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Doar órgãos é desafiar o tempo

Nossa repórter acompanhou a ação de uma equipe de saúde no dramático e emocionante mundo do transplante. Ela relata as sutilezas na abordagem da família, a dificuldade de ceder partes de um parente querido, a urgência na retirada dos órgãos e a alegria de transformar a dor no renascimento de outras vidas.

Por Cristina Nabuco (colaboradora)
Atualizado em 28 out 2016, 14h37 - Publicado em 12 set 2016, 17h08
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  • [Terça, 8h07]
    Dioneide Gonçalves Lima, 34 anos, deu entrada no Hospital Padre Albino, em Catanduva, no noroeste paulista. Ela havia se sentido mal enquanto cuidava da casa e dos filhos pequenos. Os familiares a encontraram desacordada. Uma tomografia mostrou um acidente vascular cerebral isquêmico. O bloqueio em uma artéria impedia que o sangue chegasse a uma região do seu cérebro. Ela precisou ser internada na UTI e entubada. Os parentes ficaram atônitos. Como era possível acontecer algo assim com uma mulher ativa, alegre, de bem com a vida, que nunca tivera nenhum problema sério de saúde? A outra preocupação se ligava às suas dez crianças, o mais velho com 17 anos; as mais novas, gêmeas, de apenas 5 meses. Dioneide tinha de se recuperar logo. Mas o quadro piorou. No dia seguinte, o médico-chefe da UTI, Jorge Luis Valiatti, alertou de que suspeitavam de lesões irreversíveis e fariam exames para avaliar o cérebro dela.

    [Quinta, 14h30] 
    Concluída a avaliação das funções cerebrais, a família foi chamada. Izabela Brugugnolli, médica da UTI, acolheu em uma sala o pai, Joaquim Gonçalves Lima, a mãe, Josefina, o marido, Valdeci, e três irmãos de Dioneide. A entrevista foi emocionante do começo ao fim. Embora soubessem da gravidade da situação, eles tinham esperança de receber uma notícia boa. A médica intensivista lembrou que a paciente chegara em estado grave. Todos olhavam fixamente para Izabela quando ela informou que os exames não detectaram sinal de atividade no cérebro. Dioneide teve morte encefálica. “Fizemos de tudo para salvá-la, mas infelizmente ela faleceu”, acrescentou. Soluços e lágrimas invadiram a sala.

    [15h30]
    A médica apresentou as enfermeiras Camila Chieratto, da Comissão de Transplantes do Hospital Padre Albino, e Regiane Sampaio, recém-chegada de São José do Rio Preto (SP), a 45 minutos de distância, onde atua na Organização de Procura de Órgãos (OPO) do Hospital de Base (HB) daquela cidade, que gerencia a captação de órgãos em 14 instituições da região. Carinhosamente, as enfermeiras disseram que, na dor pela perda de uma mulher querida, algo de bom poderia ocorrer. Se eles consentissem, Dioneide ajudaria pessoas que se mantêm na fila com apenas uma esperança: o transplante. “É como se Dioneide passasse a viver por meio desses pacientes”, argumentou Camila. “Vários órgãos poderiam ser doados e muitas vidas salvas”, afirmou Regiane. Seu Joaquim fechou os olhos. Um suspense se instalou na sala silenciosa. Faltava pouco para 15h40.

    No ano passado, 2,3 mil morreram no Brasil aguardando um órgão, segundo a Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos. Não por falta de tecnologia ou equipes habilitadas, mas por falta de doadores em decorrência, sobretudo, da rejeição familiar. Esperava-se que no primeiro trimestre de 2016 o número chegasse a 16 doadores por milhão de pessoas. Ficou, porém, 18,1% abaixo da previsão. Cerca de 45% não doam órgãos de parentes. No Maranhão, o índice atinge 73%. Em São Paulo, 38%. A OPO do HB, diferentemente da tendência, reduziu o número para 25%: a cada dez entrevistados, de sete a oito autorizam. Para o coordenador do serviço, o nefrologista João Fernando Picollo, isso é fruto da conscientização sobre o valor da doação, da capacitação dos hospitais dali para identificar potenciais doadores e notificar as duas centrais estaduais (na capital e em Ribeirão Preto) e do treinamento para a abordagem humanizada. Esse momento é decisivo, os profissionais andam no fio da navalha. “Precisamos de estabilidade emocional para lidar com situações ambíguas: a morte de um e o renascimento de outros”, ponderou Camila. “Respeitamos cinco fases do luto – negação, revolta, barganha, depressão e aceitação”, disse Picollo. Quanto mais jovem e repentina a  partida do paciente, mais difícil é a aceitação. 

