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Como a canoagem transforma a vida destas sobreviventes ao câncer

No Lago Paranoá, mulheres do grupo Canomama descobrem na canoagem um modo de lidar com a dor do câncer e também a alegria de sobreviver a ele

Por Da Redação
Atualizado em 17 jul 2018, 20h56 - Publicado em 17 out 2017, 16h21
 (Igo Estrela/CLAUDIA)
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São 8 horas da manhã de um dia ensolarado em Brasília. Deyse Fernandes, 36 anos, militar do Exército, acaba de chegar para o treino de canoagem às margens do Lago Paranoá e é recebida com festa pelas amigas. Todas querem ver como ela ficou depois da cirurgia de implante de próteses de silicone, há dois meses. O procedimento não foi para aumentar os seios, e sim para reconstruí-los. Assim como suas colegas de canoa, Deyse teve câncer de mama e fez mastectomia. Agora que o tratamento acabou, pôde colocar próteses definitivas.

No grupo Canomama, 11 mulheres aprenderam juntas a lidar com a realidade do pós-tratamento contra o câncer de mama. Nos treinos, trocam experiências e dividem alegrias e tristezas. Todas foram submetidas à mastectomia. Na cirurgia, o seio inteiro é retirado: pele, gordura, glândula mamária e, em muitos casos, mamilo e aréola.

O procedimento cirúrgico inclui a remoção de gânglios da axila, o que reduz a mobilidade e a força do braço. No passado, os médicos recomendavam repouso e inúmeros cuidados por risco de linfedema, condição que deixa o braço permanentemente inchado por acúmulo de linfa. Hoje, estudos mostram que exercícios físicos favorecem a reabilitação, impedem a atrofia muscular do braço e ajudam a evitar a recidiva (retorno) do câncer.

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Um dos pioneiros dessa descoberta é o médico canadense Don McKenzie. Em 1996, em Vancouver, ele começou a estudar formas de combater o linfedema e propôs algo completamente inovador: reuniu um grupo de mulheres mastectomizadas que nunca haviam remado para treinar canoagem em um dragon boat, embarcação de 46 pés (14 metros) com 22 tripulantes. A despeito da desconfiança dos colegas de profissão, o projeto foi adiante. No mesmo ano, elas remaram no maior festival da cidade. Nenhuma teve linfedema.

Vinte anos depois, a International Breast Cancer Paddlers’ Commission (IBCPC) contabiliza 197 equipes de canoagem em 21 países compostas de mulheres mastectomizadas. A entidade apoia a criação de times como forma de reabilitação, inclusão e melhoria da qualidade de vida. No Brasil, essa história começou em 2014, quando a argentina Adriana Bartoli, integrante da comissão e também ex-paciente de câncer, veio para cá incentivar o nascimento dos primeiros grupos na América do Sul. Assim surgiu o Canomama.

Na época, Adriana procurou o atleta e técnico Marcelo Bosi, professor de Larissa Lima Barbosa, hoje com 40 anos, funcionária pública e nutricionista. Ela havia acabado de descobrir que estava com câncer de mama, passado pela mastectomia e feito a primeira sessão de quimioterapia. Larissa era atleta profissional de corrida de aventura, modalidade que une ciclismo, canoagem e trekking. Não tinha nenhum dos fatores de risco associados à doença, como sobrepeso, histórico familiar, mutação genética ou consumo de bebida alcoólica e cigarro.

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“Marcelo era meu mestre e falou sobre mim com Adriana. Ela foi à minha casa e me apresentou o projeto”, conta Larissa. Apesar da excelente forma física, a quimioterapia provocou dores articulares e musculares tão fortes que Larissa não podia mais se exercitar. A caminhada diária se limitava aos 150 metros entre a porta de casa e o portão. “Achei que fosse morrer. Mas pensei muito e decidi que, se sobrevivesse ao tratamento, iria levar essa ideia adiante.” Marcelo, a fisioterapeuta Nadia Gomes e o preparador físico Ticiano Matos ajudaram Larissa a estruturar o projeto.

Quando terminou todos os ciclos de quimioterapia, em 2015, Larissa anunciou a criação do Canomama em um grupo no WhatsApp formado por pacientes que faziam tratamento em Brasília. Após avaliação nutricional, psicológica, física e fisioterápica, em maio daquele ano as 11 mulheres se encontraram pela primeira vez. Com exceção de Larissa, todas eram novatas no esporte.

No primeiro dia de treino, Deyse só conseguiu remar 50 metros. No fim do ano passado, atingiu a marca dos 12 quilômetros de uma só vez. “Eu estava insegura por encarar um esporte que nunca havia feito na vida, depois de um tratamento pesado. Tinha medo do sol forte. Então fui com chapéu, camisa de mangas compridas e luvas. Isso tudo retratava minha insegurança.”

