Não sei se isso acontece com todas as pessoas que vivem o câncer de mama, mas comecei a contar os dias para minha mastectomia. Hoje, faltam 6 dias. No início, quando tudo começou e visualizei esse momento, pensei que seria uma cirurgia do tipo outras que já fiz. Mais uma anestesia geral e eu acordaria livre do tumor e, quem sabe, com “seios melhores”, como disse uma amiga.
Cinco meses depois de um tratamento que não provocou nenhuma redução no tamanho do tumor e de aprendermos mais, os médicos pediram que eu me prepare para acordar sem minha mama esquerda e para viver sem ela por algum tempo. É pouco provável que algo diferente disso aconteça. Como normalmente são minhas vivências, uma coisa levou a outra e o pedido dos médicos se transformou em uma viagem que eu nunca tinha imaginado fazer antes.
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No meu caso, a decisão de não reconstrução imediata da mama tem a ver com o risco de encapsulamento que pode ser provocado pela radioterapia que vai começar logo depois da cirurgia – o encapsulamento pode ocorrer entre 20 a 30% dos casos – e pelo risco de necrose em decorrência das características do meu procedimento.
No Brasil, muitas mulheres vivem sem uma ou sem as duas mamas. Apesar da existência de uma lei que obriga a reconstrução da mama após a mastectomia, milhares de mulheres estão em fila de espera aguardando o procedimento e muitas outras escolhem não fazê-lo por razões que não consegui compreender totalmente ainda, procurei mas as pesquisas que encontrei não eram sobre o nosso país. O que está claro é que a mutilação da mama é considerada um fator de risco psicológico e psiquiátrico grave para a mulher porque, por diversas razões que incluem a construção social, este órgão é considerado um símbolo visível e definidor do que é ser uma mulher.
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A mama não é um órgão vital, mas podemos viver felizes sem ela? Podemos andar pelo mundo nos sentindo fortes, bonitas, femininas e desejáveis com apenas uma mama ou sem nenhuma delas? Sem ela, deixamos de ser uma mulher?
Ainda não vivi e talvez não chegue a vivenciar a volta da anestesia sem minha mama esquerda mas seguir a orientação dos médicos e me preparar para este momento me fez entender que a reconstrução imediata provavelmente me levaria a não perceber muitos vazios. Pelo menos de forma imediata, eu não me sentiria invadida pela ausência dos espaços simbólicos ocupados por esse órgão que carregamos no peito a vida toda. A mama é alimento, sustento, proteção, beleza, amor, sedução, prazer, sexo. A mama é feminino e masculino. Não à toa, cânceres habitam nossas mamas homem e mulher desde sempre. Mas, no feminino, a mama também é fetiche, objeto, tabu, pornografia. Se acontecer, acordar sem uma das minhas mamas vai sim me afetar porque o vazio que vai se revelar vai tornar muitas coisas presentes. Coisas que virão de fora e de dentro acessando meus apegos à forma, ao aparente, ao visível, ao olhar do outro.
Dia desses, uma amiga me convidou a ponderar sobre a possibilidade de tudo isso que tenho vivido ser uma agressão ao meu feminino, algo que ela pensou por saber que, além da mama que agora vai me deixar, vivi a partida dos meus ovários há 1 ano e meio e do meu útero há 2 meses . Claro que aceitei o convite e, mais uma vez, pensei muito, o suficiente para concluir que não, o que estou vivendo não é uma agressão ao meu feminino, é uma resposta a décadas de agressão. Uma consciência que surge enquanto me convida a me reconhecer e celebrar mulher sem aquilo que aprendemos a acreditar que, sozinho, nos define.
Os médicos pediram que eu me preparasse para a mastectomia e sinto que me preparei para uma vida inteira. Volta e meia eu acredito que essa jornada é pra curar muito mais que um câncer. Aos quase 59 anos estou aqui, sem hormônio, sem ovário e sem útero, mas totalmente grávida de mim.
Ana Cortat, vice-presidente executiva da Agência Soko, fundadora da Hybrid Collab e ativista em causas raciais, de gênero e LGBTQIAPN+, escreveu esse texto em 8 de fevereiro de 2024, após realizar a sessão de fotos com a artista Maria Ribeiro.