A crise do novo coronavírus, que surgiu nos mercados úmidos do Sudeste Asiático e se espalhou pelos cinco continentes, mostrou ao mundo que a produção de alimentos e seu impacto no meio ambiente são também uma questão de saúde pública global. Mais do que nunca as escolhas do consumidor serão decisivas para cobrar da indústria agropecuária normas mais rigorosas e éticas
No final do ano passado, um cliente de um mercado de animais silvestres da China decidiu comprar carne de pangolim, mamífero semelhante a um tatu, e o mundo nunca mais foi o mesmo. Mais de meio milhão de pessoas morreram, economias pararam, amigos e famílias deixaram de se ver e milhões de pessoas perderam o emprego para que a humanidade pudesse combater um inimigo que mede um milionésimo da espessura de um fio de cabelo: o novo coronavírus.
O pangolim, cujo consumo é ilegal, havia sido infectado com o micro-organismo por um morcego e estava à venda em um “mercado úmido” (nome dado às feiras de animais silvestres no Sudeste Asiático, onde os bichos são vendidos vivos ou mortos). Essa é a hipótese mais provável até o momento para explicar a origem da pandemia de Sars-CoV-2. Não se sabe se o primeiro a ser contaminado foi o caçador, o açougueiro ou o comprador do pangolim (nem sequer se o animal chegou a ser consumido), mas este não é o primeiro caso de epidemia que se originou de animais. Assim como a Covid-19, a Síndrome Aguda Respiratória Grave (Sars) teve início no comércio chinês de animais vivos em 2003; a pandemia da gripe H1N1, em 2009, no México, na criação de suínos; o Ebola e o HIV surgiram com o consumo de carne de caça na África. “Percebe um padrão?”, pergunta o pesquisador Wladimir Alonso, especialista em saúde pública e epidemiologia de doenças infecciosas. “Frangos e porcos, por exemplo, atuam como hospedeiros intermediários e amplificadores de patógenos que podem ser transmitidos à população humana”, explica. Coautor de Pandemias, Saúde Global e Escolhas Pessoais (Cria), ele faz um alerta: “Quanto maior a demanda por esse tipo de alimento – o que faz aumentar a população desses animais e o volume de produtos secundários derivados –, maior o risco de emergência de cepas com potencial pandêmico. É uma questão de probabilidade”.
Não surpreendeu os epidemiologistas, portanto, o fato de a crise do novo coronavírus ser uma zoonose, isto é, uma enfermidade que tem origem nos animais. Cerca de 75% das doenças emergentes com potencial epidêmico, cuja incidência vem aumentando desde 1940, têm essa característica, segundo um relatório da Organização das Nações Unidas. Agora, o debate está saindo dos laboratórios e ONGs e chegando ao consumidor. Resultados preliminares de uma pesquisa mundial ainda inédita, intitulada Corona Cooking Survey (Pesquisa de Cozinha do Corona, em tradução livre), revelam que as pessoas já estão mais atentas na hora das compras. Capitaneada pela Universidade da Antuérpia, na Bélgica, a investigação, que busca entender o impacto da pandemia nos hábitos de consumo, mostrou que os brasileiros estão fazendo mais listas, tentando reduzir o desperdício de comida e optando por ingredientes saudáveis. “O sistema da União Europeia que querem trazer para o Brasil inclui uma rotulagem mais detalhada nos produtos para atender a um apelo do consumidor”, diz a veterinária Marcia Barcellos, que coordena o braço da pesquisa na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) – a Universidade de São Paulo é outro polo nacional. “Além disso, as pessoas estão se organizando para comprar de empresas boas. Isso é um poder gigante”, afirma. Claro que, ainda mais com a crise econômica que se desenrola, o custo para tais decisões só caberia no orçamento de uma parcela pequena da população.
O impacto catastrófico do novo surto revela que a produção e o transporte da carne são tão relevantes para a saúde humana como seus nutrientes. “Só vamos mudar as políticas públicas quando houver a politização e alfabetização científica da população para os riscos do modo como nos alimentamos ou lidamos com os animais e o meio ambiente”, diz a microbiologista Tatiana Castro, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Até agora, China e Vietnã já acenaram que pretendem proibir o comércio de animais exóticos.
75% das doenças emergentes com potencial epidêmico são zoonoses, ou seja, enfermidades que têm origem nos animais
Esta talvez seja uma das lições que o novo coronavírus trouxe: a importância de enxergar a saúde como parte de um ecossistema unificado, compartilhado por todos os povos. “A gente tende a ver as coisas separadas. O animal no canto dele, o humano aqui, o oceano lá. Mas está cada vez mais claro que todos vivemos em uma interface e o que um faz impacta o outro”, resume Tatiana. Há inclusive um conceito que define essa abordagem integrada, a chamada saúde única, desenvolvida pela ONU, que reúne a Organização Mundial da Saúde (OMS), a Organização Mundial da Saúde Animal (OIE) e um braço voltado para agricultura e alimentação (FAO). Um estudo da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional mostra que 31% dos casos de disseminação de zoonoses entre humanos ocorreram após a invasão e destruição dos ambientes naturais. Cabe ressaltar, porém, que comer animais silvestres é, em muitos casos, uma questão de necessidade. O Ebola, por exemplo, mata 90% dos infectados. Surgiu na África, onde 275 milhões de pessoas recorrem à caça por não ter o que comer. A miséria que leva a população a matar bichos não é apenas um problema social, mas ambiental, sanitário e econômico – e, como podemos perceber hoje, confinados em casa há mais de 100 dias, diz respeito a todos nós.
