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Projeto piloto reduz em 10 mil o número de cesáreas no país

Iniciativa mostrou que é possível diminuir os nascimentos cirúrgicos no país e ainda proteger a saúde da mãe e do bebê

Por Cristina Nabuco, Guta Nascimento
Atualizado em 24 fev 2017, 08h40 - Publicado em 24 fev 2017, 08h40
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  • Ao participar de congressos médicos, o obstetra Luiz Alberto Ferriani, diretor clínico da Maternidade Sinhá Junqueira, em Ribeirão Preto (SP), ficava envergonhado toda vez que se anunciava o ranking dos países com maior incidência de partos cirúrgicos, elaborado pela Organização Mundial da Saúde (OMS): o Brasil figura entre os campeões mundiais de cesáreas. Em 2010, liderava com 43%, seguido do Irã e da República Dominicana, empatados em segundo lugar com 41,9%. Em 2016, nosso índice subiu para 55,6%, mas a República Dominicana assumiu a dianteira, com 56,4%. Nas maternidades privadas brasileiras, os números são ainda mais elevados, segundo dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS): 85% dos nascimentos ocorrem por meio de cirurgia.

    De acordo com a OMS, essa deveria ser a porcentagem de partos vaginais. “Nas últimas décadas, difundiu-se nas escolas médicas e nas famílias a ideia de que a cesárea é melhor do que o parto normal, o que não traduz a realidade”, afirma Ferriani. A cirurgia pode trazer complicações para a mãe e o bebê: triplica o risco de morte materna e aumenta em 120 vezes a probabilidade de problemas respiratórios para o recém-nascido. Portanto, deve ficar restrita aos casos em que há indicação (sofrimento fetal, descolamento prematuro da placenta ou placenta prévia, bebê na posição sentada, desproporção entre a cabeça da criança e a bacia da mãe e urgências como crise de pressão alta).

    No entanto, tornou-se comum a cirurgia agendada por conveniência para o médico (que resolve tudo em 50 minutos; não precisa ficar horas acompanhando o trabalho de parto) e para a mãe, que pode escolher a data do nascimento. “Todo o sistema se acomodou até que o Ministério Público pediu para a ANS implementar ações de mudança”, acrescenta o obstetra.

    Em abril de 2016, o Ministério da Saúde criou um protocolo definindo as melhores práticas para o parto com o objetivo de reduzir esses índices. A ANS, por sua vez, lançou resoluções em fevereiro e julho para incentivar o parto normal. Esta última obrigou as operadoras a divulgar os percentuais de cesáreas e partos normais por hospital e por médico e os obstetras a utilizar o partograma, documento em que se registra tudo o que acontece durante o trabalho de parto.

    Leia também: Mais partos normais no Brasil: nova regra para reduzir cesáreas no Brasil começa a valer

    Porém, a iniciativa com resultado mais efetivo foi um projeto piloto envolvendo 35 hospitais, 31 privados e quatro públicos, com altas taxas de cesarianas. O Projeto Parto Adequado foi criado pela ANS em 2015, em parceria com o Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, e o Institute for Healthcare Improvement (IHI), organização sem fins lucrativos americana que desenvolve melhorias na área de saúde.

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    O projeto não indica cesárea fora do tempo nem insiste em parto vaginal a todo custo”, esclarece a obstetra Rita Sanchez, coordenadora médica da Maternidade do Hospital Albert Einstein e líder clínica do projeto. “Adequado é o melhor parto para aquela mulher naquele momento.” Um dos principais focos é reorganizar o modelo de assistência à gestante, não mais centralizado na figura do obstetra, mas em uma equipe hospitalar que inclui médico plantonista e enfermeira obstetriz, encarregada de acompanhar todo o trabalho de parto.

    “O médico é formado para enxergar patologias e intervir; já a enfermeira para oferecer cuidados e chamar o médico quando algo está errado”, diz Sanchez, que visitou as 35 maternidades participantes para orientar a implantação, sugerindo, inclusive, alterações no espaço físico, e promoveu treinamento para as equipes de saúde. “Alguns médicos não faziam parto vaginal desde a residência”, conta. Foi preciso obter apoio de gestores de hospitais, de sociedades médicas e de enfermagem e dos planos de saúde, além de organizar um sistema de coleta de informações para produzir indicadores confiáveis dos resultados obtidos.

