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“Quando a pandemia passar, serão as UBSs a lidar com as sequelas severas”

Médica de família e comunidade em Recife, Rafaela Pacheco explica por que devemos continuar atentos ao papel estratégico da atenção primária na saúde

Por Letícia Paiva Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
29 out 2020, 19h30
A médica do programa Saúde da Família Rafaela Pacheco e a agente comunitária Jane Diva enfrentaram a pandemia em uma comunidade de Recife (Brenda Alcântara/CLAUDIA)
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Apenas algumas horas após publicar, na terça-feira (27), decreto incluindo a política de atenção primária do Sistema Único de Saúde (SUS) dentro do escopo de programa de privatizações e concessões, o governo do presidente Jair Bolsonaro revogou o texto. O recuo se deu diante da reação negativa de parlamentares da oposição, secretários estaduais de saúde, entidades médicas e profissionais de saúde – as principais críticas são de que esse seria um movimento para entregar as unidades básicas de saúde (UBSs), ponta inicial do sistema, para a iniciativa privada. 

No anúncio da revogação em seu perfil no Twitter, o presidente justificou o decreto afirmando que ele visava o término de obras para a construção e reforma de UBSs, “bem como permitir aos usuários buscar a rede privada com despesas pagas pela União”. A Secretaria-Geral da Presidência da República afirmara que a medida não representava decisão final, sendo necessários estudos técnicos para avaliar a continuidade do plano. As explicações não foram admitidas por quem viu no texto uma privatização dos postos de saúde – caso do presidente do Conselho Nacional de Saúde, Fernando Pigatto, e de Ricardo Heinzelmann, da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, que se manifestaram publicamente contrários a ele. 

Mesmo com a aparente vitória com a ideia ter sido retirada de pauta, muitos profissionais de saúde da atenção básica ainda observam com preocupação essa iniciativa do governo federal. Ao colocar a porta de entrada para o SUS na mira de um programa de concessões e privatizações, o receio é de que a abrangência do sistema e o atendimento disponibilizado a toda a população sem restrições poderiam ser comprometidos.

“Não podemos arriscar uma cobertura que precisa dar respostas a todas as questões de saúde nos diferentes pontos do Brasil“, diz Rafaela Pacheco, médica de família e comunidade em Recife, professora do curso de medicina da Universidade Federal de Pernambuco em Caruaru e presidente da Associação Pernambucana de Medicina da Família e Comunidade. Durante a pandemia de Covid-19, ela articulou a unidade em que trabalha para proteger a comunidade do avanço da pandemia, sob os esforços dos agentes comunitários de saúde. Ela conta como é a atuação da atenção primária além dos consultórios médicos e seu papel estratégico no combate a epidemias.

Quais são as responsabilidades da atenção primária no sistema de saúde como um todo? Em que se baseia o modelo brasileiro?

A estratégia saúde da família, que é o principal modelo, é coração do SUS. Costumamos repetir que o Brasil é a única nação do mundo com mais de 100 milhões de habitantes que tem um sistema universal. Isso não é pouca coisa. Estimamos atender cerca de 135 milhões de pessoas diretamente na saúde da família, em cerca de 45 mil unidades básicas. E esse atendimento vai além de um prédio, de consultórios. Trata-se também de um enorme programa de vacinação, um dos maiores do mundo; do acompanhamento de doenças crônicas; do cuidado pré-natal, que é feito ali, na ponta do sistema. Acompanhamos os brasileiros de seu nascimento até quando ultrapassam 100 anos.

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Sabemos que há uma capilaridade muito grande no sistema e cerca de 70% da população depende da saúde pública. Qual é a importância das unidades nesse sentido? São elas que fazem o acompanhamento mais substancial? 

A proposta é que sejamos capazes de resolver a maior parte dos problemas relacionados à saúde já na atenção primária. Boa parte o nosso oficio é resolver imediatamente e, se necessário, avançar para outras etapas, com internação e procedimentos mais complexos. Fazemos isso lidando com a heterogeneidade que marca a população brasileira. Nós estamos nas periferias das grandes cidades, em unidades fluviais em rios no Norte do país, atendendo a população indígena.