Deyse tinha 32 anos quando foi diagnosticada com câncer de mama. Seis meses antes, havia feito uma bateria de exames. O comportamento agressivo da doença levou os médicos a optar por mastectomia bilateral (retirada dos dois seios). Ela enfrentou 16 sessões de quimioterapia. “Achei que canoagem não fosse para mim. Sempre trabalhei com membros inferiores – praticava corrida e jogava futebol. A persistência me levou a continuar. Com esse esporte, me reinventei”, atesta.

É hora de treinar. Cada uma ocupa seu lugar na canoa havaiana, embarcação de origem polinésia com um flutuador, denominado ama, ligado ao casco por meio de dois braços. Essa estrutura proporciona estabilidade à canoa de seis lugares. O treino dura uma hora e ocorre três vezes por semana na escola CPP Mahalo, na Associação dos Servidores da Câmara dos Deputados (Ascade).

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Sara Alves Martins, confeiteira, 34 anos, geralmente ocupa o primeiro banco da canoa. Ela tem a função de voga, a quem cabe ditar o ritmo da remada, que começa leve e cadenciada depois do aquecimento e alongamento no solo. É nesse ritmo mais calmo que leva a vida desde o diagnóstico, em 2013. “Na época em que descobri o câncer, tive de tomar muitas decisões em pouquíssimo tempo.” Fez mastectomia e seis ciclos de quimioterapia.

Um ano mais tarde, quando se preparava para o implante de silicone definitivo, uma infecção no expansor (prótese temporária) adiou os planos de reconstrução. “Tive de tirá-lo e esperar três meses para colocar as novas próteses. E foi tão bom ficar sem nada. Eu sentia um desconforto que não sabia de onde vinha e pela primeira vez em muito tempo estava sem dor. Tinha me esquecido de como era viver assim. Depois disso, passei a fazer as etapas da reconstrução de forma mais espaçada, respeitando os limites do meu corpo.”

Atrás de Sara, no segundo banco da canoa, senta-se Margareth Vidal Cunha, 55 anos, funcionária pública aposentada. Ela é o “motor”, uma das mais fortes da equipe, a quem cabe contar as remadas. São dez para cada lado, e a troca acontece quando ela grita “hip”. Margareth teve câncer em 2014. Fez mastectomia e quimioterapia. Disposta a iniciar um novo ciclo de vida, começou a se exercitar para reabilitar o braço.

“Eu lia muito sobre mastectomia e não me conformava. Diziam que não podia carregar peso, mexer o braço, fazer nada. Não aceitava aquilo, era uma inquietação sem fim. Afinal, eu não tinha perdido o braço”, enfatiza Margareth. Naquele mesmo ano, visitou a exposição de fotos Retratos de uma Luta, sobre mulheres que enfrentaram o câncer de mama. No evento, ficou sabendo do projeto Canomama e se interessou. Desde sua entrada na equipe, emagreceu 10 quilos. “A canoagem nunca me deu nenhum problema”, conta, orgulhosa do braço torneado que conquistou.

Foi também nessa exposição fotográfica que Lourinete Santana Feitosa, aposentada, 58 anos, soube do Canomama. Seu diagnóstico foi feito aos 47 anos. Passou pelo mesmo périplo da mastectomia/quimioterapia/radioterapia. Ela é a terceira na canoa. Nunca havia praticado esporte. “Eu me senti completamente acolhida na equipe. O remo nos estimula a pensar. Por ser um esporte sincronizado, ensina a ver a outra, refletir e buscar a harmonia do movimento.”

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É com essa harmonia que a canoa desliza no Paranoá. A sincronia dos movimentos faz com que o barco pareça leve e sugere facilidade no remar. As meninas passam então aos tiros de velocidade de 400 metros e remam com mais rapidez e vigor. Foi nessa modalidade que venceram o Festival Ka Ora Dragon Boats pelo Câncer de Mama, em outubro de 2016, em Santos e São Vicente, no litoral paulista. O evento reuniu 110 mulheres. O Canomama bateu equipes do Canadá, da Argentina, Nova Zelândia e dos Estados Unidos. Todo o trabalho é voluntário. Neste ano, elas formalizaram o grupo e criaram a Associação Canomama de Saúde, Esporte, Cultura e Lazer do Distrito Federal. Outras dez mulheres foram selecionadas para participar do projeto e aprender a remar.

A nova meta da equipe é treinar para o Festival de Dragon Boat do IBCPC, evento realizado a cada quatro anos com mulheres do mundo todo. A competição será na primeira semana de julho de 2018, em Florença, na Itália. Mas o grupo precisará de patrocínio.

Enquanto o auxílio financeiro não chega, as meninas renovam o ânimo. Desde que o Canomama começou, remaram em três locais, mas nunca abandonaram a atividade. “É incrível o poder de transformação da canoagem na vida de cada uma de nós”, diz Larissa. Quase sempre, ela é a última na canoa, na posição de “leme”, responsável por dar direção à embarcação. O gosto por esportes ajudou-a a enfrentar o câncer. “A gente nunca sabe por que tem câncer. Resolvi encarar a doença como uma segunda oportunidade, uma chance de estabelecer as prioridades corretas na minha vida.”