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    A deusa grega Gaia, ou Mãe-Terra, em seu ciclo de fertilidade, parto
    e esterilidade, inspira este trabalho da fotógrafa inglesa Liza Campion (Ilustração Liza Campion/ CLAUDIA)

    Em 18 meses de duração, houve uma redução de mais de 10 mil cesáreas sem indicação clínica; a taxa de partos normais cresceu, em média, 76%; nove hospitais superaram a meta de 40% de partos vaginais; e 14 diminuíram as admissões em UTI neonatal. No total, foram evitadas 400 internações de recém-nascidos por imaturidade respiratória; não se registrou aumento de complicações como morte materna e asfixia fetal. “As parturientes tiveram acompanhante o tempo todo; foram estimuladas a caminhar, o que favorece o trabalho de parto; não usaram soro; puderam se alimentar e escolher em que posição queriam ter o filho, não só na tradicional, deitada”, informa Sanchez.

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    Também houve diminuição significativa de procedimentos como o corte no períneo (episiotomia). “Nunca se alcançou um sucesso tão grande em medidas para reduzir cesáreas”, disse Martha Oliveira, diretora de Desenvolvimento Setorial da ANS, ao anunciar, em novembro, a ampliação do projeto para 150 hospitais a partir de fevereiro. “As mudanças implementadas aumentaram de forma segura o percentual de partos vaginais, dando mais confiança e proporcionando um atendimento de mais qualidade às gestantes.”

    Uma pesquisa financiada pela Fundação Bill e Melinda Gates, com a duração de quatro anos, pretende conhecer a fundo esses efeitos. “Faremos entrevistas com as equipes de saúde, gestores e mães para saber o que foi determinante para a mudança ocorrer e o que será necessário fazer para sustentar os resultados”, conta a enfermeira Jacqueline Alves Torres, coordenadora de Indução de Qualidade da ANS e pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio. Também se pretende criar um selo de qualidade para identificar os hospitais participantes.

    Uma das maternidades a aderir foi a Sinhá Junqueira, mesmo sendo referência regional para gravidez de alto risco, o que, por si só, já aumenta a incidência de cesáreas. Para isso, os gestores mexeram em um tripé. Primeiro, cuidaram da adequação e engajamento do corpo clínico e dos colaboradores, inclusive administrativos. “Foi preciso quebrar barreiras, vencer a resistência de uma geração criada dentro do conceito de que a cesárea é melhor”, esclarece Ferriani.

    Leia também: Os benefícios do parto normal

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    Intensificou-se o programa de educação continuada dos médicos em reuniões mensais e treinamentos, visando ampliar a eficiência na realização do parto normal. Incorporou-se a enfermeira obstetriz à equipe multidisciplinar, composta de obstetra, anestesista e pediatra, que faz plantões 24 horas por dia. E foram revistas todas as práticas relacionadas ao atendimento das gestantes e dos bebês, do pré-natal ao pós-parto.

    O segundo ponto foi a reestruturação física da maternidade. O centro obstétrico está sendo ampliado e adequado para ter salas exclusivas para parto normal, com espaço para a gestante caminhar e métodos alternativos para alívio da dor, como bola, ducha, banheira e acompanhamento de enfermeira, além dos recursos medicamentosos, como analgesia de parto, a que toda gestante tem direito. O terceiro item trabalhado foram as gestantes. “Existe muito tabu. A paciente tem medo. Mulher bem informada prefere o parto vaginal”, diz o obstetra.

    O hospital remodelou o curso de gestantes e criou uma oficina para as futuras mamães no último mês de gravidez conhecerem a maternidade e a equipe de parto. “Só vamos inverter essa alta incidência com educação. Precisamos de campanhas nacionais semelhantes às do aleitamento materno para levar essa mensagem à sociedade.”

