forma adequada.” Yeda avalia também como equivocado o foco no “intrínseco”: “O processo de envelhecimento é resultado do que acontece intrinsecamente e também do que acontece extrinsecamente — as condições sociais e de vida em que eu vivi”.

    Considerações à parte, os pesquisadores acham importante mirar nas doenças associadas ao passar dos anos e definir melhor um outro conceito que consideram chave: o de fragilidade. “O aumento do risco de fragilidade acompanha o aumento de idade, mas não é uma questão exclusiva do envelhecimento”, diz Kalache, que cita o exemplo da aids, que vitimou muitos jovens em consequência da fragilidade causada pelo HIV. Outro ponto importante: ela não é irreversível, mas tratável. “Com intervenções médicas adequadas, você pode se recuperar de doenças crônicas ou agudas.”

    Porém, as pesquisas sobre voltar o relógio biológico são de fato mais complexas porque envolvem questões éticas ainda mais sérias do que patologizar uma etapa da vida. “Atrasar o relógio biológico pode significar retardar o amadurecimento de um indivíduo. Poderíamos ter crianças de 30 anos?”, questiona o médico hematologista Rodrigo Calado, professor da Faculdade de Medicina da USP, que se debruça sobre os processos de envelhecimento celular.

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    Também não há garantia de que as tecnologias para prevenção do envelhecimento estarão disponíveis para todos. “Corremos o risco de ter, ao mesmo tempo, supercentenários e uma maioria da população sem acesso a essas intervenções sofisticadas, que vai viver muito menos e mal”, afirma Kalache. Por enquanto, as alternativas para viver mais também não asseguram uma melhoria na qualidade de vida. Nesse sentido, Kalache destaca as questões filosóficas envolvidas nessa neura em querer prolongar a vida a qualquer custo. “Temos que nos perguntar quais são as consequências da não aceitação da morte e de que a vida tem um limite. Essa é uma preocupação milenar.”

    O que a ciência tem investigado é como deter o envelhecimento celular de alguns tecidos, o que poderia prevenir doenças associa- das à idade. Estudos também apontam o que afinal importa para viver mais e melhor. Um deles, publicado pela revista Jama Internal Medicine, mostra que a inclusão de exercícios físicos intensos na rotina ajudam a reduzir a mortalidade por doenças que afetam a longevidade. O combo dieta, zero tabagismo, atividade física e exames de prevenção continuam fazendo parte das recomendações. “A parte mais difícil, e a mais decisiva, é mudar os hábitos”, resume Calado.

    Já o Estudo sobre Desenvolvimento Humano, uma das maiores pesquisas sobre felicidade feita na Universidade de Harvard e liderada pelo psiquiatra Robert Waldinger, revelou existir uma forte correlação entre relacionamentos íntimos e laços afetivos com a longevidade. A pesquisa, que acompanhou um grupo de 268 graduados durante quase 80 anos, indicou que a satisfação ligada às relações interpessoais ajuda a retardar o surgimento de doenças. Vive mais — e melhor — quem está cercado de amigos.

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