Pacientes invisíveis: a luta dos cuidadores de idosos com demência
Por trás de pessoas com demência, há seus cuidadores, que sofrem emocional, financeira e clinicamente com o diagnóstico. É hora de olhar para eles
Num turbilhão de amor e tristeza, a filha organiza as caixas de remédios na bancada e pensa na programação do dia: 1. consulta com o geriatra, 2. fazer o almoço, 3. dar banho. Na sala de TV, a mãe olha para a filha. Apesar do sorriso gentil, não reconhece o parentesco. Segundo a Associação Brasileira de Alzheimer, essa é a realidade dos familiares de 1,7 milhão de pessoas com 60 anos ou mais que possuem algum tipo de demência no Brasil. Desses, a doença de Alzheimer corresponde a 55% dos casos.
Com o aumento do contingente de idosos no Brasil, o número de cuidadores de pessoas com senilidade tende a seguir a mesma curva. São rotinas extenuantes — tanto física quanto psicologicamente —, o que torna a discussão acerca de suas necessidades e dificuldades imprescindível.
São os chamados “pacientes invisíveis”: embora não recebam algum diagnóstico direto, essas pessoas sofrem impactos emocionais, financeiros e de saúde, ao mesmo tempo que lidam com o luto do diagnóstico do familiar querido.
Vida de cuidadora
A gerontóloga e influenciadora Claudia Alves Silva (@obomdoalzheimer) é uma das mulheres que teve sua vida virada de cabeça com o diagnóstico de Alzheimer de um parente próximo.
Em 2010, a então corretora de imóveis percebeu que sua mãe, de 70 anos, apresentava sintomas de depressão, levando-a até o neurologista para que pudesse ter um aval clínico.
“Eu não imaginava esse diagnóstico. Para mim, ela estava com depressão e um pouco desligada. Mas, assim que fez os testes neuropsicológicos, o médico matou a charada de que era Alzheimer”. O choque foi imediato. A filha, na época, associava esse mal apenas ao esquecimento extremo, característica que a mãe não demonstrava.
“Apesar de ser filha única, foi uma escolha pessoal cuidar dela. Eu era autônoma e abandonei meu trabalho como corretora de imóveis para ajudá-la. Sou privilegiada porque tenho um marido que podia arcar com os custos, mas perdi completamente minha autonomia financeira”, revela.
Claudia chegou a vender bolinhos fit no Facebook para gerar uma renda extra: “Saía fornada todos os dias, de vez em quando ainda vejo os anúncios”. Para além de trabalhar, também sentia necessidade de estudar para entender melhor o quadro da mãe.
“Eu tinha um plano B. Fiz pedagogia e me encantei por educação especial e gerontologia. Tudo que eu aprendi, eu apliquei com a minha mãe. Hoje ela tem o melhor cuidado possível.”
Apesar do cenário relativamente confortável, a gerontóloga não deixou de passar pelas dificuldades do diagnóstico. Acabou, por exemplo, sem tempo para si mesma.
“Fiquei 10 anos sem fazer mamografia e 6 anos sem ir ao dentista. É uma demanda tão grande de trabalho e de cuidados que você mal tem tempo para você mesmo. Houve inúmeras vezes em que fui dormir sem tomar banho”, revela. Catorze anos após o diagnóstico da mãe, a gerontóloga ainda trata os impactos que a doença teve no seu corpo, como a ansiedade, fibromialgia e insônia.
“Hoje eu tenho cuidadora. Mas, no começo, eu levava ela para qualquer lugar que eu fosse: shopping, consulta, cinema… Com o avanço da doença, ela foi ficando cada vez mais nervosa, então tive que parar, e fiquei muitos anos sem sair de casa”, conta Claudia.
Em 2016, após anos de estudo, ela deu início ao seu perfil no Instagram, intitulado O Bom do Alzheimer (@obomdoalzheimer). Ali, compartilha a sua jornada de conscientização da doença e dicas para auxiliar no dia a dia de quem convive com alguém nessa situação. Ela criou até o seu próprio curso para cuidadores de pessoas com demência, o ‘Método Love-Care’.
“Ela esquece que eu sou a Claudia, filha dela. Mas sente um amor muito grande por mim, e me trata com muito afeto, então, tentei não sofrer com ser esquecida. Eu sei quem ela é, e isso é suficiente”, diz.