A próxima vez
Com o inchaço na população mundial, que deve bater a casa dos 9,7 bilhões em 2050, os riscos de novas pandemias crescem também. “A demanda por carne vai aumentar na América do Sul, na África e no Sudeste Asiático. Isso acarretará 50% a mais de demanda de energia, 40% de água e 60% de alimentos”, detalha a veterinária Janice Zanella, especialista em virologia animal da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). A pressão para o aumento da produção de carne e alimentos, especialmente em um país de base agrícola, como o Brasil, exigirá cuidados redobrados na fiscalização. É preciso evitar que as precárias condições sanitárias do mercado de Wuhan, que facilitaram a migração do novo coronavírus do animal para o humano, se repitam.
Esse não é um problema apenas de caçadores famintos ou feiras informais. As indústrias também não estão imunes de se tornarem epicentros de surtos de zoonoses. Na atual pandemia, frigoríficos no Brasil viraram foco de disseminação da Covid-19 devido à aglomeração das fábricas – e muitos tiveram seus contratos com outros países suspensos. “Você junta aglomeração, circulação de ar reduzida e ambiente frio, o que propicia a propagação de agentes pela via aérea”, explica Eduardo Tondo, professor de engenharia de alimentos na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ele acredita que o Brasil detém uma posição privilegiada por ser um dos maiores exportadores de proteína animal do mundo, o que obriga as empresas do mercado a se adequarem a padrões europeus e norte-americanos, em geral muito mais rigorosos do que os brasileiros. “Mas isso não quer dizer que não haja falhas, porque a cadeia é muito grande”, diz.
A rastreabilidade do animal que sai das fazendas e chega até a mesa vai se tornar uma das questões-chave na prevenção de novas pandemias. A criação de gado é hoje, por exemplo, o principal motor do desmatamento na Amazônia, segundo o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). Derruba-se a floresta – e, consequentemente, o hábitat de espécies nativas – para criar gado de corte. Isso favorece não só o surgimento de novas pandemias mas também a aceleração do colapso climático. Em 2009, uma investigação liderada pela ONG Greenpeace mostrou que três empresas responsáveis por 50% da exportação de carne do Brasil compravam gado de fazendas situadas dentro de reservas indígenas e envolvidas com trabalho escravo e vendiam a proteína e o couro a grandes marcas mundiais, como Adidas, BMW e Carrefour. A revelação desagradou às gigantes, que passaram a ser associadas a práticas predatórias, e levou ao rompimento de contratos. No fim, a cadeia produtiva precisou se reorganizar. Taciano Custódio, diretor de sustentabilidade da Minerva Foods, líder em exportação de carne bovina na América do Sul, diz que a empresa adota hoje uma série de procedimentos para checar se o fornecedor tem posse legal da terra, se possui multas ambientais, se há desmatamento ou trabalho escravo na fazenda – se for reprovado em um dos requisitos, a compra é suspensa. O esforço resultou em 2,4 mil fornecedores bloqueados.
“Quanto maior a demanda por frangos e porcos, maior o risco de emergência de cepas com potencial pandêmico”
Wladimir Alonso, especialista em saúde pública
O alerta agora recai sobre as granjas de frango e porco, que podem estar gestando a próxima pandemia devido ao uso de antibióticos. Conforme o relatório do Programa da ONU para o Meio Ambiente de 2017, a aplicação desenfreada de antimicrobianos na agropecuária, que responde por cerca de 70% do uso global do medicamento, libera resíduos na natureza e favorece o surgimento de bactérias super-resistentes em praias e rios e até mesmo em centrais de tratamento de água. Se o uso não for racionalizado logo, infecções bacterianas hoje simples de ser tratadas se tornarão a principal causa de mortes no mundo até 2050. Segundo Tatiana Castro, há muitas iniciativas no país que buscam conscientizar o produtor rural da importância do uso correto de antibióticos. A Rede Sentinela, criada pela Anvisa, é voltada à saúde humana, mas incluiu a indústria agropecuária em seu escopo para dar conta do desafio. Outra proposta promissora é investir em vacinas para animais. “A vacina não está relacionada a essa problemática de resistência como o antibiótico”, afirma a microbiologista. No passado, a vacinação de rebanhos livrou o Brasil de zoonoses como a gripe suína comum e a febre aftosa.
Wladimir Alonso acredita também que o país precisa embarcar logo na revolução tecnológica que produz carne à base de plantas e atende a um crescente apelo dos consumidores – o número de vegetarianos no país já chega a 30 milhões. “O comprador vai ser peça-chave na exigência por mudanças pelo seu poder de escolha. Ficará cada vez mais difícil para a indústria ocultar do cidadão práticas que a maioria não toleraria se as conhecesse”, explica. Nesta pandemia, uma ida ao supermercado virou uma ação em prol da saúde única e da sobrevivência.
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