Outro dia, entrevistando a cantora Alcione, ela comentou sobre a sua relação com o dinheiro. “Deve ser fruto do resultado do seu próprio trabalho”, me disse. A Marrom não teve o dinheiro como norte de sua carreira, mas sempre o considerou fundamental para um “futuro melhor e mais tranquilo”. Esse pensamento, contou, veio de uma orientação de seu pai, de sempre buscar autonomia e independência financeira. Ele dizia: “Filha, nunca deixe ninguém te mandar embora… Tenha sua casa!”.
Já a série O Canto Livre de Nara Leão apresenta a história da “musa da Bossa Nova”, que se apaixonou pelo samba e cantou com a Jovem Guarda. O primeiro episódio mostra Nara (1942-1989) como uma menina de Copacabana, filha de Jairo e Altina. No trecho, cobrindo a imagem da família em seu apartamento de frente para a praia, ponto de encontro da nata da música, uma declaração da irmã, Danuza Leão: “Eu sempre ouvia desde pequenininha: a mulher para ser independente precisa ter o dinheiro dela e só pode ter trabalhando. Você vê que na época, quando a Nara começou a cantar, aos 14 anos, meu pai deixou porque achou que era a vida dela”. Um áudio da própria artista reforça: “Na minha vida, a liberdade de ir e vir foi muito importante”.
E então chegamos ao filme Pobres Criaturas, vencedor de quatro estatuetas do Oscar, incluindo a de Melhor Atriz para Emma Stone. Ele também fala de dinheiro — em cenas escancaradas e outras que podem passar (quase) despercebidas. Dirigido pelo grego Yorgos Lanthimos, o longa mostra a nova vida de Bella Baxter, a personagem de Emma, depois que, graças a um experimento científico, recebe o cérebro de seu próprio bebê para continuar a viver. Com uma mente infantil em corpo de mulher (o que rende muitas análises, da psicanalista à feminista), ela exige igualdade e libertação e quer conhecer o mundo.
Trago aqui apenas um ponto entre tantos da enigmática narrativa. Ao sair pela primeira vez de seu universo, a sua casa, para uma viagem com Duncan (Mark Ruffalo), um extravagante e boêmio advogado curioso e fascinado por ela, seu “pai-criador”, Godwin Baxter (Willem Dafoe), ou God, esconde dinheiro no interior de seu casaco e o costura para ser acessado em caso de urgência. Mas, sabemos, cada um tem a sua própria régua para medir uma urgência. Bella não acessou o esconderijo quando o casal chegou sem nada em Paris. Em vez disso, resolveu ganhar dinheiro fazendo o que gostava, sexo, para ter o que queria naquele momento: hospedagem e croissants para comer no banco da praça em um dia gelado. Diante do julgamento moral do companheiro, Bella diz “nós somos nosso próprio meio de produção”, reivindicando o controle sobre seu próprio corpo e também autonomia para decidir o que fazer.
Seja por meio das mensagens claras de Alcione e Nara, seja a partir dos estopins de Pobres Criaturas que levam a reflexões absurdamente reais, é sempre hora de pensar sobre equidade de gênero, empoderamento feminino, redução da pobreza, bem-estar individual ou familiar. Eis aí bons motivos para que pais e mães incentivem a independência financeira de suas filhas, e para que as mulheres fiquem atentas. É importante começar reconhecendo dinâmicas de poder e desigualdades de gênero e raça para superá-las. Mesmo em tempos e cenários tão distantes, fica claro que ter dinheiro é denominador comum para mulheres conquistarem autonomia e deixarem sua marca na história.