Após mais de sete horas de debates controversos e infundados nesta quarta-feira (27/9), o projeto de lei que visa proibir o casamento homoafetivo (PL 5167/09, apensado ao PL 580/07) teve a votação adiada, novamente, para o dia 10 de outubro (terça-feira). Caso a proposta seja aprovada em todas as esferas políticas, a população LGBT perderia uma série de direitos, como a possibilidade de constituir uniões estáveis e casamentos.
Mestre em Direitos Humanos, especialista em Direito Notarial e Registral, e autora do livro “Famílias Multifacetadas” [editora Revista dos Tribunais], a advogada Samantha Dufner garante que, por mais amedrontador que seja, o projeto é inconstitucional. Sendo assim, a grande probabilidade é que, mesmo que seja aprovado pelo Congresso, venha a ser barrado definitivamente no Supremo Tribunal Federal (STJ). Confira a análise da advogada:
O que propõe a PL 5167/09
Samantha explica que esta emenda — denominada pela especialista como um “verdadeiro absurdo” — é originária de um projeto de lei criado por Clodovil Hernandes em 2007, ano em que o estilista atuava como deputado federal. “Nesta época, Clodovil desejou criar uma lei que fosse favorável à união homoafetiva, propondo uma regulamentação patrimonial de núcleos familiares formados por pessoas LGBT”, clarifica a Mestre em Direitos Humanos.
O projeto, entretanto, passou por uma série de emendas. A última, realizada pelo PL (Partido Liberal), subverteu a proposta inicial, visando proibir o reconhecimento jurídico de casamentos e uniões estáveis de qualquer família desconectada do eixo heterossexual.
“Isso é extremamente problemático pois, ao retirarmos um núcleo de proteção do manto de direito da família, negamos direitos únicos e exclusivos a essas pessoas, como pensão alimentícia, direito à herança, direito a um regime patrimonial e a divisão de bens. Portanto, o projeto não vem para criar nada. Muito pelo contrário: ele vem para destruir todas as conquistas da comunidade que foram alcançadas em 2011, quando o STF legalizou a união estável de indivíduos homossexuais”, aponta.
Justificativa do projeto possui cunho religioso
Segundo Dufner, a justificativa por trás do projeto é de cunho religioso. Um dos deputados por trás desta emenda constitucional é um fundamentalista, Pastor Eurico (PL). Levando isso em consideração, a advogada traz um lembrete importante: “Temos em vigor a cláusula da laicidade, na qual o estado brasileiro não adota uma religião oficial e respeita a liberdade religiosa de todas as vertentes. Portanto, o deputado em questão está indo contra a laicidade ao impor uma visão fundamentalista que ainda insiste em afirmar que o casamento só deveria ser celebrado entre homens e mulheres, pois supostamente apenas esta união possibilitaria a procriação”.
Ela pontua que este não apenas é um raciocínio conservador, como também ignora as técnicas atuais de reprodução humana, que já estão viabilizando um parentesco biológico de filhos de pessoas homoafetivas. “Eu reitero: a única justificativa é religiosa, fundada em questões de preconceito e discriminação, oriundas de bancadas fundamentalistas.”
Projeto de Lei é inconstitucional
Samantha Dufner classifica o projeto como “flagrantemente inconstitucional”, declarando que, caso fôssemos um país mais sério nessa questão, essa proposta sequer deveria tramitar: “O artigo 60 — parágrafo quarto — da constituição deixa claro que é proibido tramitar qualquer projeto de lei ou emenda de constituição que busque abolir direitos e garantias individuais da população”, diz.
Ela explica que, por estes e outros motivos, o Ministério Público oficiou ao Congresso Nacional que ocorra o arquivamento imediato do projeto. Mas não para por aí: há outros três pilares legislativos que demonstram a inconstitucionalidade do projeto, sendo eles:
1. Cláusulas presentes no Artigo I da constituição
Nestas cláusulas, a constituição declara que são fundamentos do estado a dignidade, a cidadania e o pluralismo. “Dignidade é falar de todas as pessoas, não apenas pessoas heterossexuais. Quando falamos em cidadania, que é o direito a ter direitos, estão inclusas todas as pessoas humanas. E o pluralismo, contrário ao singular, traz a ideia da diversidade. Portanto, se temos uma diversidade religiosa, filosófica e política, também precisamos ter a diversidade de relacionamentos afetivos e constituições de família”, declara.
