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Elas querem encurtar o caminho até a igualdade de gênero

Mais de um século nos separa do equilíbrio, mas essas brasileiras querem antecipar o marco com trabalhos que devem florescer nos próximos anos

Por Letícia Paiva Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 11 mar 2020, 20h00 - Publicado em 11 mar 2020, 20h00

Não deveria ser assim, mas um genocídio que vitimou entre 800 mil e 1 milhão de pessoas foi o acontecimento central para que Ruanda começasse uma caminhada pela igualdade de gênero. Em 1994, o país da África Oriental teve o ano marcado pela eclosão de uma guerra étnica que resultou na execução e fuga de parte da população, principalmente de homens.

Após o fim do conflito, com o desequilíbrio de gênero posto, só restava ao governo acatar as mulheres como a principal força de trabalho da nação. Com sua crescente relevância econômica, elas também precisaram ser incluídas nas tomadas de decisões. Atualmente, ocupam cerca de 60% do Parlamento, a maior presença feminina do planeta. Em 2003, a nova Constituição incorporou princípios para garantir a igualdade entre homens e mulheres, inclusive cotas.

Em um país rural e patriarcal, a compulsória metamorfose elevou Ruanda à nona posição no ranking de igualdade de gênero do Fórum Econômico Mundial, que mapeia 153 países levantando indicadores como trabalho, política e educação. A nação africana figura próxima a Islândia, Noruega, Finlândia e Suécia, países nórdicos conhecidos por suas políticas de igualdade, majoritariamente iniciadas na década de 1970. O relatório calcula que seriam necessários até 163 anos para que a equidade fosse alcançada em todo o mundo – o Brasil está lá na 92ª posição. Mesmo entre os países reconhecidos por seus esforços em garantir equidade, a corrida ainda é extensa. Para virar esse jogo e os avanços saírem da marcha lenta, a luta precisa ser de toda a sociedade.

Todo poder a elas

Logo após as últimas eleições, a recém-eleita deputada federal Alê Silva denunciou seu partido, o Social Liberal (PSL), de ter usado mulheres como candidatas laranja durante a campanha eleitoral. Essa prática não é incomum e se resume a lançar concorrentes como fachada para cumprir a meta obrigatória de 30% de candidaturas femininas. Além disso, várias candidatas teriam sido coagidas a repassar recursos de campanha originados do fundo partidário para colegas homens. O organizador do esquema seria o membro do PSL e atual ministro do turismo Marcelo Álvaro Antônio. A investigação do caso ainda não foi concluída.

“Escândalos desse tipo fazem com que as mulheres se afastem ainda mais da política partidária, temendo ser usadas”, afirma a brasiliense Letícia Medeiros, 30 anos. Ao lado da carioca Karin Vervuurt, 28, ela criou em 2017 a Methods, empresa de inteligência de dados e, em seguida, a organização #ElasNoPoder, entidade dedicada a capacitar e promover a inserção de mulheres na política. É mais do que essencial. Afinal, amargamos um Congresso com somente 15% de mulheres na Câmara dos Deputados e no Senado. Em cargos executivos, elas são apenas uma governadora de estado e três prefeitas de capitais pelo Brasil.

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Letícia Medeiros usa sua experiência em campanhas políticas para formar mulheres candidatas (Augusto da Costa/CLAUDIA)

Além da descrença dos partidos, as candidaturas femininas têm menos interesse dos financiadores. “Geralmente, são homens brancos e ricos, acostumados a apoiar seus pares. E elas não se enxergam como pertencentes a esse espaço”, explica Karin, que defendeu seu mestrado em ciência política sobre o tema na Universidade de Brasília (UnB). Ela explica que é comum as mulheres não receberem incentivos para uma potencial candidatura dentro da própria comunidade e, nos partidos, os ataques à sua condição de gênero podem minar sua confiança. A percepção ficou ainda mais evidente após Letícia e ela acompanharem candidaturas femininas nas últimas eleições, inclusive de Marina Silva (Rede) na corrida presidencial.

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Para o próximo pleito, em outubro deste ano, planejam oferecer formação e acompanhamento online para pré-candidatas. “Para as mulheres, os custos da dupla jornada de trabalho são muito alto no exercício de seus direitos políticos. Precisamos nos esforçar para ir até elas, onde estiverem”, diz Letícia. Com a iniciativa, elas tentam atacar as lacunas de formação política de forma pragmática. “Campanha eleitoral é uma corrida. Não se trata apenas de apresentar planos, mas de criar pontes de diálogo com os eleitores. Só assim se ganha”, afirma. A falta de mulheres – diversas em raça, origem e classe social – na política é um tema especialmente sensível para a equidade. Afinal, elas precisam formular as políticas públicas das quais são as principais usuárias.

