A atriz e escritora Lena Dunham quebrou o silêncio sobre um problema que a afeta, assim como muitas outras mulheres: a endometriose. Em um depoimento emocionante, contou parte de sua experiência:
“A endometriose não representa uma ameaça à vida. Eu sei que eu tenho sorte por ter acesso a um bom suporte de saúde, mas também sei que eu sou uma das muitas mulheres que lutam contra as traições de seus corpos e que são, muitas vezes, encaradas com ceticismo por médicos treinados.
Eu tenho a sorte de ter encontrado Randy [médico]. Eu tenho a sorte de estar cercada de amor e de ser capaz de controlar o meu horário de trabalho, por exemplo. Mas uma noite, enquanto eu procurava “efeitos colaterais” de um remédio – o que não é uma boa ideia – me deparei com o blog de uma mulher lutando contra a endometriose. Ela descreveu seu tratamento e os desafios dele. Ela perguntou: “Quem escolheria ser uma mulher? Sério, é uma coisa terrível após o outra!”. Fechei o meu computador. Era suficiente.
Eu escolheria ser uma mulher. Qualquer dia, de qualquer forma, a qualquer hora. Ser mulher é a melhor coisa que já me aconteceu. Mas eu também espero que, no futuro, o sofrimento de adolescentes seja totalmente investigado, levado tão a sério como uma perna quebrada. Espero um mundo em que a doença não seja equiparada à fraqueza, em que as questões de saúde mental não sejam descartadas, porque, adivinhe, nós somos seres complexos.
Enfrentei ao longo do caminho um medo enorme de “ser descoberta”, medo de que alguém dissesse que eu não era forte o suficiente para o meu trabalho ou minha vida. Hoje, sou estranhamente destemida. E eu não estou mais com medo do meu corpo. Na verdade, eu sei ouvi-lo quando ele fala. Eu não tenho escolha, mas respeito o que ele me diz, a força de sua voz e de sua verdade.”
A doença
Uma pesquisa indicou que mais da metade das brasileiras não sabem o que é endometriose. Ela atinge, no mínimo, 15% das brasileiras em idade fértil – ou cerca de 7 milhões. Como muitos casos ainda não foram diagnosticados, os especialistas calculam que o grupo que sofre com a endometriose por aqui seja maior, de 10 milhões. A doença causa inúmeros prejuízos, entre eles a queda da produtividade. Há uma perda, em média, de 10,8 horas semanais, porque a profissional fica de cama ou sem gás para trabalhar. A descoberta é de um estudo da Universidade Oxford, na Inglaterra, com 1.418 mulheres de dez países, incluindo o Brasil.
A endometriose surge quando células do endométrio (tecido que reveste o útero) se fixam em outros locais do abdome, como ovários, trompas, os ligamentos que sustentam o útero, a área entre a vagina e o reto, a superfície externa do útero, a membrana que reveste a parede abdominal (peritônio). Dali, continuam a responder aos estímulos hormonais – assim, o tecido cresce todo mês e sangra. Por não ter como escoar, o sangue se acumula, causando inflamações. E elas podem provocar sofrimento incapacitante, que se manifesta como cólica menstrual, dor pélvica crônica e dor nas relações sexuais. Às vezes, as células do endométrio “grudam” em cicatrizes de cirurgias ou sobre o intestino e a bexiga, causando desconforto ou dor ao urinar e evacuar, além de infecção urinária e diarreia, sobretudo nos dias da menstruação. Segundo o ginecologista Nicolau DAmico Filho, os focos podem ser superficiais ou profundos. Mas a intensidade da dor nem sempre é proporcional à gravidade. Mulheres com quadros profundos podem relatar pouca dor, e vice-versa. Uma minoria não apresenta sintomas. Metade das portadoras está sujeita à infertilidade. “A endometriose pode causar obstrução nas trompas, o que inviabiliza a gravidez por meios naturais”, explica o ginecologista Carlos Alberto Petta, que participa de pesquisas sobre o tema. A doença também leva a alterações hormonais, bioquímicas e imunológicas que atrapalham o funcionamento do aparelho reprodutivo.
