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A coletividade do maternar indígena

Mulheres indígenas mostram como estar em grupo faz toda a diferença na hora de educar os filhos. Aqui,10 lições delas para repensar os percursos do cuidar

Por Carol Apple
Atualizado em 19 set 2023, 09h38 - Publicado em 18 set 2023, 15h11
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  • Quem tem a oportunidade de acompanhar como se dá o cuidado com as crianças dentro de uma aldeia percebe rapidamente que existe ali um senso de responsabilidade coletiva com a criação dos pequenos. Esqueça a parentalidade experimentada nas cidades: o estilo de vida das mulheres aldeadas é muito diferente daquele seguido pelas mães das áreas urbanas. Mesmo assim, é possível se inspirar na cosmovisão indígena e conseguir novos espaços não só para a maternidade, mas também para o ato de maternar.

    A artista, ativista e liderança nas terras do Xingu Watatakalu Yawalapiti explica que a organização com as crianças é matrifocal. Ou seja, é a mulher, não o homem, que está presente em todos os momentos da vida dos filhos. A atenção diária, porém, é coletiva, permitindo que as crianças cresçam mais livres. “No caso dos indígenas em contexto de aldeia, todo mundo ajuda na criação, desde o nascimento. Durante a amamentação, a gente fica em resguardo com a família por seis meses e somos cuidadas também. Em muitos casos, os maridos nem ficam perto e não os ajudamos em nada nesse período. Quando o bebê vai crescendo, outras crianças participam do processo”, diz Watatakalu.

    Considerando o conceito de maternidade propagado no ocidente, essa possibilidade parece muito distante. Mas é justamente esse comportamento que culminou em um esgotamento emocional, físico, espiritual e financeiro de mães. A sobrecarga pela quantidade de responsabilidades executadas, na maior parte da vezes, sozinhas é um dos motivos que tem levado tantas de nós à exaustão. O tempo para maternar é escasso e fica comprometido pelo cansaço. Por fim, todo mundo sai perdendo, tanto as mães quanto as crianças. Um remédio é a famosa “rede de apoio” — muitas vezes, porém, a tal rede que cuidaria da saúde, principalmente mental, dessas mulheres não é uma realidade para a maior parte das genitoras, como deveria ser. 

    “As mulheres na cidade estão tão cansadas que não conseguem dar conta nem delas e nem de seus filhos. Aqui na aldeia, passamos cerca de dois anos observando a nossa alimentação, o nosso sono, além de passarmos mais tempo em família. Na nossa organização, não temos babá e creche, por exemplo, precisamos levar a criança para todos os lugares que vamos. Por isso passamos tanto tempo com elas”, conta. 

    Além das responsabilidades dentro da aldeia, as mulheres indígenas também possuem, cada vez mais, compromissos fora dela. Viagens, por exemplo, são frequentes. “Quando me convidam para um evento, eu coloco no orçamento a ida dos meus filhos e de uma pessoa para me ajudar”, diz Watatakalu, que encontrou nesse formato um jeito de estar presente no trabalho sem deixar as crianças na aldeia. A atitude, contudo, ainda é vista como um problema e recebe críticas machistas. “Nossas obrigações fora das aldeias fazem com que muita gente critique e diga que não prestamos como mãe e nem como nora, já que não estamos cuidando dos nossos maridos como suas mães esperam”, afirma. Palpites e julgamentos, aparentemente, impactam mães dentro e fora das aldeias.

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    Retrato de mulher indígena
    Os cuidados podem ser transformados com os pensamentos indígenas (Gabi Di Bella/Reprodução)

    Reforço da ancestralidade

    Compreender o maternar indígena só faz sentido a partir da espiritualidade e ancestralidade. Esses povos honram suas raízes e suas conexões espirituais por compreenderem a importância dessa valorização diante da tomada de decisão no presente. No outro extremo, é cada dia mais comum as crianças crescerem sem saber quem foram seus bisavós, o que pode criar vácuos na história delas, impactando no desenvolvimento e nas formas mais sutis de conexão com a vida.

    Shirley Krenak
    Shirley Krenak batalha para manter viva e nítida a raiz da sua árvore genealógica. (Divulgação/Divulgação)
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    A escritora Shirley Krenak, também uma liderança entre seu povo, localizado em Minas Gerais, fez história justamente por batalhar para manter viva e nítida a raiz da sua árvore genealógica. Mãe de três filhos, precisou entrar na Justiça para conseguir o direito de registrar um deles com nome na língua Krenak. “São nomes que dizem respeito ao dom que cada criança tem ao nascer. A gente tem essa essência dentro da gente, do entendimento do nome que vai dar. Ele funciona de acordo com o que a espiritualidade apresenta”, conta Shirley. A prática espiritual que Krenak fala é sobre aquela intrinsecamente conectada à natureza, tornando essas crianças ouvintes da biodiversidade: “É um ato de potencializá-las para respeitar ainda mais a terra em que elas pisam, a água que elas bebem. É uma forma de desestimular o individualismo. Isso é algo que nos preocupa”.

