Como entender a crise política em que o Brasil está mergulhado
Para compreender a temporada 2020 do Brasil, é necessário voltar a alguns capítulos que já alertavam sobre um roteiro com reviravoltas perigosas
Há uma figura frequentemente invocada nas redes sociais que atende pelo apelido de “roteirista do Brasil”. A cada revertério nacional surgem os tuiteiros dizendo que nem a americana Shonda Rhimes, responsável por dramalhões como Grey’s Anatomy, seria páreo para ela. A brincadeira com a personagem, evidentemente fictícia, não é nova. Em 2017, a gigante do streaming Netflix se apropriou do enredo da política brasileira para divulgar a série House of Cards, sobre os bastidores da política nos Estados Unidos segundo a perspectiva de um congressista inescrupuloso. Primeiro, o banner da série apareceu sob o gênero “infantil para brasileiros”; depois, o marketing partiu para o argumento de que era difícil concorrer com a realidade no país e que seriam necessários ao menos 20 roteiristas premiados para dar conta. Tal manifestação havia sido inspirada em uma revelação do jornal O Globo sobre uma frase atribuída ao então presidente, Michel Temer. “Tem que manter isso aí, viu?”, teria dito o político sobre a boa relação entre o empresário Joesley Batista, da JBS, e o ex-deputado Eduardo Cunha, na época preso em Curitiba durante a operação Lava-Jato. O episódio foi apenas mais um na lista de fatos que estremeceram a República. É preciso rebobinar para rever momentos determinantes que ajudam a explicar o primeiro semestre de 2020.
O país vive hoje um cenário de ascensão conservadora. Alguns podem até ter a impressão de que ela chegou imensa, feito onda, arrasando tudo por onde passou. Entretanto, a invasão se deu sorrateira, em marolas. “A política brasileira sempre foi assim; o que mudou é que, do início do século 20 até meados de 2014, vivemos um período liberalizante em termos de valores, política e sociedade. O movimento viabilizou-se por meio de uma série de programas sociais que buscaram ampliar a participação de grupos historicamente marginalizados, como as minorias étnico-raciais, as mulheres e a população LGBTQI+. Ele foi insuficiente, é verdade, mas representativo na história brasileira quando falamos em cotas nas universidades públicas, na ampliação do investimento no ensino superior, na rearticulação de movimentos feministas e até na própria pluralidade do discurso público brasileiro. A explicação para a atual situação tem mais a ver com reação do que com ação. É um movimento de pessoas que sempre estiveram no poder atuando contra o projeto progressista”, conta a cientista política Tatiana Vargas Maia, coordenadora do curso de história na Universidade La Salle, em Canoas (RS).
Entre 2013 e 2016, no âmbito legislativo, já pipocavam várias ações que demonstravam essa resposta. Segundo Tatiana, alguns exemplos são o Projeto de Lei 5.069 – sobre cuidados pós-violência sexual em hospitais, baseado em um discurso conservador sobre os direitos reprodutivos femininos –, a Escola sem Partido e o Estatuto da Família. Ainda ressoava, entretanto, a ideia de que o Brasil era o país do futuro e seguiria numa toada de progresso. “Talvez tenhamos sido excessivamente otimistas. Não percebemos que as nossas conquistas e instituições eram menos sólidas do que pensávamos, que nossa democracia estava menos internalizada como cultura política do que imaginávamos. A eleição de Jair Bolsonaro (sem partido), depois do impeachment de Dilma Rousseff (PT), era o resultado óbvio do que aconteceria em um contexto de polarização. Já não seria alguém de esquerda a assumir, só que Bolsonaro não ocupa apenas uma posição oposta no espectro político, mas é também alguém autoritário”, reflete.
BRIGA DE GIGANTES
Desde 2019, seu primeiro ano de gestão, o presidente já tensionava as instituições. No regime democrático, existe um entendimento de que os poderes têm seus escopos, mas também delimitam uns aos outros. “Essa é uma engrenagem constitucional para que exista um controle do poder pelo próprio poder. É dessa maneira que se evita que uma instituição ou alguém extrapole as suas competências e atribuições ou que haja alguém atuando de forma absoluta”, explica Roberto Dias, professor de direito constitucional na Fundação Getulio Vargas de São Paulo. Quando um dos poderes, seja qual for, tem a vocação para ampliar a própria atuação de forma não democrática, ele precisa negar a legitimidade dos outros, pois é assim que reduz as restrições e consegue avançar no exercício de domínio. “Nesse sentido, nossa relação recente é complicada porque o Judiciário, sobretudo, assumiu para si prerrogativas que não são as clássicas dessa esfera, embora válidas. Então tornou-se mais fácil colocar em xeque sua legitimidade para mais de um grupo político. Por exemplo: há quem discorde do modo como o processo de impeachment da Dilma foi conduzido no Supremo Tribunal Federal e quem, mesmo tendo uma visão política completamente oposta ao primeiro grupo, desconfie do Judiciário por acreditar que adentrou a agenda moral (como nas restrições à criminalização do aborto). No centro do conflito atual, a maior questão em jogo é sobre autorizar ou não a investigação de políticos com cargo, do presidente ou de seus familiares”, afirma Flávia Biroli, professora de ciência política na Universidade de Brasília (UnB).