    [15h40]
    O suspense não durou 20 segundos entre os parentes de Dioneide. Eles não tiveram dúvidas quanto ao que fazer. “Se a gente pode aliviar o sofrimento das pessoas, a gente vai doar”, declarou, emocionado, seu Joaquim ao clã, unido na decisão. Mais tarde, Regiane comentou: “Fiquei impressionada com a generosidade. Como eram humildes, achei que teria de dar muitas explicações. Eles não fizeram perguntas nem questionaram o diagnóstico. Apenas agradeceram o atendimento. Percebi que se sentiram bem em ajudar os outros. A doação aliviaria o peso da morte”.

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    Regiane correu para a estrada, levou as amostras do sangue de Dioneide para o laboratório do HB. Os resultados saíram às 20h30 e as informações foram transmitidas para a central de transplante. A primeira cirurgia, para retirada do coração, ocorreria às 2h40 da sexta, mas não havia voo comercial nem avião da FAB para transportar a equipe de São Paulo. De madrugada, Regiane avisou a família que o corpo não seria entregue de manhã, só à tarde. “Fique tranquila, faça seu trabalho”, disse seu Joaquim.

    [Sexta, 10h]
    Começou a remoção do coração, que só pode ficar quatro horas fora do corpo. Outra equipe tirou o fígado, e os dois órgãos seguiram para a capital. O rim esquerdo foi para Ribeirão Preto, o direito para Campinas, os ossos para Marília e as córneas para o Banco de Olhos do HB. Às 15 horas, o corpo estava liberado para as despedidas de Dioneide. “Os transplantes ocorreram com sucesso, várias pessoas renasceram”, disse Camila. Regiane lembrou: “O que me motiva é saber que melhora a vida de quem recebe e de quem doa”. Mas nem toda empreitada da equipe tem final feliz.

    SEIS DIAS DEPOIS
    [Quinta, 17h15]

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    Um rapaz de 25 anos, internado no HB em decorrência de um AVC hemorrágico, teve morte cerebral. À entrevista, às 20 horas, compareceram a mãe, três irmãos e um cunhado. Picollo disse a eles que tinha havido grande derramamento de sangue e a pressão no interior da cabeça subira a níveis muito altos, impedindo o sangue de chegar ao cérebro. As condições do paciente foram avaliadas. O Conselho Federal de Medicina determina a realização de dois exames, por médicos diferentes, com seis horas de intervalo. São sete testes para verificar os reflexos. Depois, uma cintilografia ou um eletroencefalograma mostra se há circulação, atividade elétrica ou atividade metabólica no encéfalo.

    Não se detectou fluxo sanguíneo no cérebro do rapaz. A irmã perguntou se não seria melhor esperar para ter certeza. O médico informou que o diagnóstico era definitivo. Não haveria mudança no dia seguinte. O jovem havia morrido. “Mas por que o coração dele continua a bater?”, ela questionou. “Por estar ligado a aparelhos e pelo efeito da medicação”, respondeu o nefrologista. “Sem os hormônios produzidos pelo cérebro, a tendência é ocorrer uma parada cardíaca, só não é possível prever quando.” Um irmão contou que sua filha voltara de um coma. Picollo informou que no coma os reflexos existem, o cérebro continua vivo. Já na morte encefálica perdem-se todas as funções que mantêm a vida, como a consciência e a capacidade de respirar. O outro irmão quis saber quais seriam os próximos procedimentos. Então, a enfermeira Regiane ofereceu a possibilidade da doação. Ela perguntou à família se o rapaz havia manifestado desejo de doar. Não, o tema nunca havia sido tratado entre eles. Então, Picollo indagou como era aquele jovem: “Tinha amigos, fazia trabalho social, doava sangue?” Queria com isso cogitar se ele desejaria continuar ajudando as pessoas após a própria morte.