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Karin Vervuurt estuda como ampliar a participação feminina na política (Julia Rodrigues/CLAUDIA)

A intrincada divisão do trabalho

Evidentemente, ter mais mulheres em altos cargos políticos não é garantia de que serão tomadas decisões justas para as mulheres. Em 2009, o Congresso de Ruanda reduziu o tempo de licença-maternidade. Essa mudança advém, provavelmente, da percepção de que esse período as penaliza no âmbito profissional. Praticamente naturalizados, os estereótipos de gênero sobre a divisão do trabalho dentro e fora de casa geram esse tipo de lógica.

A falta de comprometimento dos homens nos afazeres domésticos afeta tanto as ruandesas quanto as brasileiras e até as nórdicas. Cria uma cadeia prejudicial. No Brasil, as mulheres dedicam 22 horas por semana aos cuidados com os filhos, idosos ou com a casa, obviamente sem remuneração, segundo indicadores de 2018 da Organização das Nações Unidas (ONU). Essas tarefas mantêm 42% das mulheres em idade reprodutiva em todo o mundo fora do mercado ante 6% dos homens, conforme dados reunidos pela confederação internacional Oxfam e lançados este ano. Elas ainda são maioria em empregos de meio-período ou domésticos (representam 80% dessa força de trabalho), com pouco acesso à formalização e a direitos.

“Remunerar mal ou simplesmente não pagar essas pessoas demonstra que não se dá importância ao que elas desempenham, embora sejam primordiais para o funcionamento da sociedade. Ao mesmo tempo, as exclui do sistema econômico”, afirma Katia Maia, diretora executiva da Oxfam, que calculou que o custo desse trabalho não pago às mulheres seria de 10,8 bilhões de dólares anualmente.

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Para as mais escolarizadas, a desigualdade em relação aos homens aparece na diferença salarial. Quanto mais avançam na carreira, maior a lacuna – mesmo que tenham mais estudo do que eles, como mostram os dados de ensino superior brasileiro. Uma das razões é que se espera que as mulheres engravidem, o que as levaria a se dedicar menos à própria profissão. Além disso, é mais comum que elas abram mão de suas posições em favor de transferências do companheiro e, principalmente, para se dedicar aos filhos. Dados da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio (Pnad) apontam que, em se tratando da metade mais pobre da população, as mulheres recebem 75% dos salários dos homens; entre as de renda mais alta, fica em 60% – se comparados os extremos, mulheres negras ganham menos da metade dos salários dos homens brancos.

Na prática, atribuir às mulheres as principais responsabilidades pelos cuidados faz com que elas sejam desconsideradas na hora de receber promoções. As que têm filhos podem ganhar até 40% menos do que as que não são mães, também de acordo com a Pnad. Para mudar esse quadro, a saída mais efetiva é criar incentivos concretos para os homens participarem dos cuidados domésticos e dos filhos.

Uma das políticas de maior sucesso é a implementada desde 1974 na Suécia, em que, atualmente, mães e pais têm direito à licença após o nascimento dos bebês. Ao todo, são 480 dias para serem tirados ao longo de dois anos. No início, as mulheres ficavam com a maior parte do tempo. Para pressionar os homens a fazer sua parte, o jeito foi oferecer 30 dias compulsórios, perdidos se não fossem usados. Funcionou e, em 2014, eles eram responsáveis por um quarto do período. Na Alemanha, para tirar uma licença de 12 meses, é preciso que os homens usufruam de ao menos um. Também ficou claro que, para dar certo, a licença do pai não pode estar atrelada à mãe abrir mão da sua.

Por aqui, o direito das mulheres de se ausentar do trabalho sem descontos por quatro meses obrigatórios por lei (e até seis em decisão da companhia) é, muitas vezes, entendido pelas empresas como uma desvantagem na contratação delas. Nossa realidade é ainda mais complexa se consideramos as cerca de 12 milhões de mulheres que são mães solo. Via de regra, esse cuidado acaba sendo dividido com avós, tias ou vizinhas, mas nunca com outros homens. “Alguém vai precisar ficar sem trabalhar para isso se não houver creche ou escola. Não são medidas mirabolantes para sanar o problema, é questão de empenho político”, diz Katia.

