Ao participar de congressos médicos, o obstetra Luiz Alberto Ferriani, diretor clínico da Maternidade Sinhá Junqueira, em Ribeirão Preto (SP), ficava envergonhado toda vez que se anunciava o ranking dos países com maior incidência de partos cirúrgicos, elaborado pela Organização Mundial da Saúde (OMS): o Brasil figura entre os campeões mundiais de cesáreas. Em 2010, liderava com 43%, seguido do Irã e da República Dominicana, empatados em segundo lugar com 41,9%. Em 2016, nosso índice subiu para 55,6%, mas a República Dominicana assumiu a dianteira, com 56,4%. Nas maternidades privadas brasileiras, os números são ainda mais elevados, segundo dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS): 85% dos nascimentos ocorrem por meio de cirurgia.
De acordo com a OMS, essa deveria ser a porcentagem de partos vaginais. “Nas últimas décadas, difundiu-se nas escolas médicas e nas famílias a ideia de que a cesárea é melhor do que o parto normal, o que não traduz a realidade”, afirma Ferriani. A cirurgia pode trazer complicações para a mãe e o bebê: triplica o risco de morte materna e aumenta em 120 vezes a probabilidade de problemas respiratórios para o recém-nascido. Portanto, deve ficar restrita aos casos em que há indicação (sofrimento fetal, descolamento prematuro da placenta ou placenta prévia, bebê na posição sentada, desproporção entre a cabeça da criança e a bacia da mãe e urgências como crise de pressão alta).
No entanto, tornou-se comum a cirurgia agendada por conveniência para o médico (que resolve tudo em 50 minutos; não precisa ficar horas acompanhando o trabalho de parto) e para a mãe, que pode escolher a data do nascimento. “Todo o sistema se acomodou até que o Ministério Público pediu para a ANS implementar ações de mudança”, acrescenta o obstetra.
Em abril de 2016, o Ministério da Saúde criou um protocolo definindo as melhores práticas para o parto com o objetivo de reduzir esses índices. A ANS, por sua vez, lançou resoluções em fevereiro e julho para incentivar o parto normal. Esta última obrigou as operadoras a divulgar os percentuais de cesáreas e partos normais por hospital e por médico e os obstetras a utilizar o partograma, documento em que se registra tudo o que acontece durante o trabalho de parto.
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Porém, a iniciativa com resultado mais efetivo foi um projeto piloto envolvendo 35 hospitais, 31 privados e quatro públicos, com altas taxas de cesarianas. O Projeto Parto Adequado foi criado pela ANS em 2015, em parceria com o Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, e o Institute for Healthcare Improvement (IHI), organização sem fins lucrativos americana que desenvolve melhorias na área de saúde.
“O projeto não indica cesárea fora do tempo nem insiste em parto vaginal a todo custo”, esclarece a obstetra Rita Sanchez, coordenadora médica da Maternidade do Hospital Albert Einstein e líder clínica do projeto. “Adequado é o melhor parto para aquela mulher naquele momento.” Um dos principais focos é reorganizar o modelo de assistência à gestante, não mais centralizado na figura do obstetra, mas em uma equipe hospitalar que inclui médico plantonista e enfermeira obstetriz, encarregada de acompanhar todo o trabalho de parto.
“O médico é formado para enxergar patologias e intervir; já a enfermeira para oferecer cuidados e chamar o médico quando algo está errado”, diz Sanchez, que visitou as 35 maternidades participantes para orientar a implantação, sugerindo, inclusive, alterações no espaço físico, e promoveu treinamento para as equipes de saúde. “Alguns médicos não faziam parto vaginal desde a residência”, conta. Foi preciso obter apoio de gestores de hospitais, de sociedades médicas e de enfermagem e dos planos de saúde, além de organizar um sistema de coleta de informações para produzir indicadores confiáveis dos resultados obtidos.
Em 18 meses de duração, houve uma redução de mais de 10 mil cesáreas sem indicação clínica; a taxa de partos normais cresceu, em média, 76%; nove hospitais superaram a meta de 40% de partos vaginais; e 14 diminuíram as admissões em UTI neonatal. No total, foram evitadas 400 internações de recém-nascidos por imaturidade respiratória; não se registrou aumento de complicações como morte materna e asfixia fetal. “As parturientes tiveram acompanhante o tempo todo; foram estimuladas a caminhar, o que favorece o trabalho de parto; não usaram soro; puderam se alimentar e escolher em que posição queriam ter o filho, não só na tradicional, deitada”, informa Sanchez.
Também houve diminuição significativa de procedimentos como o corte no períneo (episiotomia). “Nunca se alcançou um sucesso tão grande em medidas para reduzir cesáreas”, disse Martha Oliveira, diretora de Desenvolvimento Setorial da ANS, ao anunciar, em novembro, a ampliação do projeto para 150 hospitais a partir de fevereiro. “As mudanças implementadas aumentaram de forma segura o percentual de partos vaginais, dando mais confiança e proporcionando um atendimento de mais qualidade às gestantes.”
Uma pesquisa financiada pela Fundação Bill e Melinda Gates, com a duração de quatro anos, pretende conhecer a fundo esses efeitos. “Faremos entrevistas com as equipes de saúde, gestores e mães para saber o que foi determinante para a mudança ocorrer e o que será necessário fazer para sustentar os resultados”, conta a enfermeira Jacqueline Alves Torres, coordenadora de Indução de Qualidade da ANS e pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio. Também se pretende criar um selo de qualidade para identificar os hospitais participantes.
