A pobreza é um fenômeno com muitas facetas, mas reconhecer que ela possui um recorte de gênero é um ponto estratégico para combatê-la. É por isso que muitas pesquisadoras (e reforço, as feministas) alertam sobre o aumento da feminização da pobreza, comprovando que as mulheres ao redor do mundo se mantêm sistematicamente mais pobres que o homens.
No Brasil, assim como em todos os países da América Latina, essa é uma realidade particularmente complexa, pois hoje vivemos o cenário de um desmonte de políticas para mulheres, refletindo nos resultados da pesquisa PNAD Covid-19, que comprova que as mulheres perderam 25% mais seus empregos do que os homens durante a pandemia. Se todas essas desigualdades são acompanhadas de pobrezas visíveis e amplamente documentadas, existe uma realidade também disseminada, mas muito menos divulgada: a pobreza menstrual.
O termo se refere à falta de acesso que pessoas em situação de vulnerabilidade social enfrentam durante sua menstruação. Mas não se trata apenas da falta de dinheiro para comprar absorventes, mas também de direitos básicos como produtos de higiene, educação sexual e em proteção, como água limpa e um banheiro com privacidade, fatores que ainda são privilégios para muitas pessoas – ainda que a Constituição de 1988 garanta saúde como direito de todos e determine o dever do Estado na garantia de políticas sociais. Segundo a ONG Trata Brasil, 1,6 milhões de pessoas não têm banheiro em casa, 15 milhões não recebem água tratada e 26,9 milhões moram em lugares sem esgoto.
A pobreza menstrual é um fator invisível, mas é sobretudo invisibilizado por se tratar de uma questão de mulheres. A Organização das Nações Unidas (ONU) reconheceu, em 2014, no Dia Internacional de Luta das Mulheres, que o direito à higiene menstrual é uma questão de saúde pública e de direitos humanos; consistindo na garantia ao acesso à água, recursos básicos de higiene e saneamento para que mulheres possam ter saúde durante seu período menstrual. Isso significa ter água limpa e disponível, sanitários seguros com água que permita a higiene menstrual e acesso a absorventes ou coletores menstruais. Para a ONU, quando tais condições estão ausentes, muitos direitos são violados, sobretudo a dignidade da pessoa humana.
No Brasil, o problema da pobreza menstrual é agravado por outras situações de pobreza. O simples custo dos produtos de higiene pessoal já exclui muitas pessoas: estima-se que 23% das meninas entre 15 a 17 anos não têm condições financeiras para adquirir produtos seguros para usar durante a menstruação. Para quem não pode arcar com esses gastos, o que resta é recorrer a métodos inseguros para conter o próprio sangue, como folhas de jornal, trapos, papelão, papel higiênico. Além disso, a vida nas grandes cidades brasileiras exacerba o problema. Mesmo em São Paulo, cidade mais rica do país, ainda não atingimos o saneamento universal. Em cidades como Belém, no Pará, quase 30% da população não têm acesso à água potável, e mais de 80% não recebe atendimento de coleta de esgoto.
As mesmas pessoas que têm pouco acesso à infraestrutura básica também são aquelas que moram distante dos centros das cidades, onde a oferta de empregos costuma ser concentrada. Isso significa que são justamente as pessoas com pior acesso à saneamento básico que enfrentam os maiores deslocamentos para trabalhar, o que torna mais complicada a manutenção da higiene pessoal ao longo de uma jornada de trabalho intercalada por longas horas no transporte coletivo. Sabemos também que a população preta e parda é a maioria nas favelas e periferias brasileiras, o que significa que o problema da pobreza menstrual também é atravessado pelo racismo estrutural.
Apesar do tamanho desses desafios, muito pode ser feito no combate à pobreza menstrual e à pobreza das mulheres, começando pelo primeiro passo: reconhecer o problema. Em segundo lugar, os preços dos produtos de higiene menstrual precisam ser menores. Para isso, é urgente discutirmos a justiça tributária, ainda mais neste momento em que se apresentam propostas de Reforma Tributária no Governo Federal. Um dos princípios que norteia a forma como o Estado pode cobrar impostos, é o da isonomia ou igualdade material. Entretanto, mais da metade da população paga todos os meses ao longo de seus ciclos menstruais cerca de 35% de imposto sob o preço dos absorventes. Apesar de ser um item essencial para a higiene e saúde das mulheres, os absorventes não são isentos de tributos, e a isenção determinada pelo Governo Federal da taxa do IPI, o preço do absorvente ainda é incidindo pelo PIS/Cofins e o ICMS. O alto custo somado à alta taxa tributária acabam por tornar os absorventes em um bem de luxo, em vez de um item essencial para muitas mulheres.
Essas questões refletem como as estruturas institucionais do nosso país excluem as mulheres dos seus espaços. A feminização da pobreza é resultado de um projeto econômico que contribui com o empobrecimento das mulheres, e a falsa simetria entre homens e mulheres é resultado de um processo histórico da exclusão feminina, ao passo que o capitalismo só reforça estigmas e estereótipos de feminilidade por meio da sociedade de consumo. Garantir um mecanismo de isenção tributária para os absorventes permite que o Estado libere os encargos de bens essenciais e assim garanta a redução do preço final do produto. Por esse motivo é preciso lutar para que a nossa legislação reconheça a necessidade de uma reformulação tributária também pautada pelas questões de gênero, ao mesmo tempo que garanta a distribuição de absorventes através da rede pública de saúde. São justiças sociais necessárias para minimizar as desigualdades entre homens e mulheres.
Além das medidas tributárias, o combate à pobreza menstrual nos obriga a repensar os problemas estruturais das cidades brasileiras. Nenhum deles é novo; o problema da concentração dos empregos em centros gentrificados, com boa parte da mão de obra morando distante do local de trabalho, dependendo de infraestruturas de transporte público insuficientes, não é nenhuma novidade. Que o direito à cidade tem sido facultado a quem pode adquiri-lo também não é novidade. O que a pobreza menstrual escancara é a urgência de um olhar feminista para o urbanismo e a economia, e que esses não são problemas menores que os demais; mas tão urgentes e prioritários quanto todos os outros.
*Vivi Mendes, feminista, advogada criminalista e corinthiana sofredora. Idealizadora da campanha Fluxo Solidário, de combate à pobreza menstrual e a desigualdade de gênero. Fez parte da Secretaria de Políticas Municipais para Mulheres de São Paulo entre 2013 e 2016. Ig e twitter @vivimendes_sp
O que falta para termos mais mulheres eleitas na política