    [20h30]
    Muito abalada, a mãe pediu tempo para pensar. O relógio estava voando. “Quanto mais as horas passam, maior o risco de que os órgãos se deteriorem. Mas não podemos deixar que a ansiedade nos domine”, disse Picollo. “É melhor respeitar o tempo da família e correr o risco de perder algum órgão, do que atropelar as etapas e vir a ficar sem todos por recusa familiar”, explicou. “Como priorizamos o acolhimento, concordamos em retomar a conversa no dia seguinte”, afirmou Regiane. Oa parentes do rapaz foram para casa descansar.

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    [21 h]
    A equipe partiu para outra ação. Desta vez, tratava-se de um homem de 50 anos, internado havia uma semana no HB, também por AVC. A médica da UTI avisou a nora do óbito. Esposa e filho estavam no trabalho. A nora se emocionou, mas a notícia não a surpreendeu: todos imaginavam esse final. Ele era hipertenso, fumava e exagerava na bebida. Assim que Regiane mencionou a palavra doação, ela contou que o sogro manifestara essa intenção em vida. “Que os médicos tirassem o que desse para ajudar outras pessoas”, recordou o desejo dele, que seria cumprido. Como a autorização deve ser dada por parente de até segundo grau, aguardaram o filho para assinar os papéis.

    [23 h]
    Nova corrida. Exames de sangue checam se o doador teve HIV, hepatite, sífilis, toxoplasmose, mononucleose e doença de Chagas. Resultados que, em condições normais, demoram uma semana saem em duas horas. Se tudo estiver normal, informam à central de transplantes de Ribeirão Preto tipo sanguíneo, peso, altura, doenças prévias e medicações usadas para orientar a busca de receptores compatíveis. A central tem seis horas para identificá-los e mobilizar os médicos que removerão os órgãos e farão os transplantes: uma equipe para cada órgão; e isso  pode envolver, nos transplantes múltiplos, 15 profissionais.

    [Sexta, 1h da madrugada]
    Diante das alterações encontradas no doador de 50 anos, coração, pulmão e fígado foram descartados, mas os rins poderiam ser doados. A retirada, por um grupo do HB, foi marcada para as 8 horas da manhã.

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    [4h]
    Uma parada cardíaca impediu a realização do desejo do homem de 50 anos. Os órgãos têm que ser removidos enquanto há circulação sanguínea. Sem ela, até os rins ficaram inviáveis. Em condições, restaram só as córneas, extraídas algumas horas depois.

    Os parentes do jovem de 25 anos retornaram. “Não vamos autorizar a doação”, comunicou a irmã. “Seria um peso muito grande para nós. Deixemos que Deus decida. Ainda esperamos um milagre.”  No termo de recusa assinado por eles, o motivo alegado foi convicção religiosa, apesar de as religiões, em geral, incentivarem a doação como um ato de amor e solidariedade. “É um desafio lidar com a emoção nessa hora e não contestar a decisão”, comentou Regiane. “Mas ninguém tem o direito de julgar a família. Não sabemos o que estão passando.” Picollo foi taxativo: “A decisão de doar precisa trazer conforto, e não mais stress para quem já está enfrentando um momento muito difícil”.

    A equipe está acostumada a se equilibrar entre dois imperativos: de um lado, a dor de uma família que acaba de sofrer uma perda irreparável. Do outro, os 31 881 brasileiros  à espera de um órgão. Eles acreditam em um milagre simples de se realizar. Um milagre dos vivos, como nós, que podemos decidir abrir mão de alguns mitos e crenças para salvar pessoas. Essa é uma conversa que precisamos ter em casa.

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