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Secretária municipal, Joyce Trindade quer exaltar o potencial feminino

Aos 24 anos, ela assume uma secretaria voltada para políticas femininas no Rio de Janeiro e quer ir além da redução da violência contra as mulheres

Por Isabella D'Ercole Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 29 set 2022, 22h14 - Publicado em 22 fev 2021, 10h00
Joyce usa macacão vermelho e caminha por quadra de esportes
Joyce Trindade em Cosmos, o bairro da Zona Oeste em que cresceu e que inspirou sua trajetória política. Foto (Lucas Landau/CLAUDIA)
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Em que idade nasce a ambição política? Para alguns, muito cedo. Joyce Trindade começou a trilhar o caminho que a levou até a Secretaria Municipal de Políticas e Promoção da Mulher do Rio de Janeiro aos 8 anos.

Em Cosmos, bairro da Zona Oeste onde nasceu e cresceu, o Estado era ausente. “Não tinha programas, políticas e nem sequer urbanização. Por faltar tudo, sabia que teria que fazer algo”, conta ela, que costumava dizer que seria a primeira mulher negra presidenta do Brasil. “Isso não quer dizer que eu tenha essa vontade ainda hoje”, fala rapidamente, soltando sua risada simpática.

Enquanto os primos afirmavam que Joyce seria Miss Gouveia – a favela onde moravam –, seus pais a incentivavam a entrar na faculdade, mais especificamente na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Eles tinham ouvido que era a melhor. Não sabiam como se ingressava na instituição, mas colocaram na minha cabeça que era meu destino. Meu pai é um grande incentivador. Ele dizia que eu entraria na política para salvar Cosmos”, lembra. “Conto isso para dizer que foi me dado o direito de sonhar, o grande divisor na vida de meninos e meninas da periferia, onde os desejos são podados logo cedo.”

Cursando gestão pública na UFRJ, Joyce foi chamada pelo prefeito Eduardo Paes para ser secretária. O desafio é enorme. Não bastasse a desigualdade de gênero que já nos acometia, a pandemia aumentou o abismo que nos separa dos homens.

Maioria entre os desempregados e os trabalhadores informais, as mulheres também se viram responsáveis pelos filhos e idosos em casa com o fechamento de instituições por causa do isolamento. Agora, precisam de resgate urgente. “Queremos deixar um legado para que a pauta da mulher esteja sempre presente em todas as secretarias, independentemente de quem estiver no governo”, afirma a jovem.

Você tem a complexa missão de recriar uma secretaria que tinha sido rebaixada e submetida a outra na gestão anterior. E faz isso num momento conturbado do país e da situação feminina no Rio de Janeiro, onde tantos casos de feminicídio ganharam a mídia recentemente. Qual foi sua perspectiva ao aceitar o convite?

Faço parte de movimentos sociais há um bom tempo e sei da visão de mundo desse lado, de quem vive no território. Ao mesmo tempo, pelas minhas experiências e pela minha formação, entendo como funciona a gestão pública, a burocracia e o cuidado com o orçamento. Quando o Eduardo [Paes, prefeito do Rio] me fez o convite, compreendi que poderia unir essas duas pontas na construção de um futuro em que a gente quebre o ciclo de violência que a mulher carioca vive.

E não só isso, mas também que possamos olhar para as potencialidades delas; fugir da estratégia de focar apenas no último ato, o mais brutal, que é o feminicídio. Muitas secretarias ficam só nisso. Queremos fazer a promoção da cidadania, do direito à cidade, à educação e à saúde.

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Joyce usa macacão vermelho, lenço no cabelo e máscara no rosto. Ela está com os braços cruzados em frente a uma instituição pública
(Lucas Landau/CLAUDIA)

Como suas experiências em movimentos sociais podem ajudar nessa trajetória?

Para mim, o ativismo é a oportunidade de mostrar a potência da mulher negra e, a partir dela, pensar nosso futuro. Sempre acreditei que raça e gênero são elos que deveriam estar presentes em qualquer demanda. Nos movimentos, entendi a importância de ser ponte.

Sou uma das fundadoras do Projeto Manivela, que capacita lideranças comunitárias para que elas saibam quem procurar em casos de necessidade. Caiu uma árvore? Tem que falar com a Companhia Municipal de Limpeza Urbana. Só que as pessoas não sabem disso e aí as pautas desse tipo nem sempre chegam até quem possa resolvê-las. Eu tenho esse conhecimento e acredito que devo dividi-lo com a população.

Outro movimento que foi fundamental na minha caminhada foi o Mulheres Negras Decidem, do qual ainda sou conselheira. Lá, falamos sobre como a gente trata a vida da mulher negra sem ser um lugar marcado de morte, de falta de dinheiro, e sim pensando em projeção de direitos, de futuro. Promover narrativas ricas a partir da periferia é essencial para a reafirmação positiva dessa parcela da população, para que as pessoas tenham boas referências e se enxerguem em postos de relevância.

