Tive a oportunidade de assistir ao filme “To the Bone” (“O Mínimo Para Viver”, produção da Netflix) no dia da estreia, 14 de julho. A pedido do MdeMulher, irei compartilhar as minhas impressões, mas não se preocupe: nada de spoilers!
A história gira em torno de uma moça de 20 anos (Ellen, vivida por Lily Collins) que já passou por várias internações por conta de um transtorno alimentar de longa data: anorexia nervosa. No início do filme, a família investe em uma nova tentativa (e novo internamento), desta vez sob a supervisão de um médico pouco ortodoxo que não segue o protocolo padrão, interpretado por Keanu Reeves. Boa parte da narrativa, então, se desenvolve dentro de uma clínica para tratamento de distúrbios alimentares, onde são apresentados novos personagens com diferentes problemas (bulimia nervosa e compulsão).
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Devo dizer que meu sentimento ao fim do filme foi de alívio, pois assim que vi o trailer na Netflix, meu maior medo era a romantização da doença. Ou pior: tutorial de manutenção do problema. Filmes sobre transtornos alimentares são facas de dois gumes, pois ao mesmo tempo que alertam a respeito de doenças devastadoras, também mostram ao público exatamente como elas se desenvolvem e mantêm. Não foi o que aconteceu.
Já assisti a uma vasta gama de filmes, séries e novelas a respeito da anorexia. E sei perfeitamente bem que muitas pessoas que hoje sofrem com o problema aprenderam a ficar doentes a partir desses mesmos filmes, séries e novelas. Muitas produções destinadas ao público adolescente dão verdadeiras aulas de como desenvolver um transtorno e, além de tudo, mostram o problema acontecendo com atrizes lindíssimas que não sofrem prejuízo algum além de sofrer ocasionais desmaios nos braços de algum galã teen bonitão. Diante dessa maneira de retratar, ter um transtorno alimentar parece até vantagem.
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Felizmente, a representação glamourizada não ocorre neste filme. Todo o ônus é mostrado de maneira direta e honesta: lanugo (uma penugem parecida com barba de milho, que reveste o corpo das pessoas anoréxicas – uma adaptação do corpo à extrema privação, para controlar a temperatura), noites em claro para corridas ou intensas séries de abdominais, conflitos familiares, incompreensão dos que estão em volta, isolamento, interrupção dos estudos, ausência de menstruação, dificuldade cognitiva, desmaios que fazem a pessoa se machucar para valer, dilemas insuportáveis por causa dos mais simples alimentos, obsessão por calorias, profundo dano e risco ao organismo.
Ou seja: a anorexia nervosa não é um “estilo de vida”. É uma doença que compromete severamente a rotina do indivíduo, e com altas taxas de letalidade. Lado a lado com a depressão clínica, a anorexia nervosa é um transtorno mental que mata boa parte dos acometidos.
A meu ver, o assunto foi bem conduzido porque não funciona como manual passo a passo. Quando a moça sobe na balança, as reações dos familiares ou da enfermeira tornam nítido para o espectador que ela está perdendo peso progressivamente. Mas em momento algum números são mencionados. Em certo ponto do filme a enfermeira da clínica diz conhecer todos os “truques” empregados pelos pacientes para não ganhar peso. Mas em momento algum existe explicação sobre quais são e como são feitos. Considero uma escolha bastante responsável por parte dos roteiristas. Ninguém aprende a ficar doente assistindo ao filme.
Também considero positivo o fato de o filme romper com os clichês mais comuns dos filmes sobre anorexia, que normalmente retratam a vida de ginastas, modelos e bailarinas que desenvolvem uma obsessão pela magreza para serem reconhecidas e valorizadas. São muito comuns os filmes que mostram que o transtorno alimentar começa a partir de um comentário de um treinador ou professor de dança (“Se você não perder peso, não poderá participar do próximo espetáculo/campeonato”). Transtornos alimentares restritivos são assustadoramente comuns nesses meios e situações assim de fato acontecem. Mas não é só isso.
Anorexia nervosa não é doença exclusiva de adolescente branca de classe média que quer se sair bem na apresentação de ballet. É um problema muito mais complexo e mais vasto.
E é isso que o filme mostra: Nem todas as pessoas que têm um transtorno alimentar têm um peso baixíssimo que faça o saltar os ossos. Algumas delas são gordas. Pode acontecer com pessoas de todas as idades e também entre os homens. Existem inúmeros padrões e nem todos os quadros são “clássicos” perfeitamente documentados no DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais).
Transtornos alimentares são dolorosos rituais particulares que para muitos não têm sentido, mas para a pessoa que sofre criam uma ilusão de ordem no caos da vida.
O filme aborda de maneira sensível e delicada o grande mistério dos transtornos da oralidade. Um tema vastamente estudado e que intriga médicos, psicanalistas, psicólogos, pesquisadores e escritores há séculos: a angústia do corpo infantil que repentinamente se torna indômito, as idiossincrasias da relação mãe e filha, o valor simbólico de recusar o alimento, o definhar, a fome em todos os seus aspectos, o flerte com a dor e a morte, as famílias disfuncionais, a agonia de desejar e não poder ter. O protesto silencioso daqueles que transformam o corpo no palco das suas angústias.
Outro fato que chamou fortemente a minha atenção foi o nome escolhido para a protagonista: Ellen.
Não sei se é coincidência, mas o nome faz referência a um caso clássico da fenomenologia clínica: a trágica história de Ellen West (1888-1921), paciente austríaca do Dr. Ludwig Binswanger que possuía autenticidade e paixão pela vida incompatíveis com os valores conservadores de sua época. Ellen West desenvolveu um grave quadro de transtorno alimentar, desconectou da vida a olhos vistos e cometeu suicídio aos 33 anos – uma das inúmeras vítimas da doença que infelizmente escapou das mãos de todos os que tentaram salvá-la e não pôde ser ajudada.
O filme faz apologia aos transtornos alimentares? Assisti-lo pode ser perigoso?
Acredito que não haja resposta única. Depende de quem assiste. Depende do repertório de experiências de vida, da suscetibilidade, se a pessoa tem vivência com algum tipo de transtorno mental. Nunca deve ser descartada a hipótese das cenas do filme “engatilharem” sentimentos desconfortáveis. A produção pode ser, sim, desconcertante e inadequada para alguns.
Eu apreciei o filme, e é sem dúvidas uma das melhores produções sobre o tema. É muito difícil abordar a anorexia nervosa sem glamourizar ou romantizar, porque a nossa sociedade tem em alta conta valores como autocontrole e disciplina. Anorexia é o epítome do autocontrole e da disciplina. Não é fácil tratar o tema de modo lúcido, colocando cada coisa no seu lugar e deixando claro ao público que se trata de uma doença, não uma “escolha”.
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Levando em conta o tamanho do desafio, considero que ele foi cumprido da melhor maneira possível em “To the Bone”.