Não são só os números da Covid-19 no Brasil que assustam o país este ano. A devastação dos nossos biomas também se intensificou. Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostram que, entre janeiro e agosto de 2020, foram registrados 10 153 focos de queimada no Pantanal – ante 3 165 no mesmo período do ano passado.
A Amazônia também sofre com o avanço do desmatamento. Entre agosto de 2019 e julho deste ano, houve alta de 40% em relação aos 12 meses anteriores, de acordo com o sistema Deter, também do Inpe. Os incêndios na floresta aumentaram em 35% nos últimos três anos, segundo relatório realizado pela organização ambiental WWF e o Boston Consulting Group.
A destruição dos biomas afeta fauna, flora e também a vida de populações locais. Moradores da região do Pantanal tiveram suas plantações destruídas, enquanto populações indígenas da Amazônia encontram-se sob ameaça das atividades ilegais na floresta, além de estarem morrendo vítimas do novo coronavírus.
Só em 2019, houve um aumento de 25% nas internações de indígenas por problemas respiratórios, devido à fumaça das queimadas, segundo o Instituto Socioambiental (ISA). Em 2020, os números devem ser ainda piores se somados à pandemia. CLAUDIA conversou com quem está enfrentando esses múltiplos terrores e com quem estuda possíveis saídas de sobrevivência.
Dona Julia
Recomeçar após a destruição
Há 20 anos, Julia Gonzáles, 62, se mudou para a Área de Proteção Ambiental (APA) Baía Negra, no município de Ladário, no Mato Grosso do Sul, em busca de tranquilidade. Lá ela pode pescar, fazer artesanato e preparar uma boa refeição com a mandioca e a batata-doce que ela mesma planta. No entanto, há cerca de dois meses, a paz da região que tanto ama deu lugar a um cenário digno de filme de terror. “O fogo veio muito rápido por causa do vento e queimou nosso pomar e todas as frutas da época. Não sobrou nada”, lamenta a ribeirinha, mais conhecida ali como dona Julia. Da plantação de laranjinha de pacu e jaracatiá, que ela usava para produzir geleias e bombons para comercializar, não sobraram nem as sementes.
A APA Baía Negra, habitada por apenas 40 famílias, foi uma das regiões afetadas pelas queimadas no Pantanal. Intensificado pelo período de seca, que também impactou a pesca na comunidade, o fogo destruiu a principal atividade econômica da população local, a agricultura. Dona Julia jura que, desde que se mudou para lá, nunca tinha visto chamas daquela proporção. “Até chegar ajuda, nós tivemos que nos abrigar nas nossas casas, que são feitas de madeira, material fácil de queimar”, conta. “Dá um medo danado, é algo que você nem imagina. Tem muita árvore grande, então o fogo sobe até 20 metros”, relata.
Nenhuma casa foi danificada e dona Julia segue esperançosa de que a comunidade conseguirá se reerguer e, quem sabe, atrair turistas para almoçar quando a pandemia da Covid-19 acabar. “Já estamos fazendo os nossos canteirinhos e replantando. Apesar da animação de poder recomeçar, vai ser difícil, porque estávamos acostumados com tanta coisa e de repente não temos nada.”
Nathalia Eberhardt
Controle de danos
Como socióloga e pesquisadora da organização não governamental Ecoa, que atua diretamente no Pantanal e no Cerrado, Nathalia Eberhardt Ziolkowski acompanha de perto a realidade das comunidades ribeirinhas, principalmente das mulheres que trabalham com o manejo sustentável da terra para subsistência e comercialização.
Ela viu o impacto que as queimadas na região causaram à população. Além dos efeitos econômicos, com a redução da pesca provocada pela seca e a destruição das plantações pelo fogo, a saúde da comunidade está em risco.
“Os moradores ficam respirando aquela fumaça, com perigo de intoxicação. Muitas vezes, precisam manter o rosto coberto por algum tecido molhado para conseguir respirar melhor”, declara. “O levantamento que estamos fazendo mostra que há um aumento do número de pessoas com problemas respiratórios graves, como bronquite, asma e sinusite”, explica.