    No caso dos indígenas em contexto de aldeia, todo mundo ajuda na criação, desde o nascimento. Durante a amamentação, a gente fica em resguardo com a família por seis meses e somos cuidadas também

    Watatakalu Yawalapiti, artista, ativista e liderança nas terras do Xingu

    Shirley, que também é educadora, destaca a importância da família ocidental não delegar somente à escola o processo educacional e a necessidade de criar meios de coletivizar as relações. “Dentro do contexto em que a criança indígena está inserida, tudo é feito por todos e partilhado. Nas escolas eu vejo a criança levar seu próprio lanche, que ela não compartilha. As brincadeiras em grupo deram lugar ao celular. É um amor coletivo [na aldeia]. É uma espiritualidade coletiva em que todo mundo participa e isso nos faz ficar fortalecidas enquanto mães. Porque quando o filho nasce, ele não é só nosso, ele é da comunidade”, ressalta.

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    Vale lembrar que, mesmo havendo ajustes que podem ser feitos na vida das mães para que elas consigam ter mais momentos de descanso e prazer ao lado dos filhos, isso não significa que toda a responsabilidade deva recair sobre as mulheres. O processo de mudança precisa ser social. Até lá, confira 10 pensamentos indígenas para colocar em prática na hora de cuidar dos filhos e maternar com mais leveza. Vale também para ajudar as amigas na mesma trajetória. 

    ​​No caso dos indígenas em contexto de aldeia, todo mundo ajuda na criação, desde o nascimento. Durante a amamentação, a gente fica em resguardo com a família por seis meses e somos cuidadas tambémWatatakalu Yawalapiti, artista, ativista e liderança nas terras do Xingu

    A criança se perceber como parte da natureza faz com que ela  valorize as questões ambientais

    10 pensamentos indígenas para colocar em prática na hora de criar os filhos

    1. Aldear a atenção: Convide seu meio social a participar do cuidado durante os encontros em família e entre amigos. Deixe que a amorosidade de outras pessoas afete as crianças, que se sentirão mais protegidas e integradas.
    2. Senso de comunidade: A sociedade ocidental precisa retomar isso. As mães podem exercitar a prática com outras mães, permitindo a entrada de outras mulheres no processo.
    3. Resgate ancestral: Conte para os seus filhos a história de quem veio antes deles, os avós, bisavós, trisavós, por meio de contos, fotos… Inclusive, é uma oportunidade das próprias  mães se reconectarem com a sua ancestralidade. 
    4. Retome o que é seu: A sobrecarga da vida moderna e toda a pressão social podem gerar um afastamento das mães de suas respectivas essências. Isso faz com que a maternidade tenha um efeito inverso de empoderamento e deixe a espontaneidade e a verdade própria em segundo plano.
    5. Coletivizando a vida: Trabalhe questões em casa que tornem as crianças menos individualistas. Momentos em conjunto, como um lanchinho da tarde (sem celular!), podem ajudar nessas questões.
    6. Fale sobre a natureza: A criança se perceber como parte da natureza faz com que ela  valorize as questões ambientais e acolha os benefícios físicos, mentais e emocionais que é ter a consciência da biodiversidade e sua importância.
    7. Aproxime gerações: Aqui, é um ato de resistência. Insira as crianças nas tarefas do dia a dia, nos passeios e afins porque elas precisam ser vistas como a prioridade que são, porque são o amor. Filhos serem vistos como causa do cansaço pode gerar sentimentos de rejeição e culpa.
    8. Imponha limites: Não são só nos pequenos, mas nos outros adultos ao redor também. Com menos pressão, você tem mais chance de sentir prazer em ficar com os filhos. Há  desafios, mas não desista.
    9. O corpo é essencial: Teve bebê faz pouco tempo? Então abranja os cuidados com o corpo para mais tempo do que é comum ver por aí. Durante cerca de dois anos, fique atenta com a alimentação, a exposição excessiva e a qualidade do sono.
    10. Estar presente: Se você tem a possibilidade de se aproximar ou ficar mais tempo com a família durante o processo de crescimento do bebê, faça. Traga esse olhar de cuidado para todos os membros, fale sobre as suas necessidades e permita-se ser cuidada.

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