    Os esforços estão produzindo resultado: no grupo das mulheres na primeira gravidez ou sem histórico de cesárea anterior, que constitui o principal alvo do projeto, os índices de partos vaginais da Maternidade Sinhá Junqueira dobraram; já entre as gestantes em geral, o aumento foi de 15%. O ingresso em UTI neonatal diminuiu. “Conseguimos o engajamento da equipe, incorporamos metodologias, trocamos experiências com outras instituições e consolidamos o apoio das principais operadoras de planos de saúde”, avalia o obstetra Jorge Kunzle, diretor técnico da maternidade. “É um trabalho longo, mas bem encaminhado. Tivemos ganhos expressivos. A determinação em participar da fase 2 é uma forma de não relaxar e afastar o risco de voltar aos números antigos.”

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    “Nas últimas décadas, difundiu-se a ideia de que a cesárea é melhor do que o parto normal, o que não traduz a realidade”

    Luiz alberto ferriani, obstetra

    Fizeram o meu primeiro parto. O segundo, eu fiz

    “Quando engravidei, avisei a médica, que me acompanhava havia muito tempo, que eu queria parto normal. Ao completar 40 semanas de gestação, ela disse que daria uma ajudinha para o bebê nascer. Durante o exame de toque, fez uma manobra que causou dor enorme e entrei em trabalho de parto. Fiquei 11 horas deitada em uma maca. Apesar da dor, as contrações estavam fora de ritmo e eu não tinha dilatação. Na madrugada, ela me pediu para fazer força sem explicar como. Irritada, determinou: ‘A gente não vai conseguir. Terá que ser cesárea’. Assustada e vulnerável, aceitei”, conta a professora Izabel Rolim de Araujo Perrotti, 29 anos, dois filhos, um de 4 anos e outro de 4 meses.

    “Na segunda gravidez, resolvi me informar mais sobre parto vaginal. Sabia que era o melhor para o bebê. Percebi que muita coisa no meu primeiro parto estava errada. E que um trabalho de parto nem sempre obedece àquela sequência de novela: rompe bolsa, corre para o hospital e o bebê nasce. Pode demorar horas. Com expectativas mais realistas, passei a procurar médicos que realizavam parto normal. Queria ter certeza de que meu obstetra pensava como eu – aceitaria a cirurgia se fosse mesmo necessária, mas pretendia participar das decisões. Fizeram meu primeiro parto. O segundo foi diferente: eu fiz, com o apoio do meu marido, do meu médico e de sua equipe. Passei a véspera tendo contrações de preparação. Fui dormir e acordei à 1 hora da manhã com dores mais fortes.

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    “Fiquei andando pela casa, intercalando exercícios na bola com banhos de chuveiro. Às 6 horas, fui para o hospital. Tinha 3 centímetros de dilatação e o bebê estava bem. Como eu morava perto, eles me orientaram a voltar para casa e continuar os exercícios e banhos. Às 16 horas, retornei ao hospital, com 4 centímetros de dilatação. A instrumentista, que é doula, passou duas horas andando comigo pelos corredores. Já internada, fiquei mais uma hora no chuveiro. Depois sentei na bola de pilates. As contrações aumentaram muito. Com 7 ou 8 centímetros de dilatação, pedi analgesia. Só que a anestesia não pegou. Tentaram de novo e não resolveu.

    Queria desistir, mas a equipe me incentivou dizendo que estava indo muito bem. Havia duas enfermeiras obstétricas, uma do hospital e outra do médico, a doula e o anestesista. O obstetra só chegou no final. Meu marido ficou a meu lado o tempo todo. Aumentaram a dose do analgésico, e as dores aliviaram um pouco. Relaxei e a bolsa estourou. Fiquei em pé ao lado da cama. Quando vinha a contração, eu agachava e fazia força como a enfermeira ensinara. Assim que a cabecinha do bebê chegou à vagina, dei entrada no centro obstétrico e logo ele nasceu. Foram 20 horas de trabalho de parto, mas tudo aconteceu como eu queria. Sem intervenções desnecessárias e em segurança.”

    Leia também: Medo do parto: como lidar com isto?

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