Áudios e vídeos acelerados: como o ritmo da internet aumenta a ansiedade
Os áudios acelerados no WhatsApp são a mais recente demonstração de como permitimos que o ritmo agitado das redes invada e comande nossas vidas
uxa, lá se foi metade de 2021. O tempo voou. Na verdade, o tempo passou normalmente. É a nossa percepção dele que está acelerada. Faz sentido, já que vivemos a maior parte da rotina nas redes sociais, e sabemos que o tempo delas é outro.
Talvez você ainda não tenha parado para pensar nisso, mas as situações a seguir vão parecer familiares. Antigamente, no escritório, você mandava um e-mail e esperava resposta. Hoje parece impensável “gastar esse tempo”.
Enviamos uma mensagem no WhatsApp, assistimos os dois tiques ficarem azuis e esperamos ansiosamente a resposta. Se ela não vem depressa, começa a ansiedade e o questionamento do por quê da demora. “As ferramentas tecnológicas têm muito impacto nas nossas vidas e possuem um efeito potencializador, ou seja, se você estava sem paciência, vai piorar; se você não anda tolerante, vai piorar”, explica Edwiges Parra, psicóloga, instrutora de mindfulness, colunista da VOCÊ RH e professora do MBA da Fundação Getúlio Vargas.
Isso impacta as relações profissionais e pessoais. Também mexe com a saúde. A ansiedade causa degradação do sono, dificuldade de resolução de obstáculos, problemas com a pele, perda de cabelo, náuseas, sensação de cansaço constante, compulsão alimentar, entre outros sintomas. “O cérebro não desliga, mas o corpo está fatigado. Tudo que tira sua paz, sua energia, autonomia, engajamento, precisa ser repensado”, adiciona Edwiges.
A mais nova ferramenta de aceleração da vida apareceu nos áudios do WhatsApp. No começo, era até engraçado ouvir uma mensagem da sua amiga com a velocidade 1.5, mas, pensando a longo prazo, o que isso significa?
A ferramenta de aceleração já existia no YouTube há muitos anos e vem sendo mais usada por alunos que estão assistindo aulas gravadas em casa. Dá pra pegar o conteúdo? Sim, se a pessoa se concentrar, o que nem sempre é o caso. Mas como vai ser na volta às aulas presenciais, com o professor falando na velocidade normal?
“O universo não funciona para servir você. As coisas têm seu tempo para acontecer. quando isso entra no racional, entendo que tem muita coisa além daquela mensagem que eu não vou dar conta”
Edwiges Parra, psicóloga
A pandemia, obviamente, piorou o cenário, mas não dá para culpá-la por esse comportamento nocivo, afinal, estando consciente do efeito na saúde mental, é nossa responsabilidade rever hábitos. “Eu trabalhei muitos anos numa agência de comunicação e precisávamos estudar a fundo os clientes antes das reuniões, então o chefe recomendava que assistíssemos os vídeos deles no YouTube em velocidade acelerada. Na hora, parecia um bom negócio, porque você cobria mais conteúdo. Só que, depois, comecei a perceber que conversas que aconteciam pessoalmente me incomodavam, porque parecia que a pessoa estava falando devagar demais”, lembra Grécia Augusta, 29 anos.
A gerente de marketing de Sorocaba, interior de São Paulo, decidiu não usar mais a ferramenta e nem aderiu à possibilidade no WhatsApp. “São pessoas do meu convívio, grupos de amigos, famílias, não me sinto confortável de fazer isso com elas”, explica. Aliás, desde o começo do ano, quando sentiu mais brutalmente os efeitos do isolamento, decidiu mudar a estratégia e reduzir o tempo nas redes. Em vez de usar as telas também para lazer, experimentou uma série de trabalhos manuais.
Estratégia semelhante foi adotada por Valquiria Poças, 57 anos. A carioca que mora em Aveiro, Portugal, comprou miçangas para fazer bijuteria e passou a dedicar mais tempo à leitura quando sentiu que o tempo no celular era predominante.
Trabalhando no mercado financeiro, ela passa muito tempo conectada para ficar a par das notícias em diferentes países. Além disso, um de seus filhos mora na Suíça e o outro, na Irlanda, e o companheiro passou cinco meses na África durante a pandemia.
“Fiquei sozinha, então buscava notícias, falava com os amigos e a família no Brasil. De certa forma, também foi um acolhimento, mas eu sinto que, se não estiver conectada, fico por fora de tudo”, explica ela, que, no limite, precisou tomar remédio ansiolítico e diminuir o tempo nos aplicativos.
“Essa tensão de lockdown e o agravamento da pandemia mexeram com a minha ansiedade e fiquei perto de explodir. Deixei de comentar nos grupos e as pessoas sentiram minha falta, porque normalmente sou leve, meio palhaça”, conta. Apesar do aprendizado adquirido nos últimos meses, Valquíria admite que, às vezes, usa a ferramenta de acelerar os áudios no WhatsApp. “As pessoas estão desabafando muito e a minha paciência não está das melhores, então a alternativa parece uma solução aceitável”, fala.
Hora da reflexão
Para Edwiges, é essencial olhar para o ato de acelerar um áudio sem julgamento, mas se questionando: por que eu sinto necessidade de fazer isso, de viver esse tempo mais corrido? “A gente dita o tempo da tecnologia, e não o contrário. Nós somos os usuários e devemos ter senso crítico de escolher o que vamos usar. Não precisamos, por exemplo, estar em todas as redes sociais e nem usar todos os recursos que elas oferecem”, explica. A psicóloga explica que esse processo não é fácil, porém. “Exige maturidade cognitiva e de repertório para questionar”, afirma.