Cuidar de idosos: trabalho de mulher
A história de Claudia é semelhante a de muitos familiares — especialmente filhas — que, por escolha ou necessidade, acabam se tornando cuidadores em tempo integral.
De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio Contínua, cerca de 54 milhões de pessoas no Brasil com 14 anos de idade ou mais são responsáveis pelo cuidado de outras pessoas da casa ou parentes. Como tudo que envolve o trabalho de cuidado, as mulheres são as principais envolvidas nesse tipo de ocupação.
A tendência é que esse número, consolidado em 2019, não pare de crescer. Segundo estudo publicado no The Lancet Public Health que analisa 195 países, em 2050, mais de 153 milhões de pessoas poderão ter demência, o que corresponde a um aumento de 96 milhões em comparação ao ano de 2019.
A pesquisa ainda aponta que, somente no Brasil, a previsão é que os números cheguem a 5,6 milhões, um crescimento de mais de 300% em relação à mesma data.
“Um dos principais fatores para o crescimento da incidência de casos de demência é o aumento da expectativa de vida — estamos com um número maior de pessoas envelhecendo. Quanto mais velhos ficamos, maior a chance de ter uma demência”, explica Alessandra Ferrarese, geriatra titulada pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG).
No Brasil, pessoas de 65 anos ou mais já representam 10,9% do total de habitantes, segundo dados do Censo de 2022.
Como cuidar de quem cuida
“Existe uma série de desafios que os cuidadores enfrentam. O primeiro deles é a aceitação, por ser uma doença complexa e que leva muitas perdas para quem está acometido e para a família. Muitos entram em negação”, explica Leandro Minozzo, geriatra especialista no cuidado integral de Alzheimer e autor do Como Cuidar de um Familiar com Alzheimer e Não Adoecer (2022).
Ademais, o médico ainda pontua que os cuidadores podem entrar no campo do luto antecipatório: “Grande parte adquire o chamado ‘estresse do cuidador’, o que pode levar a síndromes de ansiedade, depressão e insônia. A partir do momento que vejo o paciente demencial, surge também outra pessoa em processo de adoecimento”.
Entre os maiores sintomas que acometem os cuidadores está a perda de si mesmo. “Ele apoia tanto o outro que passa a desenvolver um imenso desgaste psíquico, em que deixa de investir sua pulsão de vida em si mesmo, para doá-la ao outro. Com o tempo, isso gera adoecimento”, analisa Raquel Baldo, psicanalista e psicóloga.
Segundo o estudo Brazilian Longitudinal Study of Aging, 62,2% dos cuidadores afirmaram sofrer com algum tipo de transtorno mental. Desses, 66,7% citam sobrecarga em relação ao cuidado. Lidar com o inesperado e as alterações de um processo tão agressivo leva a um desgaste extremo.
Nesse quadro, o impacto se estende até a vida financeira. “Cuidar é caro. Os medicamentos são disponibilizados pelo SUS, mas ainda existe um trabalho multidisciplinar necessário, desde fisioterapia e fonoaudiologia até terapia ocupacional. Fora os itens extras, como fraldas, tudo demanda recursos”, pontua Alessandra.
Prova de que as demandas financeiras dos cuidadores não são bem atendidas é o Relatório Nacional Sobre a Demência no Brasil, feito pelo Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo, que mostra que mais de 90% das necessidades de pacientes que usam o SUS não são atendidas, com lacunas no custeio de medicamentos, acesso a atendimentos e cuidados de saúde.
Assim, a maior parte das despesas recai sobre a família. “No Brasil, ter um cuidador profissional é um luxo, pode custar até 15 mil reais por mês. Na prática, muitos familiares são obrigados a sair do trabalho para cuidar”, aponta Minozzo.
Nem tudo são más notícias, no entanto. Em junho deste ano, foi sancionado o PL 4.364, que institui a Política Nacional de Cuidado Integral às Pessoas com Doença de Alzheimer e outras Demências. Ele prevê que o SUS forneça ajuda às famílias que estão cuidando de pacientes dentro de casa — o que inclui campanhas de orientação e a formação e a capacitação de profissionais especializados na área.
De acordo com a Agência Senado, o objetivo é garantir conforto no ambiente familiar, o que costuma reduzir a necessidade de hospitalizações e internações prolongadas.
“Temos uma crise social, muitos fingem que não veem. Essa lei é um compromisso de olhar para os cuidadores, é preciso dar uma assistência, tanto informacional, quanto de cuidado”, diz Leandro Minozzo.
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