Subathons revelam nova era do streaming: intimidade à venda 24h por dia
Conheça o fenômeno dos ‘subathons’, transmissões que aumentam de duração a cada pagamento e criam um mercado da vulnerabilidade feminina no streaming
Em abril de 2025, ao acordar com COVID-19, EmilyCC fez o que qualquer pessoa faria: permaneceu na cama, se cuidou e descansou. A diferença é que milhares de pessoas a assistiam. Há mais de 1.100 dias, a norte-americana de 24 anos transmite sua vida 24 horas por dia na Twitch, sem pausas. A câmera permanece ligada enquanto joga, come, dorme ou simplesmente navega pela internet. Nem mesmo a doença a fez desligar o stream.
O fenômeno tem nome: subathon. A palavra combina subscription (inscrição) com marathon (maratona). Funciona como um cronômetro reverso — a streamer define um tempo inicial de transmissão, e a cada doação, inscrição ou bit (moeda virtual do Twitch) que recebe de quem assiste, minutos são adicionados ao relógio.
O objetivo é simples: quanto mais o público paga, mais tempo a pessoa fica no ar. Em teoria, se as doações não parassem, a live seria eterna.
No Brasil, Bex Cullen transformou essa premissa em realidade. A paulistana de 25 anos ficou três meses seguidos transmitindo. Resultado: ela emagreceu quatro quilos durante o processo — além de sofrer efeitos psicológicos e ameaças. “Era acordar e dormir em live. Não tive vida social, basicamente. Vivia de comida de entrega”, conta.
Durante esses 90 dias, Bex desenvolveu uma rotina peculiar: quando sentia sono, pausava o cronômetro da live e inflava um colchão de ar ao lado do computador.
“Era muito ruim, mas não dava para dormir na cama normal porque a câmera não alcançava.” Cinco moderadores — pessoas contratadas por ela para monitorar o chat — se revezavam durante a madrugada, bloqueando comentários ofensivos e mantendo a “comunidade” ativa, mesmo com a streamer inconsciente.
O preço da exposição contínua
O subathon revela uma dinâmica da economia digital: a transformação da vida cotidiana em espetáculo rentável. Não é entretenimento tradicional que está sendo vendido — boa parte dos streamers transmitem cenas de jogos online —, mas acesso irrestrito à intimidade, como momentos cotidianos, mas também de vulnerabilidade, tédio, fragilidade humana.
Anna Lucia Spear King, psicóloga e doutora em saúde mental e especialista em dependência digital, estuda os efeitos psicológicos dessa exposição extrema. Segundo ela, viver sob observação constante gera uma série de transtornos: “Existe ansiedade pela necessidade constante de entreter a audiência, de responder em tempo real. O streamer sente que precisa estar sempre ligado, mesmo exausto.”
“Transmissões prolongadas levam a privação de sono, sedentarismo, má alimentação. Isso afeta humor, concentração e regulação emocional”, explica a especialista. Há ainda a confusão de identidade: “A linha entre o eu real e o eu digital fica confusa. É uma sensação de vigilância constante.”
A história de EmilyCC, streamer
EmilyCC confirma o diagnóstico: “Não há botão de desligar. Alguns dias acordo cansada, triste ou deprimida, e a câmera ainda está lá. Às vezes penso primeiro no stream antes de pensar em mim.” Anna Lucia também menciona o brain rot — gíria que descreve declínio cognitivo pelo consumo excessivo de conteúdo digital superficial.
“Esse excesso de estímulos pode prejudicar a memória, a atenção e a tomada de decisões.” Para Bex, os três meses de maratona cobraram um preço alto. Além dos 4 quilos perdidos comendo apenas fast food, ela abandonou a terapia e o karatê. “Não dava para fazer terapia com todo mundo vendo. Parei minha vida toda.”
Mesmo tentando manter oito horas de sono, a ansiedade persistia: “Dormia com o celular do lado. Quando acordava de madrugada, olhava o chat pensando ‘será que alguém falou alguma coisa?’. Ficava preocupada mesmo dormindo.” Segundo Anna Lucia, existe um perfil específico entre os espectadores que financiam essas transmissões intimistas.
“Geralmente são pessoas solitárias ou isoladas socialmente, buscando acolhimento. Especialmente quem enfrenta dificuldades emocionais e falta de vínculos presenciais.” A dinâmica cria uma falsa sensação de intimidade.
“Essa exposição pode gerar relacionamentos unilaterais em que o espectador sente que conhece profundamente o streamer, sem reciprocidade real. Alguns desenvolvem sentimentos de ter direitos sobre comportamento, aparência e decisões da pessoa.”
Isso se agrava na prática do subathon justamente porque é quem está do outro lado da tela que controla o tempo que o streamer ficará online. “Assédio acontece em todas as lives. Todas as meninas reclamam da mesma coisa. Quando você é um streamer pequeno, o pessoal acha que pode chegar e xingar qualquer coisa”, admite Bex.
Além das agressões verbais, há também situações de perseguição: “Processei um [stalker] porque estava insuportável. Ganhei, mas demorou três anos. Três anos em que ele viveu normalmente e eu com medo, traumatizada.” Hoje mantém um advogado de plantão e salva prints de comportamentos suspeitos.
