Menino autista sofre desidratação após seu copo favorito estragar
Para a Dra. Iara Brandão, neurologista infantil, os pais devem aprender a lidar com os comportamentos restritivos dos filhos sem intensificá-los.
Na última semana, o final feliz de uma história inacreditável de um família norte-americana emocionou a todos: Marc Carter se desesperou após seu filho, Ben, um adolescente autista de 13 anos, ter quebrado seu copinho utilizado para beber todo tipo de líquido.
O garoto faz uso da caneca verde desde os dois anos de idade, e pelo seu estado precário, simplesmente parou de se hidratar. Este modelo específico deixou de ser fabricado pela empresa Tommee Tippee. Então Marc precisou encaminhá-lo duas vezes à emergência após ter atingido um grave quadro de desidratação.
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“Ben não bebe na escola desde os 5 anos, ele não bebe fora de casa, então não podemos ir a lugar nenhum. As pessoas dizem que ele vai beber em qualquer coisa quando estiver com sede, mas duas idas à emergência com desidratação grave mostram o contrário”, disse o pai em uma das mensagens postadas em suas redes sociais.
Marc passou, então, a concentrar todas as suas forças para, através da ajuda de usuários do Twitter, conseguir um copo idêntico ao de Ben. A assistência foi tamanha que a hashatg #CupforBen, que em livre tradução para o português significa #UmCopoParaBen, atingiu o topo da lista de assuntos mais comentados em nível mundial.
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“Eu chorei com as mensagens. Foi incrível, não esperava. Algumas pessoas tuítaram para dar boa sorte e outras vasculharam seus armários em busca da caneca. Elas não me conhecem. Tem sido incrível e emocionante”, desabafou Marc.
A própria marca do copo também participou ativamente do mutirão: funcionários autorizados vasculharam o acervo na tentativa de encontrar um idêntico. Internautas engajados com a causa também enviaram sete exemplares para a casa de Ben.
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“O copo o mantém vivo. Se perdermos o copo e não conseguirmos encontrar outro, o Ben morreria. Ele seria colocado no soro no hospital, mas iria arrancar os tubo. Esta pequena caneca azul dita a nossa vida”, comentou o pai em entrevista concedida à BBC.
Para a Dra. Iara Brandão, neurologista infantil, geneticista e diretora técnica da Neurogen Saúde, os pais podem e devem aprender, com ajuda de profissionais treinados, a lidar com os comportamentos restritivos e repetitivos sem intensificá-los. Ao contrário, deverão ampliar o repertório de interesses das crianças que têm dificuldade para lidar com jogos simbólicos.
O autismo é um transtorno neuro-psiquiátrico, onde o indivíduo tem uma percepção sensorial desorganizada que afeta diretamente corpo e mente. Mesmo sem cura determinada até o presente momento, muitos dos sintomas podem ser controlados com ajuda de métodos comportamentais. Portanto, é fundamental que a família una forças para inserir um maior número de elementos a fim de neutralizar comportamentos restritivos e repetitivos dos filhos.
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CLAUDIA: Qual é a faixa etária mais comum de identificação do espectro autista nas crianças?
Dra. Iara Brandão: A maioria das suspeitas de autismo em crianças ocorre somente após os três primeiros anos de vida. O principal motivo para um diagnóstico tardio é, muitas vezes, a dificuldade do reconhecimento dos sintomas e a ausência de um marcador neurobiológico que identifica o transtorno. O diagnóstico é clínico. Alguns pediatras dominam bem o aspecto sensitivo-motor, mas as irregularidades dos aspectos emocionais e cognitivos acabam sendo deixadas de lado e se tornam mais difíceis de serem percebidas antes dos três anos de idade.
Porém não significa que o transtorno não possa ser identificado anteriormente, mesmo que seja mais difícil, há possibilidade de reconhecimento em uma faixa etária mais precoce. No Brasil, estatisticamente, a idade média para o diagnóstico é entre os 5 e 7 anos de idade, o que é considerado tardio.
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Como podemos identificar o espectro autista nas crianças?
Alguns testes de natureza clínica já podem sugerir o Transtorno do Espectro Autismo (TEA) a partir dos 18 meses de idade. Porém o diagnóstico definitivo nesta data não é comum mesmo países com os melhores sistemas de saúde. Os pais atentos podem observar sinais importantes nos pequenos nesta idade: interesse da criança por outras crianças ou por brinquedos; o ato de imitar os adultos; se o bebê acompanha com o olhar quando os pais apontam para determinado objeto do outro lado da sala; responder ou olhar quando chamam pelo nome. A ausência destes comportamentos pode representar sinais de prejuízos nos domínios da comunicação e interação social.