A erosão das instituições se intensifica também nos discursos, como mostrou o vídeo da reunião ministerial de abril, em que o então ministro da Educação, Abraham Weintraub, se refere aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) como “aqueles vagabundos”; ou quando o presidente marca presença em manifestações que expressam desejos inconstitucionais, como o fechamento do Congresso Nacional e a volta do Ato Institucional nº 5, que inaugurou um dos períodos mais sombrios da ditadura militar, em 1968. As demonstrações de autoritarismo engrossaram o coro de que existe um esgarçamento dos princípios democráticos, além de traços fascistas na atual conjuntura. O principal deles é a constante presença, ainda que no horizonte, da ideia de eliminação do outro – sendo o outro qualquer um que faça oposição. “Quando você ameaça prender pessoas ou colocá-las em um ‘paredão’, quando dá apelidos a agentes políticos, você deslegitima a respeitabilidade do outro em sua integridade. É dito que as pessoas não trabalham, que são criminosas. O outro pode ser, sim, um adversário político, mas também pode ser a população jovem negra da periferia, as mulheres. Não é só alguém que discorda e a disputa segue no campo das ideias, é o inimigo; portanto, sua eliminação torna-se algo considerado o tempo todo”, diz Flávia.
Sob esse ponto de vista, o discurso valida as justificativas para a manutenção do poder. “A mensagem é de que o indivíduo, o líder, está acima do que é caracterizado como corrupto. Essa é base discursiva envolve a mudança permanente de narrativa. Primeiro, esses inimigos são os acadêmicos; depois, os intelectuais, os próprios membros daquele grupo, o comunismo. Mas são sempre diferenças, consideradas improdutivas, que devem ser intimidadas ou eliminadas. Também se constitui do constante medo e perigo, criados ou exagerados para vender a proteção. São ameaças psíquicas que chegam às pessoas em um momento de mundo complexo”, explica Christian Dunker, professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. É por isso que, apesar de acontecerem nos cenários de espaços de poder e de decisão, os posicionamentos são, muitas vezes, pautados e apoiados por uma base popular. “Não podemos esquecer que um terço da população está ao lado dessa condução. É uma parcela importante e que não pode ser ignorada”, ressalta Flávia.
CRISE DE RESPONSABILIDADE
No pano de fundo da reunião ministerial citada, das manifestações e das farpas trocadas entre instituições, está a pandemia do novo coronavírus, que até o fechamento desta edição já havia passado de 1,6 milhão de infectados e 64 mil mortos. O que era para ser uma crise sanitária tornou-se mais um campo de batalhas políticas. Desde a chegada do vírus ao Brasil, a relevância dos riscos foi contestada por Jair Bolsonaro, que chegou a se referir à Covid-19 como uma “gripezinha”, talvez uma das frases mais emblemáticas do ano.
A postura já vinha provocando conflitos entre as esferas municipal, estadual e federal. Sem um plano nacional de contenção da doença em que prefeitos, governadores, ministério e presidente seguiriam alinhados, ficou a cargo dos estados decidir qual seria a melhor maneira de lidar com o assunto, o que culminou na decisão do STF de que o governo federal não poderia concentrar as decisões de combate à pandemia. Enquanto isso, uma dança das cadeiras rolava no Ministério da Saúde. À medida que crescia a popularidade do então ministro, Luiz Henrique Mandetta, se acirrava o desgaste da relação entre ele e Bolsonaro – que chegou a dizer, em referência a Mandetta e Sergio Moro, à época responsável pela pasta da Justiça, que “tinha ministro virando estrela”. Luiz Henrique alcançou 76% de aprovação popular, segundo pesquisa da consultoria Atlas Político. A briga foi no campo político, mas também no da ciência.