A questão de gênero e vulnerabilidade digital
Kennet Medeiros, pesquisador e doutorando em comunicação pela Universidade Federal Fluminense, observa: “Mulheres se tornam ainda mais alvo dessa cultura de influência, da construção de sujeito ideal para conseguir público. Há a idealização do corpo — tentar se mostrar como perfeitas para a visibilidade social”.
A própria Twitch, segundo o comunicador, desenvolve ferramentas que inadvertidamente facilitam perseguições. “Você tem a raid, que direciona uma audiência grande para uma live pequena. Não existe curadoria prévia da plataforma — qualquer um pode raidar qualquer canal ao vivo.”
“O streamer que recebe pode configurar filtros de segurança (aceitar só de seguidores, contas verificadas etc.) e sempre pode recusar ou banir raids inadequados após receber. O propósito é benéfico — criar conexões entre comunidades. Mas grupos se articulam para usar isso gerando ódio e violência”, acrescenta.
Há, ainda outro tipo de agressão, desta vez na lógica empresarial da Twitch e sua controladora, a Amazon. “As plataformas são construídas dentro de um modelo de governança — estabelecem regras sobre como as pessoas devem agir — e monetização”, sendo que “para virar parceiro da Twitch, você precisa cumprir metas: quantidade de lives, inscritos, horas transmitidas, média de espectadores”, diz Medeiros.
Tudo é estruturado como um jogo, com barras de progresso. Uma gamificação mascara os problemas: “Quando você engaja no modelo de jogo, as problemáticas se dissipam. Você não se importa com diminuição de receita ou excesso de horas, só quer aumentar o progresso para chegar ao ideal.”
A economia da vulnerabilidade
Financeiramente, o modelo é sedutor. Bex ganha cerca de 2 mil reais mensais com transmissões comuns, mas subathons podem render 4 mil ou mais: “No último, consegui comprar um celular novo. Valeu muito a pena”.
Durante a transmissão ininterrupta, trabalha exclusivamente para a Twitch, já que fica inviável produzir conteúdo para outras redes sociais. Essa não é uma prática que ela consegue fazer sempre, pelo cansaço físico e mental que gera.
E mesmo o descanso acabou se transformando em estratégia de venda: “Fico duas semanas sem fazer live. A galera fica com saudade, cria expectativa. Se você faz live todos os dias e fala que vai ter subathon amanhã, qual a lógica de doarem? Tem que falar que não vai ter live — então eles têm que doar”.
Bex ainda pontua a armadilha psicológica: “Quanto mais a galera doa, mais me sinto incentivada. Penso ‘está dando certo, vou conseguir’. Quando param de doar, dá uma brochada”.
Anna Lucia alerta que é possível monetizar a exposição digital mantendo saúde mental, mas exige consciência: “Defina propósito claro, estabeleça limites de horários e temas, separe público do privado. Diversifique fontes de renda para não depender só de engajamento”.
O futuro da intimidade como commodity
Kennet Medeiros vê o modelo se espalhando além da Twitch: “É uma cultura de transmissão que vai sendo incorporada em diversos espaços, muitas vezes para monetização. Não fica restrito a uma plataforma”.
É o caso da criadora de conteúdo adulto Débora Peixoto, 32 anos, que notou que sua intimidade vale mais que a sexualidade explícita. Então, anunciou para seus 600 mil seguidores do Instagram e 120 mil do TikTok que por R$ 590, ela venderia o acesso a sua câmera de segurança durante o sono. Em dois dias, arrecadou mais de R$ 40 mil com 70 assinantes pagando para observá-la dormir.
“Um assinante me disse que eu devia ser linda até dormindo. Pensei: será que alguém pagaria por isso?”, relembra. A resposta veio rápida: no primeiro dia, ganhou R$ 20 mil.
Para Débora, há uma diferença fundamental entre seus trabalhos: no conteúdo adulto, ela atua — há figurino, performance, um papel a ser desempenhado. Já no “reality noturno”, como batizou o serviço, não há atuação. “É a Débora mesmo. Durmo do jeito que durmo, normal.”
O debate transcende o streaming — toca em questões sobre autonomia, exploração e dignidade na era digital. Enquanto milhares de mulheres vendem dias e noites, uma doação por vez, a sociedade questiona qual economia estamos construindo quando a vulnerabilidade se torna a moeda mais valiosa da internet.
Como EmilyCC observa sobre mostrar a vida real: “É estranho, eu sei, mas também é autêntico. Quem fica, entende”.
Assine a newsletter de CLAUDIA
Receba seleções especiais de receitas, além das melhores dicas de amor & sexo. E o melhor: sem pagar nada. Inscreva-se abaixo para receber as nossas newsletters:
Acompanhe o nosso Whatsapp
Quer receber as últimas notícias, receitas e matérias incríveis de CLAUDIA direto no seu celular? É só se inscrever aqui, no nosso canal no WhatsApp.
Acesse as notícias através de nosso app
Com o aplicativo de CLAUDIA, disponível para iOS e Android, você confere as edições impressas na íntegra, e ainda ganha acesso ilimitado ao conteúdo dos apps de todos os títulos Abril, como Veja e Superinteressante.
5 máscaras capilares que dão tanto brilho que seu cabelo parece um espelho
6 projetos de banheiros com box até o teto para se inspirar
Emma Thompson e o poder da maturidade em Down Cemetery Road
Ninguém dá crédito para elas – mas um Instituto está mudando essa história
Quando só sobrou você: onde estão as mulheres solteiras desse Brasil?







