Jandira Feghali (PCdoB-RJ), deputada relatora da Lei Maria da Penha quando o projeto tramitou na Câmara dos Deputados, viajou o país inteiro, fazendo audiências públicas para entender o que queriam as mulheres. No final do périplo, ela conseguiu acomodar na lei, em vigor desde 2006, vários avanços que contemplam a prevenção, medidas protetivas às vítimas e maior apoio a elas na recuperação. Além de criar varas especializadas para julgar os casos e a previsão de programas de educação do agressor. Agora, a deputada propõe ampliar a lei para proteger também transexuais e transgêneros. Jandira fala dessa novidade e de outros projetos que consolidarão, se aprovados, o combate a esses crimes que atingem milhares de brasileiras todos os dias.
Por que um projeto que abriga os transexuais e transgêneros na lei Maria da Penha? É uma demanda apresentada por essa população? O projeto é inspirado em lei já existente em outro lugar do mundo?
Jandira – Há um componente biológico muito importante na questão da identidade de gênero. Os mais renomados especialistas da psiquiatria afirmam através de comprovados estudos que existe um cérebro feminino e um masculino, determinado no útero da mãe por hormônios masculinos circulantes. O cidadão cresce, se vê num corpo diferente em relação ao seu cérebro, e passa a querer mudar de sexo, a fim de ajustar o seu corpo à sua mente. Logo, vive como mulher. Essa questão, inclusive, surgiu de um questionamento da minha filha de 21 anos, estudante de psicologia. Ela perguntou: “Mãe, o cidadão transexual não é protegido da violência doméstica?”. E é verdade, foi uma pergunta repleta de modernidade, do debate contemporâneo. Daí percebemos que a aplicação da lei ficava a cargo da interpretação de juízes.
A demanda social surge exatamente aí, quando o transexual ou transgênero não se vê contemplado pela Lei Maria da Penha que, na prática, deveria protegê-lo da agressão doméstica (já contemplada para relação homoafetiva entre mulheres, por exemplo). Essa aresta acaba permitindo que inúmeros crimes sejam mantidos às sombras. Outra coisa a ressaltar: o respeitado Grupo Gay da Bahia, que estuda crimes contra a população LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais), aponta que os transexuais são, proporcionalmente, os mais afetados por agressão de diversas naturezas, da homofobia à violência conjugal. Enquanto os gays representam 10% da população, cerca de 20 milhões, as travestis não chegam a 1 milhão e têm número de assassinatos quase igual ao de gays. Só em 2014, foram assassinadas 84 travestis. Isso acontece por força de uma cultura extremamente machista, de submissão, que atinge tanto mulheres quanto cidadãos trans.
O que mudará, de concreto, a aprovação do projeto que transforma a violência doméstica em crime de tortura?
Jandira – O rigor da pena, certamente. A Lei Maria da Penha surge em 2006 acabando com a sensação do agressor que teria a impunidade ao seu lado ou, quando muito, o pagamento de uma cesta básica à vítima como pena. Criar penas mais rigorosas tem como objetivo coibir a prática, possibilitando punições mais incisivas.
Se aprovado, como funcionará o Fundo Nacional de Enfrentamento à Violência Doméstica? Em que pé está a tramitação do projeto? Há chances de ser votado no começo da próxima legislatura?
Jandira – O Fundo receberia recurso do Orçamento da União, de doações, convênios e rendimentos para investir em políticas de combate à violência contra a mulher no país. Poderia, por exemplo, ser usado na criação e fomento de políticas públicas de assistência às vítimas, com medidas pedagógicas e campanhas de prevenção, pesquisas na área, reforma de instalações que atendem mulheres vitimadas, compra de equipamento etc.
O projeto que cria o Fundo, contudo, encontra resistência para ser votado na Câmara dos Deputados. Essa morosidade é injustificável, até porque ele é fruto de amplos debates realizados pela Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, que analisou a violência contra a mulher. A CPMI confirmou em sua investigação a falta de recursos nos estados e municípios para este enfrentamento, diagnóstico dado por nós, também após a sanção da Lei Maria da Penha. Ela exige que o Estado crie equipamentos específicos, como delegacias legais e juizados, com funcionários capacitados. E isso demanda investimentos. O Fundo garantiria os repasses para que os governos locais mantivessem ou construíssem essas estruturas.
Como a senhora está se empenhando para a aprovação desses três projetos?
Jandira – Estou discutindo com os líderes para levarmos ao Plenário o mais rápido possível. Nossa meta é votar antes do final da atual legislatura, mas se não tivermos êxitos lutaremos para que o próximo presidente da Câmara (que comandará a casa entre 2015 e 2016) seja um parlamentar comprometido com essas pautas, e leve ao Plenário para nossa apreciação. Não há porque esperar, esse debate já se deu com a sociedade que, em peso, apoia medidas eficazes no combate à violência doméstica.
A população brasileira já entende o que é feminicídio? Ou essa forma de enxergar os assassinatos de mulheres está ainda restrita aos movimentos feministas?
Jandira – Com certeza a sociedade entende. É, sem dúvida, o resultado da maior visibilidade dos crimes contra mulheres, decorrente da existência da legislação. Ganham luz os crimes porque as mulheres também passam a denunciar mais, a ter mais confiança em levar a queixa à polícia, porque tem o amparo de uma lei avançada, com medidas preventivas e protetivas. Há um ciclo respeitado, ainda de forma frágil, mas há. Nosso objetivo é impedir que a estatística se torne crescente, banalizando esse tipo de crime. O trabalho diário do movimento de mulheres tem sido fundamental para reforçar a legislação e conscientizar as mulheres de seus direitos. O movimento foi nosso parceiro antes da lei, durante a elaboração e, agora no cumprimento dela.