É importante ressaltar que a ausência destas características não significa necessariamente que a criança seja autista. Por isso, subdividimos três domínios do desenvolvimento neurológico explorados antes dos três anos de idade, que podem apresentar alguma irregularidade para um diagnóstico mais precoce. Não é um diagnóstico simples, pois há diversas condições que podem ser facilmente confundidas. Não podemos simplesmente dizer que uma criança é autista se apresenta determinada deficiência em um destes três grupos:
Domínio socioemocional
Corresponde à capacidade da criança de demonstrar interesse em conviver e compartilhar experiências coletivamente. Neste caso, alguns possuem dificuldades quase palpáveis quando se trata de interação social. Pequenos que possuem o transtorno, geralmente, são mais introspectivos e adeptos da prática do “brincar paralelo”, o que dificulta o desenvolvimento do domínio socioemocional.
Domínio da linguagem e fala
A grande maioria dos pediatras reconhecem muito bem as deficiências de comunicação infantil. A questão da fala atrasada, por exemplo, pode ser facilmente identificada por profissionais como fonoaudiólogos ou psicólogos. Isto é, aqueles que possuem uma percepção mais aguçada do desenvolvimento da linguagem.
Domínio comportamental
Neste caso, a atenção compartilhada dos pequenos apresenta interesses restritos, com um repertório repetitivo. Ou seja, as crianças com o transtorno autista apresentam dificuldade em procurar e dar atenção aos outros – elas são atentas, mas não conseguem direcionar ou compartilhar o foco com outras pessoas ou objetos por um grande período de tempo. Algumas também apresentam movimentos repetitivos, conhecidos como estereotipias.
É importante frisar que, quanto mais precocemente for realizado o exame clínico das funções neuro-psiquiátricas, mais adequados serão os treinos comportamentais direcionados para promoção de uma vida social e familiar de maior qualidade para essas crianças.
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É verdade que a maioria das crianças com autismo tendem a ressignificar um determinado objeto? Porque isso acontece?
Na realidade, essas crianças têm uma dificuldade no jogo simbólico de reconhecer os objetos e apreciá-los na sua devida função, o que acaba não acontecendo segundo alguns padrões previstos pelo desenvolvimento neurobiológico infantil. O autismo é multifatorial, ou seja, além de causa genética, e vale ressaltar que existem mais de mil genes relacionados ao transtorno, fatores do ambiente (intra e extra uterino) também contribuem para o aparecimento da condição. Por isso, é tão difícil dispor de um exame genético único de utilidade para o diagnóstico.
O que dispomos é um tratamento de treino de habilidade social, que compreende os campos da linguagem e da interação socio-afetiva – este é o nosso objetivo. Mas é inimaginável pensar em somente um critério biológico para uma condição que congrega campos diversos do desenvolvimento neurobiológico humano. Portanto, utilizamos um critério clínico baseado nestes três domínios citados acima.
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Isso pode estar atrelado ao comportamento com repertório repetitivo e restrito?
Muitas crianças se interessam por um único objeto mas não são autistas somente por isso. Então, é necessário identificar quatro ou cinco sintomas que integram a tríade citada acima e persistam durante um longo período de análise, que pode ser de seis meses por exemplo.
50% dos autistas apresentam algum tipo de deficiência intelectual – esta taxa é mais comum do que a de mães grávidas de gêmeos por exemplo, mas não significa que toda deficiência intelectual é sinônimo de autismo. O comportamento autista pode ser encontrado em crianças com deficiência intelectual, mas não significa que esta criança tenha necessariamente uma das variações do TEA.
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Você acredita que o autismo ainda seja um distúrbio muito estigmatizado nos dias de hoje?
Existem muitos mitos envolvendo o transtorno, tanto é que uma consequência desta estimgatização é a segregação destas crianças em ambiente familiar e escolar, pela carência no preparo de muitos profissionais para lidar com estas crianças. O caminho não é criarmos salas especiais e sim salas inclusivas, uma vez que estas crianças se beneficiam da convivência em grupo, desde muito cedo. Sabemos que os autistas assimilam detalhes e atalhos da convivência social criados pelos adultos cuidadores, professores ou terapeutas.
Os autistas de alto-funcionamento, assim chamados por serem verbais, ou seja, falarem, e de inteligência com bom rendimento ou acima da média, antes eram denominados com a Síndrome de Asperger. A nomenclatura mudou após a última correção feita, em 2013, no Manual de Diagnóstico Estatístico para Transtornos Mentais, e aqueles com a condição passaram a receber a denominação de TEA (Transtorno do Espectro Autista). Mas na maioria das vezes, continuam sofrendo com o isolamento das suas habilidades e especificidades, muitas vezes, mal entendidas.
