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Perda gestacional: A dor invisível do luto perinatal

Apesar de serem registrados mais de 5 mil óbitos neonatais no Brasil, o luto da perda ainda é descredibilizado no círculo mais íntimo da família

Por Fernanda Bassette
Atualizado em 24 jul 2023, 17h42 - Publicado em 24 jul 2023, 11h50
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  • Lidar com a morte e com o luto é uma dificuldade social que todos nós enfrentamos em algum ponto, após a perda de um parente ou amigo. Porém, perder alguém mais velho faz parte do ciclo. O problema é que a natureza nem sempre segue o tempo esperado e muitas mulheres precisam lidar com a morte em um momento em que deveriam estar celebrando a vida — durante a gravidez ou logo após o nascimento do bebê. A perda gestacional é um processo muito mais complexo, confuso e com menor validação social.

    “O luto perinatal, de uma forma geral, é um luto não reconhecido pela sociedade”, afirma Damiana Angrimani, psicóloga coordenadora do Instituto do Luto Parental, que acolhe famílias enlutadas pela perda de um filho especialmente no período gestacional. Ela começou esse trabalho após passar por uma perda nas primeiras semanas de gravidez e ter os seus sentimentos relativizados.

    Se considerarmos as perdas nas gestações em estágios iniciais, isso se agrava. A invisibilidade da dor do luto nesses casos é ainda mais concreta e escancarada, como se aquela criança não tivesse existido, por não ter um corpo para ser velado e/ou cremado. “Um bebê que morre no fim da gestação ou após o parto tem um corpinho formado. É um bebê que ‘existe socialmente’ e pode ser enterrado. Ainda assim, logo as pessoas esquecem. Nas perdas gestacionais, isso é pior porque não existia algo concreto, e as mulheres lutam para que aquele filho não seja considerado lixo hospitalar. Dentro dessa perspectiva, há um silenciamento muito maior, como se essa dor fosse menos difícil”, explica Damiana.

    Segundo Pricila Leite Gomes Raimondi, ginecologista e obstetra, existem nomenclaturas que diferenciam o período da perda. Uma que ocorre com até 12 semanas de gestação, por exemplo, é considerada um abortamento precoce. Quando acontece a partir de 22 semanas de gravidez, é um óbito fetal. Ainda dentro das classificações, se a morte ocorrer com até seis dias de vida, é chamada de mortalidade neonatal precoce; se acontecer com até 27 dias de vida, é a mortalidade neonatal tardia. Há, ainda, a mortalidade perinatal, que acontece entre 28 semanas de gestação e sete dias de vida.

    “Em todos os casos, essas mulheres engravidaram e perderam os seus filhos. E é um problema bastante comum, mas pouco falado, pois a perda é minimizada e as gestações são esquecidas, inclusive pela própria mulher”, comenta a médica. “Elas chegam a ter vergonha de falar sobre isso. Várias vezes, durante as consultas, pergunto se ela já tem filhos e muitas dizem não. É como se elas nunca tivessem engravidado, como se não se sentissem mães”, conta Priscila, que também sofreu uma perda quando estava grávida de gêmeos — um dos bebês continuou se desenvolvendo normalmente e o outro não.

    “É uma sensação muito estranha, entrei em um turbilhão de emoções. Ao mesmo tempo que vivia um luto porque um dos meus filhos tinha morrido, estava feliz porque o outro estava vivo. Com certeza, ter passado por essa experiência me transformou e me fez mudar a forma de lidar com esses casos na prática clínica. Hoje, sei exatamente o sentimento dessas mulheres. A experiência sai dos livros para a vida real”, complementa a obstetra.

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    Dizer aos pais que acabaram de perder um filho em algum momento da gestação ou pós-nascimento palavras como “logo vocês terão outro”, “vocês ainda são novos”, “foi melhor assim”, “vocês nem vão sentir tanto” ou “foi vontade de Deus”, por exemplo, não é saudável e também desmerece todo um sofrimento emocional envolvido na dor dessa perda. Minimizar significa anular as expectativas e desejos que permeavam a chegada dessa criança, muitas vezes, antes mesmo da concepção.

    E isso vale para o pai da criança também. Os sentimentos de fracasso e culpa são comuns, e a dificuldade de saber como se posicionar sendo “pais de um filho morto” não é uma exclusividade da materna. O companheiro (ou companheira), muitas vezes, se coloca como coadjuvante diante da perda e abafa sua dor com a intenção de não aumentar o sofrimento da mulher. No entanto, ele também tinha construído sonhos e planos para esse filho.

    ilustração de perda gestacional
    Anualmente, segundo dados do próprio Ministério, são registrados cerca de 5.500 óbitos fetais de bebês com mais de 500 gramas (acima de 22 semanas de gestação) e com até 27 dias de vida. (Eduardo Pignata/CLAUDIA)

    Falta de acolhimento no luto

    Um dos problemas enfrentados por mulheres que passam por uma perda durante a gestação é a falta de sensibilidade e acolhimento. Muitas das que sofrem um abortamento precoce, por exemplo, são encaminhadas à maternidade para fazer a curetagem do feto e são acomodadas na mesma ala de mulheres que estão prestes a dar à luz ou que acabaram de ganhar seus bebês.