É uma cobertura que precisa dar respostas a todas as questões que cada localidade demonstra. Para isso, é fundamental a presença dos agentes comunitários de saúde, que acompanham de perto, sabem onde as pessoas vivem, trabalham, suas particularidades – até porque elas costumam morar na região de atuação. Esse é um trabalho silencioso, mas que garante prevenção e serve para evitar complicações de saúde mais graves. Por sua capacidade de chegar aos lugares mais remotos e atender de perto, esse modelo é reconhecido internacionalmente. 

Como é a atuação das unidades básicas de saúde e do programa de saúde da família para conter infecções e epidemias?

Essa não é a primeira epidemia que lidamos na saúde da família. Passamos pelo surto de HIV, em que se teve uma resposta eficiente com um programa de atendimento universal que é referência; mais recentemente, fizemos o enfrentamento ao vírus da zika, que continua a acontecer. Todos os anos, outras arboviroses, como dengue e chikungunha, são grandes desafios que chegam primeiro até nós. O trabalho de enfrentamento ultrapassa o interior de uma UBS, pois é da porta para fora que garantimos o cumprimento de medidas sanitárias. Não nos basta o encontro clínico.

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Como isso se deu durante a pandemia? 

A pandemia de Covid-19 é, evidentemente, ainda mais desafiadora. Na minha unidade, precisamos construir protocolos antes mesmo de sermos orientados oficialmente, acompanhando casos suspeitos e repassando informações. Não tenho dúvidas de que estaríamos em situação ainda pior sem a saúde comunitária. Mas, além de lidar com o novo coronavírus, não podíamos descontinuar tratamentos de doenças crônicas, atendimentos de pré-natal e tudo o que é absorvido pela atenção primária. Depois que a pandemia passar, também serão essas unidades a lidar com sequelas mais duradouras, como as complicações de quem foi infectado, reflexos psiquiátricos na população em geral e até doenças que não foram diagnosticadas e tratadas neste ano. Diferentemente de um leito de hospital, que pode ficar livre, essa atenção demorará muito mais a acabar. 

Por que foi tão forte a reação negativa em relação à proposta de incluir a atenção primária em programa de concessões e privatizações?

Não vi com surpresa a medida ou mesmo o recuo posterior, que não significa que o plano não possa retornar remodelado. Na minha visão, isso vem sendo anunciado há algum tempo. Vejo como parte desse movimento nos últimos anos o Programa Nacional de Atenção Básica (Pnab) ter desobrigado municípios de ter agentes comunitários e a criação do Programa Previne Brasil, que determina o repasse de recursos não mais pela população abrangida, mas por produtividade de atendimento. Essas intenções nos deixam em alerta.

Qual é a preocupação em relação a isso? 

Não podemos entender a porta de entrada do SUS a partir da lógica de captação do lucro, o que existiria ainda que o serviço não fosse cobrado diretamente. O cuidado integral anda na contramão de lucrar. A saúde não pode ser entendida como um custo para o poder público, mas é um investimento. Precisamos de um sistema universal, e não apenas de cobertura para consultas, mas de tudo o que caminho junto com o atendimento clínico. Se a ponta do sistema for colocada na lógica do lucro, o atendimento integral, mais trabalhoso e custoso, vai sair do orçamento.

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É importante destacar que o SUS não pertence aos Ministérios da Saúde ou Economia. Ele tem organização própria que engloba níveis federal, estadual e municipal de governo. Ele tem princípios e é constitucional. Não é possível fazer mudanças sem uma ampla discussão com a sociedade. Mas acredito que há cada vez mais pessoas interessadas na pauta da saúde, começando a entender o trabalho silencioso que cuida, até indiretamente, de milhões de pessoas. O SUS é o maior patrimônio do povo brasileiro. Só precisamos seguir o que já está determinado em leis e normativas, com financiamento adequado.

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