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Quais estratégias você acredita que sejam necessárias para vencer a introspecção das crianças portadoras de autismo?
Todo o tratamento realizado é feito dentro do que chamamos de treino comportamental. Psicólogos, fonoaudiólogos e terapeutas ocupacionais trabalham com essas crianças de maneira a despertar nelas noções do próprio corpo aliadas aos sentidos e às atividades básicas diárias. E isso segue o que esperamos do desenvolvimento infantil em cada etapa de sua vida. Os pequenos também treinam a linguagem para uma comunicação mais adequada, como devem se comportar e a atenção destinada para realizar determinada atividade. Todo este trabalho é desenvolvido a fim de dar condições para que essa criança possua uma vida mais funcional possível.
Neste caso específico do adolescente Ben, não é nada funcional beber no mesmo copo há mais de dez anos. Esse episódio aconteceu, dentre outras questões, porque o jovem estava aprisionado a uma repetição, que intensificou seu comportamento restrito – o universo simbólico restrito, um dos principais problemas dos autistas. A família precisa incentivá-lo a ampliar o leque de referências simbólicas.
Marc, pai de Ben, possui outros três filhos que possuem necessidades especiais. Você acredita que isso esteja ligado ao caráter genético da doença?
Devemos destacar que existem muitas suposições que relacionam o aparecimento do Transtorno do Espectro Autista (TEA) a fatores ambientais e exposição a diversos agentes teratogênicos, isto é, tudo aquilo capaz de produzir dano ao embrião ou feto durante a gravidez. Mas o fator determinante mais importante é a genética. O risco da condição aparecer entre gêmeos é muito alto. A taxa entre os irmãos de um mesmo casal que já possui um filho autista também é superior, quando comparada a população geral. Meninos apresentam de 30% a 50% mais chances de terem a doença. Portanto, Ben, se encaixa neste grupo.
Ben é um adolescente de 13 anos e apresenta sinais de um comportamento extremamente repetitivo. De que maneira você acredita que os pais deveriam lidar com esta situação?
Independentemente da idade, há sempre a possibilidade de ampliar o interesse restrito de uma criança ou adolescente com TEA pelo treino de habilidade social, através do atendimento psicológico e de outras terapias. Obviamente que quanto mais tardio, o tratamento se torna difícil, mas não significa que isso seja um impedimento para novas abordagens. Por isso não podemos dizer que é um caso irrecuperável. É necessário uma observação minuciosa dessa rotina para intervir de forma mais adequada nas atividades diárias.
As crianças autistas possuem uma relação diferente com o brincar, mas a sua maneira. E é justamente isso que precisa ser percebido, pois é através dessa ‘maneira’ que os pequenos são capazes de assimilar os atalhos criados pelos adultos para facilitar a troca de informações, experiências, a fim de enriquecer o universo simbólico de cada um. Se eles não falam, não quer dizer que não se comunicam. É possível identificar o que eles querem, a dificuldade de interação social que apresentam não os impedem de absorver esses atalhos.
Ainda sobre o comportamento restrito, nós estamos agindo cada vez mais como indivíduos com interesses restritos nos tempos de tablet e smartphones. Um exemplo pode ser compreendido com o acesso prematuro das crianças aos celulares. Se você vai a um restaurante, é super comum ver que em uma mesa, todos os membros da família, até mesmo os mais novos, estão vidrados em suas telas. É da natureza humana simplificar o universo simbólico, porque é mais fácil intensificar o interesse restrito das crianças. O comportamento autista se manifesta corriqueiramente na vida dos casais, nos interesses restritos que estabelecemos com a tecnologia, ao invés de nos olharmos, estamos descuidados deslizando nossos dedos numa tela inerte. E isso é aplaudido entre nós.
A forma mais inteligente de estimular o desenvolvimento neurológico do seu filho é através da linguagem: da conversa, do olhar, da tomada de decisão a partir da expressão facial, do outro. E isso leva muito mais tempo para ser construído do que simplesmente ensiná-los a deslizar os dedinhos pelo aparelho. É por meio destes estímulos de linguagem corporal que são formadas as conexões neuronais dos bebês, principalmente nos primeiros anos de vida – crianças de colo que estão aprendendo a coordenar seus neurônios. Quando eu abro mão de tudo isso, deixo de estimulá-los a aprender e reconhecer seus sentidos. Qualquer que seja o relacionamento: o excesso não nos serve, prejudica. Eu só percebo e entendo o que eu sinto somente o que sou capaz de observar. Distraídos em seus próprios aparelhos eletrônicos, os filhos estão crescendo sem serem notados. Cada um em seu próprio universo restrito.