A perda gestacional é um processo complexo, dolorido e, geralmente, encarado com menor validação social. Apesar de serem registrados mais de 5 mil óbitos neonatais no Brasil, o luto da perda ainda é descredibilizado no círculo mais íntimo da família. Isso porque a invisibilidade da dor do luto perinatal é concreta e escancarada, como se aquela criança não tivesse existido, por não ter um corpo para ser velado e/ou cremado.
Nesta reportagem, conversamos com especialistas sobre essa dor invisível do luto perinatal. E a seguir, trazemos os depoimentos de quatro mulheres que passaram pela dor da perda gestacional e compartilharam com CLAUDIA suas histórias de luto.
O silêncio ensurdecedor do parto
Personagem Kika Hipólito: 44 anos, gestora de projetos – perda no fim da gravidez
A gestora de projetos Kika Hipólito, de 44 anos, perdeu seu primeiro filho, Léo, quando estava grávida de 39 semanas. O bebê foi diagnosticado com síndrome de Down durante o ultrassom morfológico de 3 meses – o aborto foi oferecido como opção (porque ela mora no Canadá, onde o aborto é legal), mas nunca chegou a ser cogitado por Kika, que passou a estudar profundamente a síndrome para oferecer ao filho o melhor que pudesse. “Sabia que ele sofreria preconceitos, que teria problemas de saúde, mas decidi enfrentar. Estudei muito, entrei em grupos de pais, passava horas na biblioteca lendo”, lembra.
A gestação transcorreu normalmente, com consultas e exames de rotina, até que Kika percebeu que o bebê não estava mais chutando sua barriga. Correu para o hospital mais próximo, onde o ultrassom confirmou a ausência de batimentos cardíacos: Léo estava morto. “Foi um choque. Minha gravidez tinha sido extremamente difícil, mas eu não acreditava naquilo. Pedi para fazer uma cesárea imediatamente, mas me disseram que não. Eu seria submetida ao parto normal.”
Kika escolheu então ir para o hospital onde fez todo o pré-natal. Lá recebeu um medicamento para induzir o trabalho de parto e Léo nasceu cerca de três horas depois. “Foi um parto normal muito triste, silencioso, ensurdecedor. Léo não chorou, foi bem difícil”, conta. O bebê foi colocado num cestinho, um pouco longe de Kika, que foi aconselhada a vê-lo. Caso não quisesse, o próprio hospital havia feito fotos, que ficariam no prontuário por cinco anos. Kika seguiu o conselho do marido e do hospital, e pediu para pegar o filho no colo. Não largou mais.
A forma como tudo foi conduzido e o acolhimento dos profissionais que a atenderam foram fundamentais para Kika conseguir lidar com a perda abrupta. Mesmo assim, não foi fácil. Ao voltar para casa, ela se deparou com o quarto de Léo pronto para sua chegada. Teve uma forte depressão pós-parto, síndrome do pânico, pensou que nunca mais seria mãe.
O destino quis diferente e Kika engravidou de José em novembro do mesmo ano. O bebê nasceu saudável, mas Kika ainda carregava todo o trauma da perda de Léo. “Entrei em paranoia, não saía do quarto, achava que ele morreria a qualquer momento. Foi horrível e até hoje peço desculpas por não ter sido uma mãe mais leve”. Dois anos depois, com o luto melhor elaborado, nasceu Bibi, que transformou a maternidade de Kika no que ela sempre sonhou. “A perda sempre dói muito, mas saber que nossa dor não é exclusiva com certeza nos ajuda a recuperar mais rápido”.
O diagnóstico de incompatibilidade com a vida
Carolina Ribeiro: 43, gerente de marketing, mãe da Julia que foi diagnosticada com síndrome incompatível com a vida
O sonho de Carolina Ribeiro, de 43 anos, sempre foi ser mãe. O primeiro emprego em Londres, onde mora há sete anos, foi justamente cuidar de crianças. Ao chegar perto dos 40 anos, quando o relógio biológico da mulher começa a dar sinais de que está envelhecendo, Carol decidiu correr atrás do sonho da maternidade. Como não tinha um parceiro, partiu para o projeto mãe solo – comprou sêmen de um doador num banco internacional e iniciou um tratamento para fertilização in vitro.
Carol transferiu apenas um embrião e engravidou na primeira tentativa. Com oito semanas de gestação, um exame indicou que o bebê era uma menina – Julia estava a caminho. Cautelosa como muitas gestantes, contou para pouquíssimas pessoas do seu círculo familiar sobre o a gravidez. Queria esperar a gestação evoluir.
O pré-natal transcorria perfeitamente, com todos os exames todos dentro do esperado. Ao completar 20 semanas (cinco meses), Carol enfim contou para a família e os amigos que estava grávida de Julia. O baque veio duas semanas depois, durante mais um ultrassom de rotina, quando as médicas sinalizaram que havia algo de errado com a bebê. Um outro especialista foi chamado e deu diagnóstico: Julia não sobreviveria fora do útero materno. A bebê tinha uma malformação genética rara (síndrome de Meckel-Gruber, confirmada depois em uma amniocentese), incompatível com a vida. “Me falaram na lata: a gente recomenda que você tire. Naquele momento achei que ia morrer. Nunca chorei tanto na minha vida.”