Para Nathalia, a pior falha da atual gestão ambiental do governo Bolsonaro foi a demora para agir diante da situação. O Decreto nº 10.424/20, assinado pelo presidente em julho deste ano, determina a proibição das queimadas em todo o país pelo período de 120 dias.
“Chegou tarde, porque já estava perto de 1 milhão de hectares dizimados. E, mesmo assim, o decreto não garante que não haverá mais fogo no território. Precisamos de agentes públicos fiscalizando”, opina. “Acho que tem que haver uma política pública com uma organização muito bem estruturada para que vejamos um resultado satisfatório”, finaliza.
Paula Bernasconi
Mais seriedade na proteção
Para Paula Bernasconi, líder do Fórum Desmatamento da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura e coordenadora do Instituto Centro de Vida (ICV), o aumento do desmatamento na Amazônia se relaciona com uma possível flexibilização das políticas públicas ambientais.
“Faltam ações efetivas. Não existe um plano com metas específicas; pelo contrário, há uma série de medidas que sinalizam maior flexibilização e reabertura de unidades de conservação em terras indígenas para mineração e agricultura. Elas ainda não foram instauradas, mas dão a entender que poderá haver um afrouxamento das leis. Isso já é motivo para a elevação das taxas de desmatamento”, explica.
A questão também está associada às queimadas, já que é a forma mais barata e rápida de limpar a vegetação que sobrou depois da retirada das árvores. “Em períodos normais, a floresta em volta seria úmida, e isso seguraria o fogo. Mas, como ela está sendo degradada, fica menos resistente e as labaredas se alastram”, afirma.
Os impactos são enormes. Além dos efeitos na biodiversidade, com a perda de vegetação, morte de animais que não conseguiram fugir do fogo e a destruição dos hábitats dos sobreviventes, há os abalos na economia do país. “Os governos internacionais e empresas que compram do Brasil estão sendo pressionados pelos seus cidadãos, que querem consumir produtos que não contribuam com a destruição, com a invasão de terras indígenas ou com o trabalho escravo. Portanto, é fundamental que o governo demonstre atitudes firmes contra o desmatamento e atividades ilegais”, opina. “É preciso enxergar que a conservação pode ser uma aliada da economia e do desenvolvimento do país.”
Watatakalu Yawalapiti
Ameaças múltiplas e constantes
“Quando a floresta pega fogo, queimam junto as nossas casas. Corremos o risco de ficar sem oca por 20 anos, que é o tempo que a árvore leva para crescer até o tamanho que precisamos”, conta Watatakalu Yawalapiti, indígena do Alto Xingu e coordenadora da Atix-Mulher, departamento feminino da Associação Terra Indígena do Xingu (Atix).
Na Amazônia, as aldeias estão sofrendo também com a Covid-19. “Minha irmã foi contaminada pelo novo coronavírus e ficou muito angustiada. Ela não conseguia tirar o oxigênio, porque, além da doença, a fumaça das queimadas atrapalhava sua respiração”, relata. A pandemia atingiu com força quase todos os Yawalapiti. Watatakalu conseguiu se salvar porque estava fora da aldeia, mas perdeu pessoas próximas, como o tio.
Enquanto lutam para sobreviver a uma doença ainda sem cura, os povos indígenas têm que lidar com as consequências da devastação da floresta. Tempestades fortes, plantas secas, invasão de onças, que fogem do fogo e acabam entrando nas aldeias, e, ainda mais difícil, ameaças dos invasores de terras. “Eles acham que temos que mudar, que precisamos evoluir. Não entendem que essa é a nossa vida.”
Para Watatakalu, a preservação da floresta não é mais uma demanda só de indígenas, mas de toda a humanidade. Ela aposta que as próximas gerações farão a diferença. “As pessoas boas são multiplicadoras. Elas têm que levar o exemplo para os filhos e, assim, ir mudando. Também é preciso que os não indígenas conheçam a floresta e as comunidades indígenas. Há uma ideia distorcida sobre nós, e isso só muda quando eles passam a entender nosso modo de vida e a respeitá-lo.”
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