Chamada às empresas

O setor privado muitas vezes é o agente mais poderoso em impulsionar mudanças sociais. “O que puxa as transformações é o capital e já está clara a correlação entre diversidade e melhores resultados, inclusive financeiros. Não dá para ignorar isso”, diz a paulistana Olivia Ferreira, 38 anos, fundadora da Enlight, que reúne dados sobre diversidade em companhias abertas no Brasil, e da frente nacional do 30% Club, iniciativa criada no ano passado para ampliar as mulheres nos conselhos de administração de empresas. A formação (que tem até dez integrantes) é a instância máxima da administração dessas empresas.

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Olivia Ferreira pressiona companhias para incluir diversidade nos conselhos, a mais alta instância (Julia Rodrigues/CLAUDIA)

De acordo com o levantamento de Olivia – com dados que as empresas listadas na bolsa de valores são obrigadas a divulgar –, atualmente as companhias que estão na faixa das melhores práticas de governança abarcam menos de 8% de mulheres em seus conselhos (não há informações abertas sobre raça). Mais da metade das empresas tem conselhos inteiramente masculinos. Segundo relatório deste ano do banco Credit Suisse, a presença delas aumenta em média 4% da receita, ou seja, essas corporações estão deixando de ganhar dinheiro.

Em parte, a boa notícia é que, no último ano, organizações que antes não contavam com nenhuma mulher passaram a ter uma; e as que possuíam apenas uma ampliaram o número. Esse reflexo, ainda tímido, é fruto de movimentações como a de Olivia à frente do 30% Club, que, em 2019, enviou cartas aos presidentes de conselhos destacando a urgência do tema. Além disso, os grandes investidores têm pressionado por mudanças. “As companhias que falham perante o mercado começam a ter exposição negativa, o que deve se intensificar. Fazemos uma pressão construtiva”, justifica Olivia.

A maioria – homens brancos – já foi privilegiada por muito tempo. Precisamos de metas para mudar isso logo

Olivia Ferreira

Agora, os próximos passos são convencer empresas que estão se preparando para abrir capital a já chegarem com políticas assertivas. Isso é importante não só para as profissionais mas para as companhias envolvidas porque acaba influenciando o mercado como um todo. A ideia é que a presença de mulheres não se restrinja aos conselhos, pois, para outras chegarem lá, é preciso que elas comecem a ocupar posições mais abaixo, como gerências e diretorias. Nesse caso, valem inclusive políticas de contratação de minorias para cargos iniciantes. “A maioria – homens brancos – já foi privilegiada durante muito tempo; então não faremos essa mudança em um ano. Mas ela precisa acontecer com metas claras e logo”, defende a paulistana.

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Nosso corpo, nossa vida

A recente onda do feminismo que vivemos adotou como um de seus motes a frase “o futuro é feminino”, mas fato é que muitas das pautas prioritárias já eram reivindicadas desde meados do século passado, quando mulheres saíam às ruas em marchas pedindo por seus direitos. Ter controle sobre o próprio corpo era – e ainda é – uma exigência que parece distante. Nesse sentido, é central a discussão sobre a descriminalização do aborto.

No Brasil, a pena para a mulher que interrompe a gravidez chega a três anos de prisão. Fazer um aborto era, em certa medida, tolerado no Brasil até o final do século 19, quando o ato passou a ser crime. Antes de o Código Penal de 1940 estabelecer a regra atual (que permite a interrupção da gravidez em caso de estupro ou de risco de vida para a gestante), o comércio de substâncias abortivas era frequentemente feito sem complicações. Desde então, avançamos em alguns aspectos, mas não estamos perto de mudar a legislação.

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Gabriela Rondon promove o debate qualificado sobre o direito ao aborto (Augusto da Costa/CLAUDIA)

Aliás, das últimas vezes que o assunto veio à tona em grandes debates nacionais, o motivo eram potenciais retrocessos. Entretanto, em 2018, uma audiência pública no Supremo Tribunal Federal (STF) para discutir o tema promoveu que o direito das mulheres ao aborto fosse visto de forma lúcida, como uma preocupação de saúde pública. “Ficou claro que a questão não é se somos contra ou a favor. Moralmente, as pessoas são contra. A discussão é sobre se a proibição é constitucional, justa ou eficiente como política”, afirma Gabriela Rondon, 29 anos. A advogada do Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero foi uma das autoras da ação no Supremo a favor da legalização do aborto, com base no entendimento de que, ao não abrir essa possibilidade às mulheres, a vida delas estaria desprotegida.