Com divergências cada vez mais irreconciliáveis com Bolsonaro, o ministro foi exonerado em 16 de abril, quando tínhamos mais de 30 mil casos e 1 952 mortes confirmadas pelo novo coronavírus. A cadeira foi assumida pelo médico e empresário Nelson Teich, que levou 19 dias para repensar as diretrizes de combate até apresentar um plano. Menos de uma semana depois, acabou também deixando o cargo, sob o boato de que teria sido pressionado a alterar a bula da cloroquina, medicamento sem efeito comprovado no tratamento da doença, para que se tornasse um dos protocolos de saúde de combate. Em seu lugar, assumiu o general Eduardo Pazuello como interino. Até o fechamento desta reportagem não havia sido nomeado um novo ministro da Saúde. A partir do momento em que a doença ou a gravidade dela são colocadas em xeque pelo Poder Executivo, isso se transforma em ações ou na falta delas para o enfrentamento.
“Há uma absoluta recusa a apresentar um plano articulado de enfrentamento à pandemia no país”, argumenta Flávia Biroli. É o princípio da negação – afinal, não é preciso lidar com o que não existe ou com o que não tem importância –, mais uma prova de que o discurso se relaciona com o desenvolvimento de políticas públicas e também com a maneira como uma nação enfrenta os percalços como coletivo. Um exemplo é o desencorajamento para seguir outras recomendações, como as da Organização Mundial da Saúde, demonstrado pela redução nos níveis de isolamento social após declarações que amenizavam a pandemia. Outro fator é a transferência de responsabilidade. Se “cada filho que cuide de seu pai e de seu avô”, como foi dito em uma coletiva no Palácio da Alvorada, então fica a cargo do indivíduo se proteger de um problema que é público, o que é especialmente difícil numa situação como esta. Igualmente importante é a relação entre a situação e a resiliência diante da dificuldade. Não à toa, uma pesquisa da Universidade Federal de São Paulo já tenta entender como a falta de gestão da crise sanitária afeta também a saúde mental da população.
MAS E AÍ, PARA ONDE VAMOS?
Será preciso ficarmos atentas aos próximos capítulos para entender quais rumos a nação há de tomar. O que sabemos até aqui é que o primeiro semestre se definiu pela imprevisibilidade e a sensação de imobilidade diante do caos. Também entra na conta a perda de peças importantes do cenário: os cinco ministros que deixaram o cargo. Entre eles, Sergio Moro, símbolo da plataforma anticorrupção, uma das principais bandeiras eleitorais do governo Bolsonaro. O ex-juiz saiu alegando que houve tentativa de intervenção na Polícia Federal por parte do presidente com a intenção de favorecer os filhos. Além dele, ganharam destaque as saídas de Weintraub, que foi indicado a um cargo no Banco Mundial, e Carlos Alberto Decotelli – que se demitiu antes mesmo da posse. Sob a tutela de Rodrigo Maia, que encerrará o mandato em janeiro de 2021, há mais de 40 pedidos de impeachment contra o presidente, que “serão apreciados em momento oportuno”, segundo Maia. “Cabe a Rodrigo entender se existem os componentes criminoso e político para que um processo seja iniciado”, esclarece Roberto Dias.
Do ponto de vista das mulheres, o que se sabe é que a pouca representação nos deixou de fora da maior parte dessas grandes decisões nacionais, especialmente nesse caleidoscópio de crises. Ainda que com vagas abertas para os ministérios, nenhuma indicação foi feminina. A falta de representatividade, mais do que meramente representação, é ingrediente para uma maneira masculinizada de tratar das grandes crises nacionais. A condução machista do país, que, não é de hoje, ganhou contornos ainda mais expressivos com o reforço de estereótipos de masculinidade tóxica, exemplificados pelo apelo do uso da força bruta, apropriação de termos e expressões machistas e homofóbicas como formas de ofensa ou demonstração de desconforto e, sobretudo, pela dificuldade em entender as tramas tão complexas do tecido social brasileiro.
“As mulheres perdem muito e algumas perdem mais. As negras, as indígenas, mulheres que não são de classe média ou ricas. No caso da pandemia, por exemplo, se falou em reabertura de comércio com escolas fechadas. Sabemos que grande parte das famílias de baixa renda é sustentada por uma figura feminina que precisa trabalhar. Se tivéssemos um governo diverso e efetivamente interessado em uma perspectiva interseccional de política, poderíamos ter resultados melhores. O Brasil é um país complexo e heterogêneo, mas essas características precisam ser usadas para gerar mais justiça, e não mais desigualdade”, diz Tatiana Vargas Maia.
Os episódios confirmados na segunda temporada do ano incluem os desdobramentos dos processos contra o presidente da República, o do caso Queiroz e a retomada dos compromissos depois de meses em quarentena. Mais para a frente, ainda teremos eleições municipais. Para onde vamos? Dado o enredo visto até agora, seria um exercício de futurologia sem sucesso tentar adivinhar.