O psicólogo Alexandre Coimbra, autor de A Exaustão No Topo da Montanha (Planeta), com lançamento previsto para agosto, acredita que precisamos reconhecer a nossa responsabilidade no processo. “A permissão para criar uma ferramenta de aceleração de voz vem da cultura agitada da vida. E isso, por sua vez, é consequência da distorção do conceito de sucesso. Hoje, se a pessoa está sempre correndo, é porque ela tem menos tempo e muita coisa pra fazer, sinal de que é bem-sucedida”, diz.
“A permissão para criar uma ferramenta de aceleração de voz vem da cultura agitada da vida. E isso é consequência da distorção do conceito de sucesso”
Alexandre Coimbra, psicólogo
Com isso, as limitações do tempo se dobram e invadimos os intervalos reservados a nós mesmas e à família. “O boom do mindfulness e de outras técnicas para desacelerar, se manter no presente, é uma resposta ao exagero da aceleração. Antes, aumentávamos a velocidade só um dia antes de um prazo importante ou num trabalho pontual. Agora, é o default”, acrescenta Alexandre.
No começo do home office, Claudia* recebeu o direcionamento de estar sempre online na ferramenta Teams. Em três minutos sem mexer o mouse, o status já mudava para ausente. “Aí chegavam muitas mensagens cobrando prazos, entregas. Transferi isso para o lado pessoal e passei a exigir mais de mim”, conta a paulista, 35 anos, que trabalha com eventos.
Claudia mudou de emprego, mas levou com ela esse hábito nocivo. Mesmo sem a paranoia do Teams, não consegue se ausentar do WhatsApp na hora do almoço. A dependência digital diminuiu há algumas semanas, quando a diretora da empresa reuniu todos os funcionários para dizer que estava tendo crises de ansiedade e pedindo para todos pisarem no freio.
“Essa sinalização dela foi um alerta para todos nós. Entendi que o trabalho não vai ter fim, então não adianta eu me dedicar horas seguidas e a mais só para entregar as tarefas antes. Outras vão surgir”, diz. Além dessa, mais uma mudança significativa foi separar o WhatsApp profissional do pessoal, num celular que ela desliga nos fins de semana sem eventos.
“Emprego nenhum compensava a ansiedade que eu estava tendo e acertei meus limites”, fala Claudia. “Minha paciência estava seriamente deteriorada. Não aguentava ver 15 segundos de stories do Instagram sem pular, não suportava ouvir um áudio inteiro. Banalizamos o urgente e cortamos o tempo de outras coisas importantes”, completa.
Alexandre ressalta a maior incidência da parentalidade distraída. São casos de pais e filhos que estão tendo dificuldade de conexão e isso chega até os consultórios. “Se os pais estão jogando com o filho e, enquanto esperam suas vezes, ficam no celular, deixam de dedicar a atenção à criança. Aí o filho cobra e não se sente atendido”, explica.
“Comecei a perceber que as conversas que aconteciam pessoalmente me incomodavam, porque parecia que a pessoa estava falando devagar”
Continua após a publicidadeGrécia Augusta, gerente de marketing
A “presença ausente” aumenta também a culpa que carregamos. Notou que, nos últimos meses, a maioria das conversas começa com um pedido de desculpas? Pode ser pela demora para responder ou por ter esquecido algum acordo.
“Você sente que não consegue cumprir todos os seus papéis em 24 horas. Do outro lado, a pessoa que não é respondida cria fantasias de que ela não tem valor.” Quebrar com esse padrão não será fácil, mas precisamos nos esforçar para levar o máximo de atenção às atividades offline. Pausas longe da tecnologia vão fazer muito bem.
Edwiges aconselha também ir mais fundo e repensar conceitos e expectativas. “O universo não funciona para servir você, as coisas têm seu tempo para acontecer. Falo para meus pacientes que há três partes do universo e elas formam um inteiro. Uma parte é a que está no nosso controle; a outra é o que está no controle do outro, que eu posso até exercer influência, mas não dou a palavra final; e tem a parte dos efeitos naturais e das questões socioeconômicas, que se limitam à decisão de um grupo muito pequeno de pessoas. Quando isso entra no racional, entendo que não adianta acelerar áudio, porque tem muita coisa para além disso que não vou dar conta”, explica.
“Analisando o que estamos vivendo, lembro daquele filme Click, em que tudo acontece acelerado. Não temos tempo para nada, nem para o colega de trabalho ou nossas mães. É como se estivéssemos dizendo: ‘Não me interesso no que você tem a dizer’ ”, conta a instrutora de ioga Vanessa Screpani, 38 anos, que mora em Jundiaí (SP).
Ela ficou tão impressionada com o recurso do WhatsApp que levou o tema para uma de suas aulas e fez um debate com as alunas. “A pandemia nos alertou que tem alguma coisa errada, podíamos parar e olhar, refletir. Em vez disso, parece que estamos fazendo o contrário”, diz ela.
Como 100% das suas aulas ainda estão acontecendo remotamente, Vanessa tornou o domingo o dia sagrado longe das redes e, aos sábados e durante a semana, reduziu drasticamente o uso. “Vi que ficava três horas no Instagram. Fazendo o que? Impactava na minha energia, eu me desconectei de mim. Agora, quando acesso as redes, estou consciente, atenta. Faço uso pontual e vou me dedicar a outras atividades que são minhas prioridades”, completa.
*Nome alterado a pedido da entrevistada