2. Princípio da igualdade material
Samantha pontua que o projeto fere o princípio da igualdade material, onde “todos são iguais perante a lei”. Neste caso, a emenda está subtraindo direitos de uma parcela significativa da população.
3. Violação do Artigo III, inciso IV
Por fim, o projeto também viola o ARTIGO III, inciso IV da constituição, que traz o princípio da proibição do preconceito e da discriminação em razão de sexo: “Quando eu falo ‘sexo’, estou querendo, de forma genérica, incorporar múltiplas orientações sexuais e identidades de gênero, incluindo pessoas não-binárias. Então, ninguém pode ser discriminado em razão de sua liberdade e direitos sexuais”, esclarece.
A família, relembra a especialista, é um direito fundamental assegurado em tratados internacionais. “Por todas essas razões, temos um projeto que é inconstitucional comparado ao texto da nossa constituição de 1988.”
Pessoas que apoiam o projeto podem ser punidas?
Deputados e senadores têm imunidade parlamentar, possuindo um manto protetor em relação às suas palavras, ideias e convicções externalizadas no exercício da função. “Eu entendo, sim, que existe uma vertente transfóbica, homofóbica e uma nítida compreensão e categorização de um crime de racismo entre os apoiadores do projeto”, ressalta. [O STF reconheceu, na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão, ADO 26, que qualquer tipo de discriminação contra a comunidade LGBT pode ser equiparada ao crime de racismo].
“Em razão da imunidade parlamentar, esses tais deputados e senadores, em tese, estão acobertados. Todavia, o restante da população não possui o mesmo amparo. Com isso, qualquer tipo de apoio, especialmente nas redes sociais, a uma prática homofóbica, pode ser punida como um crime de racismo”, dispara.
Há chances do projeto ser aprovado?
Samantha afirma que, no congresso, tudo é possível. Entretanto, a advogada acredita que a maioria do congresso nutra um senso de compromisso com os direitos das minorias. “Agora, caso não seja barrado no congresso, o projeto definitivamente será derrubado no Supremo Tribunal Federal por se tratar de uma lei flagrantemente inconstitucional”, clarifica.
Quem já casou perderia os direitos?
No caso de uma aprovação pelo Supremo Tribunal Federal, as pessoas que já se casaram ou vivem em união estável homoafetiva reconhecida continuariam acobertadas pelo direito adquirido através do ato jurídico perfeito. “Não, o PL, mesmo aprovado, não atingiria os casamentos já consolidados no passado. Porém, obviamente, criaria um obstáculo legal para constituições futuras, trazendo um grande prejuízo à comunidade LGBT no Brasil”, reforça.
Resolução nº. 175/2013 do CNJ
Dufner nos relembra que a legalização da união estável entre casais homoafetivos, aprovada pelo STF em 2011, continua sendo uma das mais avançadas do planeta, sendo reconhecida como patrimônio cultural, histórico e documental da humanidade nos registros do Brasil na UNESCO: “Muitos países europeus não possuem uma proteção tão direta quanto a nossa, que proporcionou uma decisão de efeito imediato e obrigatório para todas as pessoas em território nacional.”
Dois anos depois, em 2013, a Resolução nº. 175/2013 do CNJ determinou aos cartórios civis que aceitassem e celebrassem todos os pedidos de casamentos homoafetivos. “Também tivemos avanços importantes em relação à adoção LGBT e reprodução humana com a figura da barriga solidária. De fato, muitas consequências maravilhosas surgiram dessa legalização”, reitera.
Portanto, não podemos permitir que essas conquistas sejam ceifadas pela crescente onda de conservadorismo que vem tomando conta do Brasil desde o último governo: “O que tivemos nos últimos quatro anos foi uma chancela social para que as pessoas praticassem uma opinião contrária aos limites da lei, afrontando os direitos de indivíduos, especialmente os pertencentes a grupos minoritários”, opina.