A Pesquisa Nacional do Aborto, que mantém os dados mais abrangentes sobre o tema, estima que uma em cada cinco mulheres até 40 anos fará um aborto. “O debate fica mais concreto quando falamos que criminalizar não influencia as mulheres a não abortar. Mas faz com que seja um processo inseguro, colocando a própria vida em risco. O ideal é que o sistema de saúde faça essa regulação”, aponta Gabriela.

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Moralmente, as pessoas são contra. A discussão é sobre se a proibição do aborto é constitucional, justa ou eficiente

Gabriela Rondon

Ela explica que o Canadá tem um dos casos mais interessantes de descriminalização, também devido a uma ação na Suprema Corte, em 1988. Assim como aconteceria no Brasil, a lei já existente foi reinterpretada pelos ministros. Depois disso, normativas técnicas do Ministério da Saúde do país determinam como será o atendimento na prática. “A gravidez indesejada é o fim da linha da falta de acesso a uma série de direitos”, diz Gabriela, que entende que deixar de tratar aborto como tabu faz com que mais informação segura circule.

Frequentemente, a regulamentação é apontada como capaz de reduzir o número de mulheres que já recorreram à interrupção mais de uma vez, já que elas ficariam mais próximas dos equipamentos de saúde. Em Portugal, desde a descriminalização, em 2007, houve uma queda de cerca de 15% nos índices na década seguinte. “Temos dificuldade em desmistificar o tema em grande medida por causa da hegemonia de um pensamento religioso que tem se aliado ao conservadorismo”, afirma a advogada.

A situação é recorrente em toda a América Latina. Entretanto, ela é otimista ao lembrar que há avanços: o presidente recém-eleito da Argentina, Alberto Fernández, anunciou que deve remeter projeto de lei para retirar a proibição, posição que já recebe o apoio da sociedade civil; a corte da Colômbia também discute ampliar a permissão, que atualmente autoriza mulheres a interromper a gravidez alegando que afetaria sua saúde mental.

O direito de viver

Há um profundo impacto do recorte de gênero nas mortes violentas femininas que a nossa legislação e o poder público têm sido incapazes de evitar. As mulheres são assassinadas em casa por homens conhecidos. Desde 2015, ano em que o feminicídio foi incluído como um agravante do crime de homicídio, os registros do crime vêm crescendo. “O que buscamos entender é se houve um aumento do fenômeno ou apenas um entendimento maior sobre o crime que sempre existiu”, diz Isabela Sobral, 24 anos, pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

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Isabela Sobral reúne estatísticas de violência para guiar políticas públicas (Julia Rodrigues/CLAUDIA)

A falta de estatísticas acuradas sobre a violência de gênero faz com que seja ainda mais difícil lidar com o problema – e é nessa frente que Isabela age. Acontece frequentemente por causa da subnotificação das vítimas, mas também de registros frágeis das polícias, sobretudo em agressões sexuais e ameaças psicológicas. O FBSP é uma das principais fontes do assunto, unificando dados de todo o país. “Com a pressão sobre os estados por registros de gênero, passamos a ter informações que antes ficavam invisíveis”, afirma.

A violência afeta mulheres de diversos modos, colocando mais uma vez as negras e periféricas no extremo da desigualdade. Elas sofrem mesmo quando não são o alvo. “As mortes dos filhos jovens as impactam. E são presas por envolvimento em negócios criminosos dos companheiros”, diz Nathália Oliveira, 32 anos, cofundadora da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas (Inppd), que existe desde 2017. Como presidente da Comissão Municipal de Políticas sobre Drogas e Álcool em São Paulo por cerca de três anos, ela percebeu a fragilidade das propostas no assunto, que tinham dificuldade em romper com modelos racistas e sexistas. “É preciso pensar em políticas que gerem autonomia e em sistemas de segurança pública que visem justiça social, não agindo como se cidadãos fossem inimigos”, diz ela.

Sim, o caminho para a igualdade é longo e tem muitas frentes. Mas a liderança corajosa dessas mulheres em alguns segmentos – contando com o apoio da sociedade – é a ferramenta mais forte que temos hoje a nosso favor.

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Nathália Oliveira luta por políticas de segurança pública mais justas (Julia Rodrigues/CLAUDIA)

 

 

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