Qual destes biquínis veste melhor uma mulher?
Em um corajoso desabafo, a melhor surfista brasileira, Silvana Lima, duas vezes campeã mundial, reclama que não é bonita o suficiente para ter um bom patrocínio
Na imagem acima, duas mulheres incríveis. À esquerda, Alana Blanchard. Ela é free surfer e modelo. Representa uma das principais marcas de surfwear do mundo. À direita, Silvana Lima. É a melhor surfista brasileira e já foi, por duas vezes, vice-campeã mundial. Vive em busca de patrocínio mas, apesar de seu desempenho acima da média, conquistado com seu próprio esforço, não consegue despertar o interesse de grandes patrocinadores. Tampouco de surfwear. “Quem não é modelinho, não tem patrocínio. Acaba ficando de fora. É descartável.”
Pratico o surf desde os 15 anos de idade, quando era uma das raras figuras femininas no outside a ficar em pé sobre uma prancha. Sempre fui uma surfista mediana, de finais de semana, já que moro na capital paulista. Mas preciso dizer que, além do prazer de deslizar sobre as ondas e praticar um esporte, não havia nada que incentivasse a presença das mulheres no mar. Nas revistas especializadas, a participação feminina se resumia aos closes em biquínis fio dental.
Havia, sim, Andrea Lopes. Foi tetracampeã brasileira e a primeira a vencer uma etapa do mundial de surfe. Mas talvez o momento máximo de atenção que recebeu da imprensa não especializada foi a capa da Playboy, em 2007. Ou quando decidiu falar sobre a anorexia nervosa, doença que a fez pesar menos de 40 quilos.
Depois, veio Tita Tavares. Tita, cearense da região carente do Titanzinho, forte, baixinha. Órfã aos 4 anos, começou a surfar aos 6, em uma tábua de madeira. “Surfa como um homem”, ouvia meus amigos surfistas dizerem, referindo-se a um surfe de manobras potentes, firmes, rápidas. Aos 12 anos, já disputava campeonatos internacionais. Sozinha, com a cara e a coragem, sem preparador físico, nutricionista, psicólogo. Bateu na trave do campeonato mundial. Perdeu patrocínios. Adoeceu. Nunca mais recuperou o apoio necessário às viagens e inscrições.
E só. Não havia espaço para as surfistas na imprensa. Mas tudo bem, porque para os homens também não. E então surgiu Silvana Lima. Outra cearense, de Paracuru, origem humilde. Muito antes de Gabriel Medina carregar o esporte, com louvor, para o horário nobre da tevê, dos jornais e de marcas de mídia não especializada, Silvana já fazia miséria em nome do Brasil. Em 2008, a nordestina chegou à elite do surf feminino mundial – são apenas 17 vagas, dominadas por havaianas e australianas. E, por dois anos seguidos, foi vice-campeã do circuito ASP.
Não é fácil manter-se como surfista da elite profissional. É preciso viajar muito, pelo mundo todo. Para ter uma ideia, se Silvana, hoje, quisesse comprar passagens para a etapa de Gold Coast, na Austrália, saindo da Bahia, onde mora, gastaria no mínimo 15 mil reais, de acordo com o site decolar.com. Inclua aí os custos de inscrições, alimentação e transporte – o total pode, facilmente, dobrar de valor. A questão é que o circuito é feito de dez etapas, em praias paradisíacas ao redor do globo. Tahiti, França, Havaí… Faça as contas.
Lá no início, Silvana contava com bons patrocinadores. Mas eles desapareceram depois que ela sofreu uma lesão no joelho em 2011, que perdurou até o ano seguinte. Para voltar a se qualificar, tentou de tudo: começou com crowdfunding, “SilvanaFree”. Contou com a ajuda da apresentadora Fernanda Lima.
Mesmo sem grandes resultados, conseguiu voltar à elite. A ASP, agora, é World Surf League. Para correr as dez etapas, Silvana precisou vender um carro e um apartamento no Rio de Janeiro. Nessas condições, em 2015, ficou em 14º lugar no ranking final. E, por isso, caiu para a segunda divisão. Faturou, em prêmios, 99.250 dólares. Desconte aí os impostos, a serem cobrados nos países de origem e na hora de trazer o dinheiro para o Brasil, e sobra pouco mais de 60% desse valor. (Vale dizer que John John Florence, havaiano que ocupou a 14º posição no ranking masculino, no mesmo ano, ganhou 131.500 dólares em premiação. O atleta, no entanto, tem um contrato de patrocínio anual com uma marca de surfwear estimado em 4 milhões de dólares.)
Nesta semana o caso de Silvana veio à tona, graças a um vídeo da BBC internacional, em que ela insinua que, no surfe, a imagem da surfista vale mais que o talento dentro da água. De fato, ao observar o portfólio de atletas das principais marcas de surfwear do mundo, dá pra notar uma espécie de padrão: louras, cabelos lisos, magras.
A havaiana Alana Blanchard, na foto que abre este artigo, talvez seja o exemplo mais claro desse padrão. Ela surfa bem, sim, mas não está entre as 28 melhores do mundo. E não é o surfe o seu atributo mais explorado pela marca de surfwear que ela representa. Nas lojas ao redor do mundo, as vitrines são tomadas pelas fotos de seu corpo escultural – afinal, o produto à venda são biquínis. Em seu perfil no Instagram, com 1,6 milhão de seguidores, as imagens em atitude sexy suscitam os comentários mais machistas e agressivos que se pode imaginar. “Quero fazer sexo com você”; “Quero lamber a b… dela”.
Na esteira contrária à de Alana, a havaiana Carissa Moore, atual campeã mundial, faz campanha para empoderar garotas por meio do esporte. Ela lembra que, assim que foi campeã mundial pela primeira vez, aos 18 anos, começou a receber críticas por seu… peso. “No surf, em que as garotas usam uniformes muito reveladores, a atenção vai para o corpo, em vez da performance. Trabalhei duro para ser a melhor do mundo. Sofri muito por as pessoas estarem olhando meu corpo, em vez do meu surfe”, revelou, no documentário “What Makes Us”, da ESPN.
A campeã se esforça para encorajar garotas a fazer esportes, para que eles não sejam considerados uma coisa de meninos. Em seu perfil no Instagram, que tem 8 vezes menos seguidores que o de Alana, esta foto, em particular, diz muito sobre a importância dos modelos inspiradores: uma garotinha escolheu ser Carissa no projeto de profissões de sua escola.
Em 2016, Silvana Lima, aos 31 anos, reinicia sua jornada em busca de um lugar na elite do surf mundial. Desta vez, com um grande patrocinador, um gigante da telefonia. Como diretora de CLAUDIA, defensora da equidade de gênero e adepta desse esporte que define meu estilo de vida sob vários aspectos, sinto-me obrigada a repercutir o corajoso desabafo dessa brasileira. Um modelo que abre caminho para as meninas da nova geração. Como a catarinense Tainá Hinckel, de apenas 13 anos, que tem roubado a cena nos campeonatos mirins – “Quero ser campeã mundial”, a garota repete, convicta. E, se isso é um sinal dos tempos, Tainá já tem um patrocinador.