A menina que recebe educação sabe que o direito dela não termina no voto, mas que ela deve cobrar sua vereadora, deputada ou prefeita. E que ela também poderá chegar nesses cargos. Outro dia, um amigo entrou em contato falando que um grupo de meninas de um movimento da juventude da Zona Oeste queria me encontrar e me conhecer, mas estavam com vergonha porque achavam que não tinham roupa para vir à prefeitura.

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Eu mandei um áudio para ele encaminhar para elas, explicando que elas seriam bem-vindas de qualquer forma. A secretária não pode ser vista como uma pessoa distante, ela está à serviço do povo. E a prefeitura não deve ter esse estigma de um lugar distante, burocrático, difícil de alcançar.

“O ideal é que, no futuro, ao pensar em idosos, em educação ou em transporte, sempre exista um apontamento com viés feminino. A mulher estará em toda estrutura governamental”

 

Pouca gente tem conhecimento sobre o funcionamento da máquina pública, o que acaba distanciando a população do dia a dia do governo. Já que tem experiência nos dois lados, como pretende aproximar esse laço?

Foi a primeira pergunta que a gente se fez, eu e meu time. Faltam dados, então precisamos mapear e conhecer a mulher carioca em todos os territórios e em suas particularidades para também compreender suas demandas.

Vamos criar o Mapa da Mulher Carioca, um consolidado de dados de gênero com base em pesquisas de institutos renomados, promovidas por movimentos e com base nos números públicos. Os indicadores poderão ser usados por todas as secretarias para criar programas, pois a pauta feminina é interseccional. As informações levarão a um plano municipal para as mulheres, mas também influenciarão no plano diretor.

Ao mesmo tempo que olhamos para números, também estamos trabalhando a escuta ativa. Selecionamos articuladoras para cada território do Rio. Essas mulheres são responsáveis por fazer contato direto com lideranças locais e trazer para nós os problemas ou dúvidas, além de se aproximar de escolas municipais, centros de assistência social e outros mecanismos públicos para ali também encontrar necessidades das mulheres.

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Estamos providenciando um WhatsApp da secretaria para que mulheres da periferia, que têm dificuldade de acesso, consigam nos contatar. Esse primeiro mês já foi muito interessante. Meu time é formado majoritariamente por mulheres negras, então a sociedade se enxerga na gente.

Como montou sua equipe?

Pensei nos pilares da nossa estratégia e busquei mulheres que são referências em cada área. Muitas delas são especialistas, mas, por serem negras ou não terem inglês, francês fluentes, não eram absorvidas pelo mercado. Misturei pessoas da academia com gente dos movimentos e com quem já tinha experiência pública.

A mais nova da equipe tem 21 anos e outra tem 25 anos só de trabalho na prefeitura. Para alguns cargos, abrimos um processo seletivo e montamos um banco com profissionais negras, indígenas, trans, que oferecemos também a outras secretarias para preencher vagas diversas.

Metade dos secretários da prefeitura do Rio tem menos de 35 anos, o que gerou algumas críticas, porque nossa política é tradicionalmente conduzida por homens mais velhos. Você tem 24 anos. A idade já foi um empecilho na sua trajetória?

Idade, raça e gênero são sempre barreiras para mulheres. Pessoalmente, não vejo como um problema; mas a crítica existe. Na matriz africana, a gente escuta muito os baobás, os anciãos. Acredito na troca geracional, por isso meu time tem mulheres mais novas e mais velhas, que trazem diferentes vivências. Estamos nos fundamentando em números e dados para entregar resultados eficientes.

“Eu conheci Marielle Franco logo depois que entrei na faculdade e foi uma ruptura na minha vida. Ela era do mesmo campo que eu e estava na política. Pensei: ‘É possível!’”

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Na estratégia da sua gestão, quais são os pilares?

O mais importante é deixar um legado. Não importa se a gente ficar quatro, oito anos e quem vier depois, a pauta deve continuar. E ela tem que ser transversal, ou seja, a questão de gênero precisa estar presente em todas as secretarias. Estamos articulando entre secretários, servidores e com vereadoras para que isso seja oficializado institucionalmente, em projetos de lei.

O ideal é que, no futuro, ao pensar em idosos, em educação ou em transporte, sempre exista um apontamento com viés feminino. A mulher estará em toda a estrutura governamental. Um dos projetos que estamos desenvolvendo, por exemplo, é a criação, junto da Secretaria de Transportes, de um bilhete de transporte para vítimas de violência, para que elas possam percorrer o trajeto de denúncia em delegacias, fóruns ou de tratamento de saúde. Hoje, o custo dessa passagem impede que a mulher dê um passo adiante na luta contra a violência.