Brasileiras não conhecem o problema
Apesar de tantos estragos, a doença permanece desconhecida. Uma pesquisa da SBE (Associação Brasileira de Endometriose e Ginecologia Minimamente Invasiva), divulgada do ano passado, ouviu 5 mil brasileiras acima dos 18 anos: 55% não sabiam o que é endometriose. Pior: ainda vigora entre as mulheres – e às vezes até entre os médicos – a falsa ideia de que as cólicas menstruais são normais. “A consequência é o diagnóstico tardio”, lamenta Petta. “Enquanto a mulher ouve que não tem nada, a doença avança. Com frequência, só é detectada quando tenta engravidar e não consegue.” O tempo entre o início dos sintomas e o diagnóstico varia de sete a dez anos. Há prejuízo emocional: “Uma mulher cheia de dores que vai ao médico e não descobre o que tem fica desacreditada, inclusive pelos familiares, e corre risco de depressão”, avisa DAmico Filho. Para reverter a situação, 56 representantes de 34 organizações médicas e de pacientes de vários países (incluindo o Brasil) organizaram o primeiro guia internacional com diretrizes para diagnóstico e tratamento, publicado na revista científica Human Reproduction em março, mês da conscientização sobre endometriose. O documento da World Endometriosis Society (WES) destaca a importância de orientar quem sofre de cólicas e dores pélvicas a buscar ajuda médica, mesmo na adolescência.
Como surge a endometriose
A principal causa da endometriose é a chamada menstruação retrógrada: 80% das mulheres têm refluxo de parte do sangue menstrual, o que leva as células do endométrio para outros locais, diz DAmico. “Em quem tem endometriose, o sistema imunológico falha e não destrói as células que estão fora do seu habitat.” Ter parentes em primeiro grau com a doença aumenta em oito vezes o perigo de desenvolvê-la. “A exposição excessiva ao estrogênio estimula o crescimento dos focos. Por isso, menstruar cedo, engravidar tarde e ter menos filhos eleva o risco”, diz a ginecologista Rosa Neme. O stress e a poluição favorecem o quadro.
O diagnóstico é feito por meio de exame ginecológico com toque vaginal – que detecta lesões no fundo da vagina, causadoras das dores na relação sexual – e métodos de imagem, como a ultrassonografia transvaginal com preparo intestinal e a ressonância magnética da pelve. O índice de acertos do primeiro ultrapassa 95% e do segundo fica em 70%, diz Rosa Neme.
Alívio novo
Não há cura para endometriose, mas o tratamento bem orientado produz alívio. Em casos superficiais, pode-se indicar algum anticoncepcional hormonal (pílula ou DIU, implante, anel, adesivo). Os focos que afetam o peritônio e os ovários, em geral, regridem com análogos do GnRH, remédios injetáveis à base de hormônios que interrompem a menstruação, colocando a mulher numa falsa menopausa. Mas eles causam ondas de calor e aumentam o risco de osteoporose. Podem ser adotados, no máximo, por seis meses. Uma progesterona aprovada em novembro, a dienogeste, obtém o mesmo efeito sem os inconvenientes. “De uso oral, reduz a lesão, melhora a dor e não tem tempo-limite de prescrição”, informa Rosa. Porém, custa mais e provoca insônia, enjoo, mal-estar e dor de cabeça nos primeiros meses. A endometriose profunda tem indicação cirúrgica: os focos são retirados por videolaparoscopia e seu leito cauterizado. Auxiliam na recuperação dieta equilibrada, exercícios físicos, acupuntura e outros métodos para manejo do stress e controle do peso – o tecido gorduroso produz estrogênio. Se houver dificuldade para engravidar, o tratamento depende da idade. “Até 35 anos, primeiro, cirurgia de remoção dos focos; depois é melhor partir logo para a fertilização assistida”, diz Petta. O principal conselho é não perder tempo. Quanto antes for feito o diagnóstico, melhor para a saúde reprodutiva.