No Reino Unido o aborto é legalizado – até 20 semanas, a mãe pode interromper a gestação por qualquer motivo. Após esse período, é preciso ter recomendação médica, o que Carol tinha. Mas ela ainda não estava decidida pela interrupção. Procurou outros especialistas para entender mais sobre o diagnóstico da filha e se deu conta da gravidade do caso. Pelo caminho convencional, Carol deveria fazer um “feticídio”, que é injetar uma agulha no útero para fazer o coração do bebê parar de bater, antes de nascer pelo parto vaginal. Carol não quis. Pediu para ser submetida a uma cesárea com anestesia geral. “Eu não tinha condições emocionais de ser submetida a um trabalho de parto.” Julia nasceu alguns dias depois, em 24 de agosto, com 28 semanas, pesando 1,36 kg, em uma cesárea programada.
Carol foi para o quarto e a filha também – Julia ficou em um berço refrigerado para que a mãe pudesse ter a chance de manter contato com a filha o tempo que fosse necessário – algo que não existe no Brasil. Por duas noites, a mãe pôde fazer um ensaio fotográfico com a filha, trocar a bebê, ninar, cuidar. Depois disso, o corpinho de Julia foi para o necrotério, mas Carol pôde visitar a neném até que chegasse o dia da cremação.
“Pode parecer mórbido e assustador visitar um bebê num necrotério, mas não é. Não são aquelas gavetas geladas que vemos em séries de TV. Existe todo um cuidado e a visita ocorre numa sala, com berço, sofá, fraldinhas, roupinhas. Como se fosse um quarto mesmo. Pude até dar banho na minha filha”, conta Carol, emocionada.
Para Carol, todo o acolhimento e as opções que recebeu a partir do diagnóstico da filha foi essencial para que ela pudesse viver a maternidade desejada, mesmo que de uma forma incomum. Hoje é coordenadora em um instituto que cuida de outras famílias que estão passando pela mesma dor. Até hoje, conheceu três famílias que tiveram o mesmo diagnóstico de Julia – todas no Brasil, onde a interrupção da gestação não é permitida pela legislação. “Sempre quis ser mãe e sou mãe da Julia. Julia vive e me transformou numa mulher melhor”, finalizou.
As perdas e o corredor da maternidade
Fabiana Araújo Lima: 48 anos, 8 perdas gestacionais
A produtora cultural Fabiana Araújo Lima, de 48 anos, perdeu oito bebês em quatro anos e hoje é voluntária em grupos de apoio ao luto gestacional e neonatal. A primeira gestação – de gêmeos – aconteceu naturalmente quando ela estava com 44 anos. A surpresa foi tão inesperada que ela repetiu o teste de farmácia quatro vezes e fez o exame de sangue para ter certeza de que estava grávida.
A notícia transformou a rotina do casal, que iniciou o pré-natal imediatamente, seguindo todos os cuidados que uma gestação gemelar requer. Em um dos ultrassons, no entanto, a médica avisou sem nenhum cuidado que a gestação não havia evoluído. “Ela simplesmente disse que o coração dos bebês tinha parado de bater. Chorei de desespero. Saí de casa para um exame de rotina e recebo uma notícia de abortamento?”, lembra.
Fabiana seguiu para a o pronto-socorro da maternidade, onde o ultrassom foi repetido e a perda dos bebês foi confirmada. Diante do caso, ela teria duas opções: esperar que o corpo entendesse que a gestação parou de evoluir e expulsasse os bebês; ou fazer a AMIU (aspiração manual intrauterina, que é a retirada do conteúdo uterino por meio de uma seringa a vácuo). “Essa expulsão espontânea pode levar 5, 15, 30 dias. Achei que era muito cruel comigo esperar que dois bebês mortos fossem expulsos pelo meu corpo em qualquer lugar”, conta.
Foi aí começou a dor do luto com uma violência que Fabiana ainda não havia se dado conta. O hospital não tinha protocolo para separar mulheres que perderam bebês daquelas que tinham acabado de parir. Fabiana e o marido foram instalados no mesmo corredor que outras famílias e ficaram a madrugada toda ouvindo chorinhos dos recém-nascidos. “Isso foi muito cruel. Na época eu ainda me culpava e ficava pensando que a maternidade, via de regra, é um lugar de amor, felicidade. Não entendia como isso era violento comigo mesma, não viver minha dor, não viver o meu luto”, diz.
No momento do procedimento, mais dor. Fabiana com as pernas abertas e amarradas e as profissionais de saúde conversando sobre amenidades, ignorando o choro da paciente. Fabiana acordou na sala recuperação junto com puérperas que haviam saído da cesárea, separadas apenas por cortinas. “Eu só ouvia parabéns para as mamães e eu me sentindo culpada por não saber lidar com a felicidade dessas mães. Percebi que o que era um momento de dor para mim, para o hospital eu era apenas mais uma rotina. Tive que ir para a terapia”, conta.