Muitas mulheres em situação de vulnerabilidade perderam seus empregos durante a pandemia. Outras se viram sobrecarregadas com as crianças em casa. Durante a campanha, Eduardo Paes disse que criaria um programa de emprego específico para essa parcela da população. Como vocês estão olhando essa questão?

Abrimos um banco de cadastro para essas mulheres, assim conseguimos entender a influência do índice de desenvolvimento humano sobre cada território e como ele incide sobre a vida da mulher. Também olhamos o Programa de Integração Social, o PIS, que nos ajuda a acompanhar quando e no que ela trabalhou.

Em breve, anunciaremos um decreto que reserva parte das vagas de contratos e licitações na prefeitura para essa parcela da população. Cientes do cenário de crise fiscal que o Rio de Janeiro vive, também temos, junto com outras secretarias, conversado com empresários, mostrando a potencialidades das mulheres, para gerar empregos na iniciativa privada.

Não estamos falando só do grande empresário, mas do pequeno, que tem um ou dois funcionários e nunca pensou nos benefícios de contratar uma mulher que é mãe, por exemplo. O objetivo é criar uma rede de empregos que vá além do sustento, mas que possibilite desenvolvimento, para que elas saiam dessa situação de vulnerabilidade.

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Joyce sentada olhando para a câmera
(Lucas Landau/CLAUDIA)

Você citou vários projetos de longo prazo. Quais acha que poderiam ser aproveitados por outras secretarias da mulher pelo Brasil?

É importante ressaltar que eu e minha equipe estamos estudando outras secretarias pelo mundo, há ótimos exemplos de projetos e ações inspiracionais. Não queremos inventar a roda. Mas uma coisa da qual me orgulho e que acredito ser essencial para qualquer ambiente é a diversidade do meu time.

A diversidade não é fim, mas caminho da mudança – sem contar que é fundamental para a criação de políticas públicas e para a efetividade do serviço público. Pessoas de diversas zonas da cidade, de perfis diferentes se complementam. Não adianta eu pedir a alguém que nunca viveu a demanda de um território para sugerir uma solução.

A pessoa não vai captar as necessidades. Queremos até registrar por escrito essa nossa experiência, porque vemos que não é tão comum. Meu corpo, o corpo do meu time não é o regular na prefeitura. Somos mulheres com cabelos afro, turbantes. Todo mundo nos conhece porque nos destacamos, somos diferentes. Como eu me visto, meus colares, tudo isso é uma disputa de narrativa que precisa ser mais frequente.

Como enxerga a situação da mulher negra na política nacional?

Nos últimos anos, acompanhei a candidatura de mulheres negras extraordinárias, muito capazes de ocupar espaços na gestão pública. Mas a sociedade ainda nos vê como a empregada doméstica, e não como a vereadora, a prefeita, a deputada. Nossos corpos são estigmatizados, cabem apenas ao trabalho informal.

Há algum tempo, trabalhei no Leblon, um bairro rico do Rio de Janeiro. Eu uso muito branco e as outras mulheres negras que trabalhavam lá e usavam branco eram empregadas. Cheguei a cogitar se deveria deixar de usar branco. Aí fiquei chocada como o padrão que nos é imposto reflete até na cor da nossa roupa. São coisas simbólicas e que afetam. A mudança do imaginário da mulher negra vai impactar diretamente na política.

A grande mídia precisa fazer sua parte, mostrando mulheres negras advogadas, médicas, criando o imaginário social dessas possibilidades. Enquanto não formos vistas como cidadãs, seres políticos capazes de construir o futuro, ninguém vai votar na gente; vamos continuar sendo uma ou outra que conseguiu ser eleita.

A educação básica é um caminho de construção de futuro, mostrando para as garotas que elas podem ser o que quiserem. Eu conheci Marielle Franco logo depois que entrei na faculdade e foi uma ruptura na minha vida. Aos 8, eu queria salvar Cosmos, aí o tempo passou e eu não pensava na possibilidade de ser eleita, não tinha referência. Quando vi Marielle, que era do mesmo campo de estudo que o meu, ocupando um lugar na política, pensei: ‘É possível!’.

Marielle Franco se tornou referência internacional, mas teve sua trajetória interrompida por um ato brutal de violência. Isso não deixou você com medo?

Muito. Não só eu como minha equipe. É interessante perceber como isso afeta nosso cotidiano. Todo dia, ao sair da prefeitura, eu marcava meu horário. Até o dia que a Dany Fioravanti, minha assessora técnica especial, me recomendou parar.

São questões que não passam pela cabeça de um secretário branco. Meu time está sempre ligado. Se vamos para a rua, elas ficam olhando ao redor. Não é o habitual. O medo nos acompanha. Ao mesmo tempo, não é ele que vai nos paralisar. Seguiremos fazendo nosso trabalho e cuidando da nossa segurança. Se a gente não fizer, quem fará por nós?

O que falta para termos mais mulheres eleitas na política

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