Está confirmado: o zika vírus causa microcefalia. Em 13 de abril, a notícia divulgada pelo New England Jornal of Medicine atribui a descoberta à equipe de cientistas do Centro de Prevenção e Controle de Doenças, dos Estados Unidos. As brasileiras grávidas estão ainda mais alarmadas com o que, agora, é visto como síndrome congênita do zika — diferentemente do que vinha sendo divulgado. Ela vai além da microcefalia, podendo provocar outras más-formações, doenças neurológicas graves, cegueira e surdez. Um grupo de acadêmicos e ativistas liderado pela ONG feminista Anis – Instituto de Bioética preparam uma ação que chegou ao Supremo Tribunal Federal e será votada nesta quarta-feira, dia 7 de dezembro.
Nesse período de incertezas sobre uma epidemia que o Estado não consegue controlar, ela pede a ampliação dos direitos reprodutivos – incluindo o aborto – e ações de atenção à maternidade. Conversamos sobre o tema com o médico José Gomes Temporão, ex-ministro da Saúde entre 2007 e 2010 e hoje diretor executivo do Isags, órgão que capacita o Ministério da Saúde dos 12 países da União de Nações Sul-Americanas (Unasul).
As mulheres estão suficientemente informadas sobre o zika vírus?
Elas estão sendo mantidas sob a mais tenebrosa ignorância quanto ao significado da síndrome e os verdadeiros impactos dela no desenvolvimento das crianças. Não estou vendo ninguém informar de maneira corajosa e transparente. Tem uma certa edulcoração. Uma coisa de açucarar quando dizem: “O bebê vai ser estimulado e pode melhorar nisso, naquilo”. Não pode. É claro que existem nuances, menor ou maior déficit. Mas a maioria terá problemas gravíssimos pela vida toda. Com convulsões, necessidade constante de medicações e acompanhamento de neuropediatra, fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional, fisioterapeuta. Com um custo absurdo. O Estado e grande parte das famílias não têm condições para bancar tudo isso.
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Quais são as linhas da ação que segue para o STF?
São cinco. 1 Acesso à informação sobre a síndrome. 2 Divulgação massiva de todos os métodos anticoncepcionais. 3 Distribuição pesada de contraceptivos. 4 Direito de a mulher com a doença zika interromper a gravidez. 5 Direito de ser amplamente cuidada pelo Estado se decidir levar a gravidez adiante, com atenção integral ao filho e a toda a família.
A ação sobre o aborto do anencéfalo, levada ao STF pela Anis, demorou oito anos para ser aprovada. Nesta emergência sanitária, caberia um pedido cautelar?
Sim. A situação é aguda, não se pode esperar. Não sou jurista, mas é possível solicitar no Supremo uma liminar. Neste momento, inúmeras mulheres estão interrompendo a gravidez, em péssimas condições, por temor de que o filho possa ter sérios problemas de saúde. Defendo o aborto não apenas nessa situação, mas como direito reprodutivo da mulher. Vejo como uma questão de saúde pública: 1 milhão de abortos são feitos por ano, na clandestinidade, matando mais as pobres. Mas sempre que se fala nisso a discussão é rancorosa e radical.
Naquele caso, o argumento era de que o anencéfalo tinha chance zero de viver. Diferentemente do microcéfalo.
Que tese será defendida no STF?
Estamos falando de um drama. Não só de números, taxas, incidência da doença. Trata-se de mulheres. Muitas já abandonadas pelo marido. O Estado tem que dar uma resposta a elas, que estão vulneráveis. Não temos uma vacina – a estimativa para a produção é de um ou dois anos. Não dispomos de um método diagnóstico barato, que possa ser usado massivamente. O que existe é uma forma caríssima, demorada, que registra a presença do vírus no organismo durante 15 dias, no máximo. Depois, ele desaparece. Então esse exame não serve para nada. O diagnóstico é feito pela clínica, com base em sintomas, e eles se parecem com os de outras viroses. E hoje sabemos que 80% dos que têm contato com o vírus não apresentam sintoma algum. A transmissão mais importante é da mãe para o filho. Das que tiveram bebês com microcefalia, 77% são pouco assistidas. O Supremo deve considerar tudo isso.
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Por que está sendo configurada uma síndrome congênita com outros impactos para a saúde?
O vírus foi descoberto na África nos anos 1940 e provocou quadros benignos, com manchas na pele. Ele desapareceu e voltou nos anos 1950 na Ásia. Sumiu e em 2013 ressurgiu. Chegou aqui dois anos mais tarde. Sofreu mutações, ganhou comportamento distinto. Ele atravessa a barreira placentária, que protege o feto de infecções. Já foi encontrado no líquido amniótico, levando infecções a bebês que não sobreviveram. Em pesquisas feitas em mulheres que abortaram, viu-se que o grau de dano no cérebro é devastador. Há lesões no aparelho ocular, apontando cegueira; no sistema auditivo; e implicações motoras bem sérias.
No período em que o senhor esteve no governo, a dengue, causada pelo mesmo mosquito, o Aedes aegypti, preocupava cinco estados, mas já havia previsão de ele e a doença se expandirem. Hoje, os problemas atingem todo o país. Quando está sozinho, na intimidade,o senhor faz alguma reflexão ou se pergunta: “Onde foi que erramos? O que faltou fazer?”
É preciso entender bem o contexto. Em outubro passado, o Nordeste tinha um dado estarrecedor: mais de 80% dos focos estavam em recipientes que a família usava para estocar água porque não havia água corrente de qualidade por 24 horas. Falta investimento, uma política de saneamento básico: 50% das casas no país não têm água e esgoto. E vai demorar décadas para atingir 100%. O que resta para fazer? Orientar as famílias para que vedem os recipientes onde estocam água. Mas é uma falácia afirmar que se resolve o problema apenas com o cidadão fazendo o dever de casa. É importante, mas não tudo. Estou reconhecendo a precariedade das nossas ferramentas. A saúde acaba sendo o espaço de sofrimento. A determinação dos processos fica fora das mãos do ministro da Saúde. Ele não tem nenhuma governabilidade sobre a política de saneamento ambiental, o orçamento da União e as prioridades. Então, resta a ele fazer o que fiz: viajei como um desesperado pelo Brasil inteiro, reuni prefeitos, dei entrevistas, falei o tempo todo em usar essa ferramenta precária que é a mobilização das pessoas. Mas faço ressalvas: essa doença foi detectada graças à excepcional qualidade da vigilância epidemiológica do Sistema Único de Saúde. A maior parte dos estudos que estão sendo publicados recentemente sobre a doença, é de universidades públicas brasileiras.
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