“Todas as noites, 260 milhões de pessoas sonham em português”. A frase de Língua: vidas em português aponta a vasta comunidade de lusófonos ao redor do mundo. O idioma, ora mais expansivo, ora mais anasalado, aparece nas ruas de Moçambique, ou Macau, nos lares de Goa, nas escolas de Cabo Verde, nas praias do Brasil e por aí vai.
Apesar das multiplicidade da linguagem, o desprezo às variedades linguísticas de menor prestígio social persiste, é o chamado preconceito linguístico.
,A língua e sua função
A principal função de uma língua é servir como meio de comunicação e de expressão entre os indivíduos de uma determinada comunidade. Além disso, ela desempenha um papel fundamental na transmissão e na preservação da cultura de um povo, uma vez que é por meio dela que são compartilhados conhecimentos, valores, tradições e memórias, explica a beletrista Flávia Rita Sarmento (@professoraflaviarita).
“A língua também possui a função de promover a unidade entre os falantes, permitindo que eles se compreendam e se identifiquem como parte de um mesmo grupo.”
Através dela, é possível estabelecer laços sociais e fortalecer a coesão de uma comunidade, o que a torna um produto sociocultural.
Preconceito linguístico
“O preconceito linguístico é a exclusão e repulsa às variedades linguísticas, principalmente aquelas vindas de classes sociais de menor prestígio”, explica Júlia Rotatori (@rotaportugues), escritora e linguista.
Cometer desvios gramaticais, falar gírias ou usar regionalismos são considerados erros, sem levar em conta idade, classe ou grupo social do falante.
Marcos Bagno, professor, doutor em filosofia, linguista e escritor brasileiro, defende que a reprovação é dirigida a um grupo, geralmente pobre e sem acesso à educação formal, que não consegue seguir o padrão imposto pela elite econômica intelectual.
“A noção de erro vai muito além da língua: é a pessoa, no lugar que ela ocupa na hierarquia social, que é acusada de falar ‘errado’. E a violência maior é exigir que ela fale ‘certo’ sem que o Estado lhe forneça as condições mínimas de acesso à educação, à leitura, à escrita, e à cidadania plenas”, pontua o pensador.
Mais de 10 milhões de pessoas não são alfabetizadas no Brasil, ou seja, não sabem sequer escrever o próprio nome. Por outro lado, quem teve acesso a boas escolas e conseguiu uma longa trajetória acadêmica, tem mais conhecimento sobre a norma culta.
O acesso, porém, pertence majoritariamente aos mais ricos, segundo a OCDE. A organização ainda descobriu, por meio de um estudo, que o setor educacional brasileiro é desigual e privilegia os alunos mais ricos ao invés dos mais pobres.
Exemplo disso são os vestibulares e concursos públicos, que exigem a norma culta, embora nem todos os inscritos tenham recebido aulas sobre o que está sendo requisitado.
O preconceito linguístico, assim, isola parcela da população ao ditar o que é correto ou não. “Avaliar uma pessoa pela sua maneira de falar é como separar ou segregar ela da sociedade. O foco passa a ser nas diferenças, sem entender todo o contexto ao qual aquele indivíduo vive ou viveu”, diz Julia.
“O fundamental na comunicação é a compreensão do que está sendo dito. Se uma pessoa fala ‘a gente vamos’, você entende? Se entende, a mensagem foi passada. No entanto, costumeiramente, as pessoas são ridicularizadas e excluídas pela forma que escrevem ou falam, e isso é preconceito linguístico”, reflete a comunicadora Lu Amâncio (@lu_amancio_).
Preconceito linguístico e xenofobia
O preconceito linguístico se manifesta para além da questão socioeconômica, alcançando as esferas regional e cultural, por exemplo.
“Ele é responsável por criar estigmas e estereótipos negativos em relação a determinados dialetos, sotaques ou formas de falar. Isso pode levar à discriminação e exclusão social, prejudicando a autoestima e a confiança dos falantes dessas variantes linguísticas”, segundo Flávia.
As oportunidades de emprego e renda também são afetadas pelo preconceito, pois a desvalorização social sobre quem não segue a norma culta impede a chegada em melhores ocupações. “Isso cria um círculo vicioso, em que a falta de acesso à educação perpetua o preconceito linguístico e vice-versa.”
Ou seja, sem acesso à educação de qualidade, a perpetuação do preconceito linguístico ganha terreno fértil. A justificativa é que as pessoas podem não aprender as normas linguísticas consideradas “corretas” pela sociedade dominante.
“Isso leva a uma desvalorização de suas formas de falar e contribui para a marginalização desses grupos”, esclarece Flávia.
O que fazer?
Para reverter o problema, é necessário um conjunto de ações, que vai além do acesso à educação formal.
“Investir em ensino de qualidade para todos, garantindo que os brasileiros recebam uma educação que valorize e respeite todas as variantes linguísticas, mas que se ocupe também de oportunizar a variedade padrão, pois é ela que é cobrada, por exemplo, em concursos, vestibulares, entrevistas de emprego, é necessário”, de acordo com Flávia.
A formação de professores capacitados a lidar com a diversidade linguística e campanhas de conscientização também são importantes na visão dela.