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    O mesmo vale para aquelas que perdem seus bebês em estágios mais avançados e não recebem a atenção adequada diante da dor — uma violência emocional indescritível. Apesar disso, o Ministério da Saúde informou, em nota, que recomenda assistência cautelosa após os casos de abortamento ou óbito fetal: “Assegurar o cuidado e atendimento humanizado às mulheres é prioridade desta gestão. As equipes devem estar preparadas para o acolhimento e suporte necessários”.

    Anualmente, segundo dados do próprio Ministério, são registrados cerca de 5.500 óbitos fetais de bebês com mais de 500 gramas (acima de 22 semanas de gestação) e com até 27 dias de vida. Bebês que morrem antes desse período gestacional são considerados casos de aborto espontâneo e, por isso, não são contabilizados. Porém, estima-se que de 10% a 15% das mulheres sofrerão pelo menos um abortamento espontâneo na vida — o que mostra que a quantidade de famílias que vivenciam esse luto todos os dias é imensa.

    A perda de um filho na gestação ou no nascimento é um acontecimento potencialmente traumático e, por isso, é preciso criar meios de enfrentá-lo e ultrapassá-lo de forma menos difícil. Falar com pessoas que tiveram experiência semelhante, participar de grupos ou buscar ajuda especializada são formas de expressar esses sentimentos e dar vazão a tudo o que envolve essa experiência.

    “A dor do luto não se compara, não tem como dizer que uma mulher sofreu mais ou menos que a outra, porque perdeu seu filho precocemente ou no fim da gestação. São dores diferentes, que precisam ser reconhecidas e respeitadas”, completa Heloísa Salgado, psicóloga também especializada em luto perinatal. É mais que urgente a discussão tomar novas proporções.

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    “SÃO BEBÊS QUE NÃO LEVAMOS PARA CASA”

    Em 2019, a bióloga Natália Mundim Torres, 42 anos, mãe dos gêmeos Beatriz e Fernando, descobriu a segunda gravidez. Embora não planejada, foi recebida com entusiasmo. Tudo ia bem até o ultrassom morfológico, realizado com 23 semanas, apontar que Elis tinha duas anomalias congênitas: mielomeningocele e hérnia diafragmática. Diante do caso, a médica sugeriu à mãe que procurasse um cirurgião neonatal, especializado em procedimentos intrauterinos.

    Havia esperança, mas, durante um novo ultrassom, o especialista identificou outras anomalias típicas de síndromes raras, além de uma cardiopatia. Elis não era elegível para a realização da cirurgia. “Uma mãe e um pai tentam qualquer coisa para salvar seus filhos. Não tivemos acesso à escolha. É como se ela não valesse a pena”, diz.

    A sugestão foi realizar a amniocentese para chegar ao diagnóstico definitivo: síndrome de Patau, caracterizada pela trissomia do cromossomo 13 – uma alteração genética grave, em que a maioria dos bebês não sobrevive mais do que uma semana. Ainda na ocasião, ouviu de uma médica da equipe que “esses são bebês que não levamos para casa”, deixando-a arrasada, mas sem desanimar. “Receber esse diagnóstico foi igual cair num buraco escuro e sem fim. Como aceitar que ela era incompatível à vida se ela vivia e crescia na minha barriga?”

    Natália, então, entrou no difícil embate: manter a gestação ou tentar a interrupção por meio de um processo judicial? Escolheu seguir e curtir cada dia da vida de Elis no seu ventre como se fosse o último. “Procurei me fortalecer e aproveitar porque sabia que não teríamos muito tempo.” Antes de Elis nascer, ela visitou o hospital para fazer um plano de parto e expressou o desejo de ficar com a bebê no colo assim que ela nascesse, sem a necessidade de levá-la para a UTI.

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    Assim foi. Elis nasceu em 16 de janeiro de 2020, na véspera do aniversário de 5 anos dos irmãos, e foi direto para o colo da mãe. Ali, viveu por longos 18 minutos. Além de dificuldades para conseguir se despedir da bebê com calma devido à falta de humanidade na abordagem hospitalar, Natália ainda enfrentou empecilhos para doar o seu leite. Diante disso, se tornou uma voz que luta pelo respeito ao luto. “Elis não está aqui, mas nos deixou muitos ensinamentos. Entre eles, está o trabalho de conscientização.”

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