A jornada do luto gestacional de Fabiana começou com a perda dos gêmeos e ainda viriam mais seis perdas pela frente: duas após outras gestações naturais e quatro perdas depois de FIVs (procedimentos de fertilização in vitro). Fabiana conta que as “frases sem noção” para mães que perdem os bebês em fases muito precoce da gestação, como no caso dela, ocorriam o tempo todo, tanto de amigos quanto de familiares.
“A perda gestacional é invisibilizada pela sociedade porque ninguém conheceu esses bebês. Esses bebês fomos apenas nós que sentimos. E a dor de um pai é ainda mais invisível do que a da mãe. Ninguém pergunta como o pai está. O homem tem que ser forte, não é dado a ele o direito de chorar, de vivenciar o luto e de sofrer pelos filhos que se foram”, diz Fabiana, que hoje ajuda outras famílias em seus processos de luto.
“O processo de escuta do luto de outras famílias e ver como minha própria história ajuda outra família é um processo de cura para mim também. E isso é muito potente, muito forte. Eu não me achava mãe, não me considerava mãe. Mas eu sou mãe, só não tive oportunidade de maternar”, completou.
“São bebês que não levamos para casa”
Natália Mundim Torres: 42 anos, bióloga, pesquisadora e professora da Universidade Federal de Uberlândia, mãe da Elis – síndrome de Patau
Há pouco mais de três anos a bióloga Natália Mundim Torres, de 42 anos, se tornou ativista em busca do acolhimento e humanização do luto neonatal e perinatal depois de passar pela experiência de gestar um bebê que tinha poucas chances de sobreviver fora do útero materno.
O ano era 2019. Natália, que é pesquisadora e professora da Universidade Federal de Uberlândia, já era mãe dos gêmeos Beatriz e Fernando quando descobriu que estava grávida novamente. Embora não planejada, a segunda gravidez foi recebida com muito entusiasmo pela família, que começou a se organizar para receber Elis.
Tudo ia bem até o ultrassom morfológico, realizado com 23 semanas de gestação, apontar que Elis tinha duas anomalias congênitas: hérnia diafragmática e mielomeningocele (espinha bífida). Diante do caso delicado, a médica sugeriu que Natália procurasse um cirurgião neonatal, especializado em procedimentos intrauterinos. Havia uma esperança de tentar corrigir o problema da bebê.
Natália procurou o especialista, mas, durante um novo ultrassom, o médico identificou outras anomalias típicas de síndromes raras, além de uma cardiopatia. Elis não era elegível para a realização da cirurgia intrauterina. “Uma mãe e um pai tentam qualquer coisa para salvar os seus filhos. Mas, infelizmente, não tivemos acesso à escolha. A sensação é como se ela fosse carimbada, como se ela não valesse a pena”, diz.
A sugestão do médico foi realizar a amniocentese para chegar ao diagnóstico definitivo: síndrome de Patau, caracterizada pela trissomia do cromossomo 13 – uma alteração genética grave, em que a maioria dos bebês não sobrevive mais do que uma semana. Ainda na ocasião do diagnóstico ouviu de uma médica da equipe que “esses são bebês que não levamos para casa”, o que a deixou arrasada, mas não a desanimou. “Receber esse diagnóstico foi como cair num buraco escuro e sem fim. Como aceitar que ela era incompatível à vida se ela vivia e crescia na minha barriga?”, diz.
Natália então entrou no difícil embate do racional com o emocional: seguir com a gestação ou tentar a interrupção por meio de um processo judicial? Escolheu seguir com a gestação e curtir cada dia da vida de Elis no seu ventre como se fosse o último. “Procurei me fortalecer e aproveitar cada momento porque sabia que não teríamos muito tempo”, lembra.
Antes de Elis nascer, Natália visitou o hospital para fazer alguns pedidos especiais. Fez um plano de parto e expressou seu desejo em cuidados paliativos, com o desejo de ficar com a bebê no colo assim que ela nascesse, sem a necessidade de leva-la para a UTI fazendo intervenções desnecessárias. E assim foi. Elis nasceu em 16 de janeiro de 2020, na véspera do aniversário de 5 anos dos irmãos e foi direto para o colo da mãe – como era o seu desejo – e ali viveu suspirando por longos 18 minutos, os minutos mais doces e intensos compartilhados entre mãe e filha.
Além de dificuldades para conseguir se despedir da filha com calma devido à falta de humanidade na abordagem hospitalar apressando o procedimento, Natália ainda enfrentou dificuldades para doar o seu leite materno. Diante disso tudo, se tornou uma voz que luta pelo respeito ao luto. “Elis não está aqui, mas nos deixou muitos ensinamentos. E, entre eles, está esse trabalho de conscientização, mudanças e orientações para famílias enlutadas”, finalizou.