Uma das maternidades a aderir foi a Sinhá Junqueira, mesmo sendo referência regional para gravidez de alto risco, o que, por si só, já aumenta a incidência de cesáreas. Para isso, os gestores mexeram em um tripé. Primeiro, cuidaram da adequação e engajamento do corpo clínico e dos colaboradores, inclusive administrativos. “Foi preciso quebrar barreiras, vencer a resistência de uma geração criada dentro do conceito de que a cesárea é melhor”, esclarece Ferriani.
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Intensificou-se o programa de educação continuada dos médicos em reuniões mensais e treinamentos, visando ampliar a eficiência na realização do parto normal. Incorporou-se a enfermeira obstetriz à equipe multidisciplinar, composta de obstetra, anestesista e pediatra, que faz plantões 24 horas por dia. E foram revistas todas as práticas relacionadas ao atendimento das gestantes e dos bebês, do pré-natal ao pós-parto.
O segundo ponto foi a reestruturação física da maternidade. O centro obstétrico está sendo ampliado e adequado para ter salas exclusivas para parto normal, com espaço para a gestante caminhar e métodos alternativos para alívio da dor, como bola, ducha, banheira e acompanhamento de enfermeira, além dos recursos medicamentosos, como analgesia de parto, a que toda gestante tem direito. O terceiro item trabalhado foram as gestantes. “Existe muito tabu. A paciente tem medo. Mulher bem informada prefere o parto vaginal”, diz o obstetra.
O hospital remodelou o curso de gestantes e criou uma oficina para as futuras mamães no último mês de gravidez conhecerem a maternidade e a equipe de parto. “Só vamos inverter essa alta incidência com educação. Precisamos de campanhas nacionais semelhantes às do aleitamento materno para levar essa mensagem à sociedade.”
Os esforços estão produzindo resultado: no grupo das mulheres na primeira gravidez ou sem histórico de cesárea anterior, que constitui o principal alvo do projeto, os índices de partos vaginais da Maternidade Sinhá Junqueira dobraram; já entre as gestantes em geral, o aumento foi de 15%. O ingresso em UTI neonatal diminuiu. “Conseguimos o engajamento da equipe, incorporamos metodologias, trocamos experiências com outras instituições e consolidamos o apoio das principais operadoras de planos de saúde”, avalia o obstetra Jorge Kunzle, diretor técnico da maternidade. “É um trabalho longo, mas bem encaminhado. Tivemos ganhos expressivos. A determinação em participar da fase 2 é uma forma de não relaxar e afastar o risco de voltar aos números antigos.”
“Nas últimas décadas, difundiu-se a ideia de que a cesárea é melhor do que o parto normal, o que não traduz a realidade”
Luiz alberto ferriani, obstetra
Fizeram o meu primeiro parto. O segundo, eu fiz
“Quando engravidei, avisei a médica, que me acompanhava havia muito tempo, que eu queria parto normal. Ao completar 40 semanas de gestação, ela disse que daria uma ajudinha para o bebê nascer. Durante o exame de toque, fez uma manobra que causou dor enorme e entrei em trabalho de parto. Fiquei 11 horas deitada em uma maca. Apesar da dor, as contrações estavam fora de ritmo e eu não tinha dilatação. Na madrugada, ela me pediu para fazer força sem explicar como. Irritada, determinou: ‘A gente não vai conseguir. Terá que ser cesárea’. Assustada e vulnerável, aceitei”, conta a professora Izabel Rolim de Araujo Perrotti, 29 anos, dois filhos, um de 4 anos e outro de 4 meses.
“Na segunda gravidez, resolvi me informar mais sobre parto vaginal. Sabia que era o melhor para o bebê. Percebi que muita coisa no meu primeiro parto estava errada. E que um trabalho de parto nem sempre obedece àquela sequência de novela: rompe bolsa, corre para o hospital e o bebê nasce. Pode demorar horas. Com expectativas mais realistas, passei a procurar médicos que realizavam parto normal. Queria ter certeza de que meu obstetra pensava como eu – aceitaria a cirurgia se fosse mesmo necessária, mas pretendia participar das decisões. Fizeram meu primeiro parto. O segundo foi diferente: eu fiz, com o apoio do meu marido, do meu médico e de sua equipe. Passei a véspera tendo contrações de preparação. Fui dormir e acordei à 1 hora da manhã com dores mais fortes.
“Fiquei andando pela casa, intercalando exercícios na bola com banhos de chuveiro. Às 6 horas, fui para o hospital. Tinha 3 centímetros de dilatação e o bebê estava bem. Como eu morava perto, eles me orientaram a voltar para casa e continuar os exercícios e banhos. Às 16 horas, retornei ao hospital, com 4 centímetros de dilatação. A instrumentista, que é doula, passou duas horas andando comigo pelos corredores. Já internada, fiquei mais uma hora no chuveiro. Depois sentei na bola de pilates. As contrações aumentaram muito. Com 7 ou 8 centímetros de dilatação, pedi analgesia. Só que a anestesia não pegou. Tentaram de novo e não resolveu.
“Queria desistir, mas a equipe me incentivou dizendo que estava indo muito bem. Havia duas enfermeiras obstétricas, uma do hospital e outra do médico, a doula e o anestesista. O obstetra só chegou no final. Meu marido ficou a meu lado o tempo todo. Aumentaram a dose do analgésico, e as dores aliviaram um pouco. Relaxei e a bolsa estourou. Fiquei em pé ao lado da cama. Quando vinha a contração, eu agachava e fazia força como a enfermeira ensinara. Assim que a cabecinha do bebê chegou à vagina, dei entrada no centro obstétrico e logo ele nasceu. Foram 20 horas de trabalho de parto, mas tudo aconteceu como eu queria. Sem intervenções desnecessárias e em segurança.”
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