São 10 trilhões de habitantes e um sistema complexo de equilíbrio que inclui a manutenção das defesas do organismo. Essa poderia até ser a descrição de um país em combate, mas diz respeito à organização e ao funcionamento do intestino humano, um dos órgãos mais complexos do corpo. Assim como o cérebro, tem neurônios – são quase 500 milhões. É o suficiente para formar um sistema nervoso próprio, responsável por coordenar tarefas difíceis, como a liberação de enzimas e movimentos necessários à digestão. Não bastasse esse circuito independente, ainda abriga uma quantidade vasta de bactérias, vírus e fungos. Não torça o nariz, pois mora aí a principal riqueza dessa estrutura.
Há algum tempo os cientistas vêm se debruçando nesse delicado ecossistema de microrganismos. Até agora, são ao menos mil variedades de bactérias conhecidas. Só em 2019, 105 novos tipos foram mapeados por pesquisadores australianos. Elas acumulam milhões de genes e, juntinhas, chegam a pesar impressionantes 2 quilos. Mais expressivos que os números são as funções. Já é sabido que as bactérias estão relacionadas à manutenção do sistema imunológico, à predisposição à obesidade e até a disfunções psicológicas, como depressão.
Não demorou até que os estudos chegassem às implicações na pele. “O eixo ‘intestino-cérebro-pele’, que correlaciona alterações de microbiota intestinal a manifestações cutâneas, está em foco”, afirma a dermatologista Lilia Guadanhim, da Unidade de Cosmiatria da Escola Paulista de Medicina (Unifesp), de São Paulo. Prova disso foram as longas discussões sobre as consequências desse desequilíbrio no último Congresso Mundial de Dermatologia, em Milão, no fim do primeiro semestre deste ano.
As causas da chamada disbiose são várias. Vão desde hábitos alimentares não saudáveis, como alto consumo de açúcar refinado, carboidratos e gorduras em contraste com a baixa ingestão de fibras, até uso de medicamentos e estresse crônico. Já foi traçada uma ligação com acne, psoríase, rosácea e dermatites. “Isso se deve à influência na inflamação do organismo”, explica Lilia.
As pesquisas recentes apontam para a atenção à microbiota como uma forma de prevenir, estacionar e tratar problemas de pele e de cabelo. “No futuro, acredito que a maior tendência será o transplante de flora intestinal. É a substituição completa da microbiota do próprio organismo por uma nova para pacientes com doenças inflamatórias e sistêmicas, como a psoríase”, aposta a dermatologista e tricologista Ana Carina Bertin, de São Paulo. “Nos primeiros experimentos, pessoas já carecas que fizeram o transplante tiveram reversão do quadro e passaram a ter um couro cabeludo repleto de fios”, conta.
Ainda levará tempo para que isso se transforme em protocolo ouro (tratamentos mais eficientes) entre os médicos, claro. Por enquanto, a abordagem atual nos consultórios desmistifica a máxima de que bactérias são sempre ruins e devem ser combatidas com remédios. E também traz um novo olhar para regularizar de forma natural a população bacteriana. É aí que os prebióticos, probióticos e pós-bióticos entram no circuito, inclusive no da beleza.
ABC dos “bióticos”
Os três itens citados acima têm a ver com as bactérias boas para a saúde. Além da alimentação adequada, com vitaminas e fibras, é possível fazer suplementação com indicação profissional. “Os prebióticos são fibras alimentares que estimulam seletivamente a proliferação de bactérias boas”, explica Ana Carina. Eles podem ser usados por via oral.
Já os probióticos são microrganismos vivos, capazes de passar pelo ambiente ácido do estômago e chegar intactos ao intestino. Em menor quantidade, estão presentes em alimentos como kombucha, iogurtes e kefir. Vêm em sachês solúveis em água com uma variedade de tipos à disposição. “Funcionam como alimentos para colônias de bactérias boas, que vão combater as ruins. Essa diversidade é importante para construir uma barreira de pele mais íntegra, evitando dermatites e até doenças mais graves”, diz a dermatologista Adriana Cairo, membro da Academia Americana de Dermatologia e responsável pela residência médica de dermatologia do Hospital Heliópolis, em São Paulo.
Por último, existem os pós-bióticos, que são o resultado do que as bactérias produziram. Eles podem reproduzir o efeito dos probióticos, mas sem a necessidade de ingestão de elementos vivos – por isso, são a indicação mais complexa do cardápio.
Volta às boticas
A microbiota é como uma impressão digital. Cada pessoa tem suas características individuais. Parte delas é formada quando somos bebês e vai sofrendo alterações ao longo da vida. Tamanha especificidade inspirou o desenvolvimento de tratamentos customizados. Entra, então, um novo microbioma nessa história: o da própria pele. “Carregamos cerca de 1 milhão de microrganismos por centímetro quadrado de tecido”, diz o dermatologista Felipe Chediek, de Balneário Camboriú. “Existem vários fatores que influenciam a presença de um ou mais grupos de microrganismos, como o pH, o suor, a temperatura, a camada lipídica. O ambiente interfere na flora”, acrescenta.
Como para cada doença existem bactérias específicas a serem utilizadas, esses ingredientes podem estar em fórmulas manipuladas para aplicação direta sob a pele. Já existem cremes compostos por pós-bióticos para tratamentos anti-inflamatórios, caso da rosácea e dermatites crônicas. “Sabemos também que há um tipo específico de bactéria que inibe a produção de oleosidade na pele. Então já vale para quem sofre com acne, por exemplo”, observa a dermatologista Fabiane Seidl, do Rio de Janeiro. Os próximos alvos? Tratamentos e prevenção contra queimaduras solares e alergia a picadas de mosquito.