O caminho não foi fácil. Para Larissa, a quimioterapia foi a pior etapa do tratamento. “Tenho de admitir. Meu cabelo era o que eu mais gostava em mim. Era cheio, tinha uma cor linda.” Uma semana depois da primeira sessão, ao tomar um banho de banheira, metade do cabelo soltou-se na água. Ficou sete dias sem lavar a cabeça, até que decidiu raspar. “Foi aí que saquei que tinha câncer. Quando você está doente mas tem cabelo, ninguém sabe que está passando por aquilo. Ficar careca foi libertador. Consegui comunicar para todos quem eu era naquele momento”, avalia Larissa.

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O treino termina e as meninas cumprem algo que virou tradição. Após um mergulho no lago, é hora do café da manhã. Cada uma traz algo para colaborar – pães, bolo, café, suco e frutas. É o momento de conversar e trocar experiências. Elas falam sobre como enfrentam os efeitos da hormonioterapia, tratamento à base de comprimidos diários para reduzir a concentração hormonal e evitar recidivas. Insônia e calorão são os principais efeitos colaterais do “tamoxinferno”, apelido que dão ao tamoxifeno.

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A aula coincide com o aniversário de Sara. Larissa conta que se lembrou e se esqueceu da data diversas vezes no caminho entre sua casa e a base de treinos, na Ascade. “Não é sua culpa, é a químio”, brinca a aniversariante. Elas sabem que esse é um dos efeitos colaterais do tratamento, conhecido como chemo brain.
Sara conta que a canoagem a ensinou muito sobre o sentido da coletividade e do compromisso com os outros. “A remada tem que ser igual, precisa haver sinergia. Esse também é o significado do meu tratamento. Tive um grupo de pessoas que me ajudavam a superar tudo. Era como se todas estivessem remando para o mesmo lado, em prol da mesma coisa. Eu estava nesse barco e, graças a elas, consegui chegar ao outro lado.”

Antes de descobrir a doença, Sara trabalhava como psicóloga. Com o fim do tratamento, decidiu dar um tempo na profissão. Passou a fazer cursos de panificação, confeitaria e cozinha e hoje trabalha em um restaurante. “Percebi que não conseguiria mais ajudar os pacientes, pois me envolvia e sofria com as histórias que me contavam. Senti que ainda não estava pronta para voltar. Hoje ganho menos, mas não é a questão financeira que me move. Aproveito minha família, meus amigos. Sou mais generosa, corajosa e feliz.”

Professora de educação infantil, Luciene Maria de Araújo, 48 anos, não participou da sessão de fotos de CLAUDIA. Viajou para visitar uma amiga, no Rio de Janeiro, que enfrenta uma recidiva de câncer de ovário. Diagnosticada em 2007, Luciene ouviu do médico que seu tempo de vida estava contado, não suportaria mais do que seis meses. Ela é a única da equipe que fez todo o tratamento pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Três meses se passaram entre a descoberta da doença e a cirurgia. Luciene só conseguiu fazer a reconstrução dos seios três anos após a mastectomia. “Foi muito difícil. Me sentia mutilada.” Anos depois, nódulos encontrados na outra mama e nos ovários levaram-na de volta ao bisturi. Retirou a mama e os ovários. Desde o diagnóstico foram nove operações.

Ainda assim, encara as adversidades com serenidade e um sorriso. Seu lema é uma famosa frase da poeta Cecília Meireles. “Aprendi com a primavera a deixar-me cortar e a voltar sempre inteira”, repete. “Remar no lago é uma terapia. Quando estou remando, entro em outro mundo, um mundo que não era o meu. Nunca me imaginei fazendo canoagem. Me sinto viva e vejo que a vida continua.”

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Barbara Monteiro de Matos, 34 anos, faz parte do grupo, mas também não figura nas fotos, feitas no início da manhã. Servidora pública e professora de artes marciais, rema ao meio-dia. Foi diagnosticada aos 29 anos. “Nunca me senti tão amada quanto na época em que descobri a doença. Depois que tudo passou, ressignifiquei minha vida. Relevo mais, dou valor ao que importa e busco viver mais leve.” O traço comum a todas é uma alegria ensolarada, capaz de contagiar a quem estiver por perto.

Atualização: As meninas do Canomamas fizeram bonito em Florença, na Itália, entre os dias 1º e 9 de julho de 2018. A equipe brasiliense foi destaque no Dragon Boat Festival. A competição reuniu 5.000 mulheres, de todos os continentes, em 197 equipes. De quatro baterias de competição, a equipe conquistou três delas. Esta foi a primeira vez que o Brasil participou do festival.

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